segunda-feira, 31 de março de 2014

O que ficamos a saber na penúltima semana de março

Espero não criar dúvidas. A última semana em que houve dias de março não foi uma inteira “hebdómada”, pelo que neste escrito me refiro à semana de 23 a 29, essa, sim, inteirinha. E foi cheia de curiosidades políticas, curiosidades verdadeiramente anedóticas, se não jogassem com a vida dos portugueses.
Os ricos deverão estar mais atentos, a ver se não levam algum tombo, porque os “rapazes” lá de Lisboa – entre compromissos com o DEO e com eleições – andam em roda livre: Cavaco não tem informações sobre a matéria de novos cortes (e deveria ter; ou também irá, de futuro, nalgum prefácio, acusar Passos Coelho de deslealdade democrática?); governo presente algures, mas ausente em partes incertas, decide sem decidir; parlamento vai balbuciando uns suspiros através de vozes ditas da oposição e uns améns da situação; comentadores olham para o Passos de antes de eleições e para o Passos de depois de eleições. E agora, será o de antes ou de depois? Depois das legislativas de 2011, mas antes das europeias de 2014 e das legislativas de 2015 – um duplo indefinido – corta, não; ajusta, sim! Os pobres estão cada vez mais pobres, pois, aumentam-lhes uns cêntimos na pensão, mas sobem-lhes euros no custo de vida, mesmo nos bens essenciais. As instituições de beneficência estão cada vez mais magras: aumentam os utentes (nem todos terão necessidade, mas…), surgem novos pobres, dos que antes estavam bem, e as exigências burocráticas são maiores, ao serviço do Estado e de alguns dos grandes. A classe média está em vias de desaparecimento: puxada pelos descontos obrigatórios para segurança social e similares, que compram dívida pública com o fruto da capitalização dos descontos dos trabalhadores; sobrecarregada com impostos, taxas, sobretaxas e tarifas, esperança média de vida; cercada da falta de condições de trabalho, apreensão sobre o futuro; vergastada com o custo de vida excessivo – aguenta, aguenta… até quando?! Mas continua a fuga aos impostos e a economia paralela, apesar do sorteio de carros topo de gama pelo fisco! E os cardosos impostos da nossa Teodora: o cidadão guarda o salário e/ou outros rendimentos numa conta poupança (para poupar quando não há dinheiro) e será taxado pelos levantamentos, despesas, etc. – rica forma de o Estado poupar!
Mas atentemos nos itens da anedota. O governo criou oficialmente uma fuga de informação legítima: o Secretário de Estado da Administração Pública convocou os jornalistas a quem revelou que, para satisfazer o documento de estratégia orçamental (DEO) nos anos pós-troika, o governo estava estudar a maneira de tornar definitiva a ora transitória contribuição extraordinária de solidariedade dos pensionistas (CES) e uma redução adicional nos salários dos trabalhadores da Administração Pública. Os senhores jornalistas podiam publicar o conteúdo, mas não a fonte, escudando-se no pretexto de “fonte oficial” ou “fonte governamental”.
O povo leu (não se confunda com  o “povoléu”!) e os comentadores acionaram os botões. E o governo fala. Houve fuga de informação, conluio de jornalistas – o que levou a uma tomada de posição conjunta de jornais de referência a repor publicamente a verdade. Ministro da Presidência não conhece qualquer documento, nada está sobre a mesa da discussão. O que o governo está a fazer é cumprir o que manda o Tribunal Constitucional. Mais: ficamos a saber que acabou a ditadura do Ministério das Finanças, pois, minister dixit, uma informação “oficial” do Ministério das Finanças não vincula o governo (e nós a pensar que havia solidariedade governamental: por isso é que, em 1993, aceitei que o Secretário de Estado da Defesa Nacional inaugurasse uma escola; e, em 2011, vi o Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional a inaugurar outra).
Mas o Senhor dos Passos Coelho declarou que não, que nada estava decidido, porque isso só seria decidido com ele e ele não tinha tomado posição sobre a matéria.
Portas e Maduro, em momentos diferentes, clamaram que “foi um erro”, “que não devia ter acontecido” (Haverá erros que possam ter acontecido?) “e pronto”!
Conclusão da anedota: a experiência ensina que, se Coelho disser que não haverá cortes nas pensões e salários, é porque vai haver.
Adicionalmente, dizem as más línguas geralmente bem informadas que o Estado se prepara para uma emissão de dívida, digo eu, discreta (eu li “clandestina”) de mais de um milhão de euros para garantir à troika uma saída limpa. Afinal, em 2011, elegemos não uns governantes, mas uns brincalhões. Mas, se Nadia Malanima, em 1972, cantava no Festival de San Remo que “a vida é um jogo: / quem perde chora / e ri quem ganha”, quem serei para a contrariar?
Mas uma coisa é exigível: que trabalhadores e pensionistas possam ter, no início de cada ano, uma visão aproximada do rendimento que podem auferir ao longo do ano. Imaginam um Estado sem orçamento no princípio de ano?
Será que não estaremos a ser conduzidos de forma capciosa para onde não queremos ir? Recordo que Hitler escreveu em 1925: “A crueldade impressiona. As pessoas querem ter medo de alguma coisa. As massas precisam disso” (apud Canal de História. As grandes profecias da História. Clube do autor: 2011). Segundo alguns, o êxito do conglomerado ideológico do Partido Nazi reside no facto de se alimentar dos medos das classes médias face às incertezas sobre o futuro. Para conseguir o apoio da opinião pública, os nazis difundiram a diabólica visão de Hitler através dos meios de comunicação social alemães. A propaganda foi eficazmente feita através da rádio, do cinema e de cartaz publicitário (ainda não havia a televisão, pelo menos em fase de generalização), pois era necessário controlar a sociedade de massas (cf op cit). É certo que Hitler morreu e não reencarnou na lusa pátria, mas não haverá novos perfis hitlerianos disfarçados de democratas num hic et nunc concreto algures em parte incerta da Europa ou do resto do mundo?  

Cavaco Silva, em 9 de março de 2011, pediu no Parlamento o sobressalto democrático…. Onde está Cavaco agora? E os rapazes e raparigas do 12 de março?

Em maré de eleições europeias: São Bento e a Europa

Justificação circunstancial
Carlos Aguiar Gomes, membro da mesa administrativa da Irmandade de São Bento da Porta Aberta, em entrevista à agência Ecclesia, a 28 de março, dá largas ao fascínio que São Bento, o histórico pai da Europa, exerce na atualidade e enaltece a importância daquele santuário situado na arquidiocese de Braga.
É sobretudo São Bento e a Europa – em maré de eleições europeias e no cinquentenário da proclamação de São Bento como padroeiro principal da Europa – que nos convocam para a reflexão que, a seguir, se passa ao papel.
O entrevistado justifica o fascínio da sua continuada relação com o plurissecular orago do santuário de que é um dos administradores: “É um fascínio por um homem que no silêncio foi capaz de criar um modelo que são os mosteiros, que ainda hoje se podem replicar fazendo as necessárias alterações à realidade do século XXI”.
Efetivamente, tanto quanto nos é dado observar, o mosteiro beneditino tende a situar-se em local inabitado, donde não é fácil sair e onde haja em potência forte hipótese de subsistência (com a captação de importantes elementos como a água, o sol, alguma vegetação…), desde que os novos íncolas se apliquem ao trabalho de arroteamento e agricultação das terras. A partir daí, há que definir a microcidade em que seja possível delimitar um espaço fautor de vida condigna em comum sob o dinamismo do ora et labora: aplicação à piedade individual e à oração litúrgica em articulação com o trabalho do campo e o labor cultural – em torno dos quais, sob a orientação do abade e exemplo dos frades, se mobilizam e ensinam todas as pessoas disponíveis e que necessitem de viver do trabalho. É a vida de ascese (e tendencialmente da mística) de uma comunidade, por princípio, autossuficiente, mas tão aberta à visita e hospedagem como recetiva à dádiva, para que possa também acorrer em favor dos pobres.
O resultado é descrito por Pio XII na encíclica Fulgens Radiatur, de 21 de março de 1947, XIV centenário da morte de São Bento:
[…] enquanto nessa escura e convulsionada época da história o cultivo da terra, o amor do trabalho e da arte, o estudo das ciências e das letras, religiosas e profanas, eram lançados, por uma espécie de desdém geral e sintomático, ao abandono, sai dos mosteiros beneditinos uma plêiade luminosa de agricultores, de artistas, de sábios, que nos salvaram incólumes os monumentos da velha literatura, conciliaram os velhos e os novos povos, em guerras constantes, reduzindo-os da barbárie renascente, das correrias, do saque, à moderação da moral humana e cristã, à abnegação do trabalho, à luz da verdade; reconstituíram, enfim, uma civilização enformada nos princípios do Evangelho.

No encalço das asserções do aludido entrevistado, resolvi deambular pela informação beneditina (OSB – Ordo Sancti Benedicti), de que passo a destacar alguns pontos, com base, sobretudo, em documentos pontifícios oportunamente referenciados.

São Bento
Paulo VI, na carta apostólica Pacis Nuntius, de 28 de outubro de 1964, em que o proclama padroeiro principal de toda a Europa, atribui ao Abade São Bento os títulos de “mensageiro da paz”, “construtor de união”, “mestre de civilização”, “arauto da religião de Cristo” e “fundador da vida monástica no Ocidente”.
E especifica o seu labor: Na queda do Império Romano, totalmente exausto, perante zonas inteiras caídas num mundo de trevas, privado de civilização e de valores espirituais, fez surgir a aurora de uma nova era. Principalmente, “ele e seus filhos levaram com a cruz, o livro e o arado o progresso cristão aos povos espalhados do Mediterrâneo à Escandinávia, da Irlanda à planura da Polónia”. Com aqueles instrumentos deram “consistência e desenvolvimento aos ordenamentos da vida pública e privada”. Ensinaram à humanidade “o primado do culto divino por meio da obra de Deus” (oração litúrgica e ritual), que constitui o liame da unidade espiritual – característica distintiva da denominada Idade Média – que levou a que “povos tão diferentes do ponto de vista linguístico, étnico e cultural conseguissem constituir-se em único povo de Deus” (cf Paulo VI, op cit).
A principal fonte dos acontecimentos da vida de São Bento são os Diálogos, de São Gregório Magno, redigidos por volta do ano de 593, que se baseou em narrativas de monges que conheceram pessoalmente o santo fundador.
Bento ou Benedetto de Núrsia, filho de um nobre romano, nasceu  em Núrsia (Úmbria, região da Itália), cerca do ano de 480 (o império Romano do Ocidente caíra em 476), e faleceu na Abadia do Monte Cassino, no dia 21 de março de 547. Tinha uma irmã gémea de nome Escolástica, que deu origem ao ramo feminino da Ordem e faleceu a 10 de fevereiro do mesmo ano que seu irmão, dia que passou a ser o da sua memória hagiológica na liturgia.
Já no século VIII se celebrava a festa de São Bento a 21 de março, o seu dies natalis (a morte era o dia do nascimento para a vida eterna), a qual passou para o 11 de julho, por ter sido nesse dia que os seus restos mortais foram transferidos para a Abadia de Saint-Benoît-sur-Loire (em cuja cripta se encontram), perto de Orléans e Germigny-des-Prés, no centro da França.
Feitos os primeiros estudos na sua terra natal (junto à cidade italiana de Spoleto), foi enviado para Roma, no ano de 500, a fim de estudar retórica e filosofia. Mas, dado que o clima libertino da cidade não lhe agradou, fugiu para Enfide (atual Affile) e dali para o Monte Subíaco, onde, com ajuda de um abade da região chamado Romano, se instalou numa gruta de difícil acesso, começando aí a praticar vida eremítica, em total dedicação à oração e à penitência, vencendo inúmeras vezes, das formas mais insólitas, as ciladas do príncipe das trevas. Com o tempo (cerca de três anos) e graças à divulgação do seu teor de vida por uns pastores que o encontraram, ficou famoso como santo entre a população das redondezas e foi convidado a dirigir uma comunidade monástica em Vicovaro. Porém, o seu regime de vida severo desagradou aos monges, que tentaram o seu envenenamento, que foi misteriosamente debelado: no momento em que Bento dava a bênção sobre o alimento, saiu da taça que continha o vinho envenenado uma serpente e a taça fez-se em pedaços. Com isto, resolve deixar a comunidade e retornar à vida solitária, a viver consigo mesmo: habitare secum.
São Bento voltou, então a Subíaco e, graças à visita que lhe iam fazendo a pedir conselhos espirituais, aí congregou, no ano de 503, um grupo de discípulos e promoveu a fundação de doze pequenos mosteiros.
No ano de 529, passou com os discípulos mais chegados para ao Monte Cassino, devido à inveja do sacerdote Florêncio. Conta-se mesmo o seguinte episódio: Florêncio envia de presente a Bento um pão envenenado, mas o monge dá o pão a um corvo que todos os dias vinha comer de suas mãos e ordena à ave que o leve para bem longe, onde não pudesse ser encontrado e comido por ninguém. Durante a saída de Bento e companheiros para o Monte Cassino, Florêncio, sentindo-se vitorioso, saiu ao terraço da casa para ver a partida do santo prófugo. Entretanto, o terraço ruiu e Florêncio morreu. Mauro, um dos discípulos do mestre monacal, foi pedir-lhe, com ar de satisfação, que retornasse, pois o inimigo havia morrido. Porém, Bento chorou a morte do inimigo e também a alegria do discípulo, a quem impôs uma penitência por se ter regozijado com a morte do sacerdote.
Pio XII, na sua aludida encíclica, chama a Bento “astro fulgurante da Igreja e da civilização” a resplandecer “na cerração da noite”. E entendendo que a Europa tem uma dívida para com o patriarca da Europa, que pode saldar pela reconstrução do património beneditino (devastado pela última guerra), recorda muitos dos seus ensinamentos de que se destaca o seguinte:
[…]o trabalho humano, longe de ser desprovido de dignidade, molesto e odioso, é, pelo contrário, uma fonte de alegria, de felicidade e de nobreza. Uma vida operosa, cheia, como se diz, na lide incessante do campo, da oficina ou do estudo, não deprime o espírito, nobilita-o; não escraviza, dá-nos, pelo contrário, a sensação forte da superioridade, do domínio sobre quanto nos rodeia e em que nos ocupamos. Também Jesus Cristo, adentro das paredes da casa paterna, se dignou trabalhar na oficina de seu pai, santificando, deste modo, com o seu divino suor, o esforço do homem. Advirtam, pois, todos os que, para ganhar o pão de cada dia, se entregam a faina rude da oficina ou da fábrica, ao labor da pena ou da cátedra, que é nobilíssima a sua condição, que lhes faculta os cómodos duma vida honrada e contribui para o bem-estar da comunidade civil.

Por sua vez, na catequese de 9 de abril de 2008 (audiência geral), dedicada ao “fundador do monaquismo ocidental”, e também padroeiro do meu (sic) pontificado”, Bento XVI refere: “De facto, a obra do Santo e, de modo particular, a sua Regra revelaram-se portadoras de um autêntico fermento espiritual, que mudou no decorrer dos séculos, muito além dos confins da sua Pátria e do seu tempo, o rosto da Europa, suscitando depois da queda da unidade política criada pelo império romano uma nova unidade espiritual e cultural, a da fé cristã partilhada pelos povos do continente”.

A Regra de São Bento
Regula Monasteriorum ou Regula Monachorum (Regula Benedicti ou RB) é composta por um prólogo e 73 capítulos. Provavelmente não terá sido integralmente composta por Bento, mas criada por si a partir de uma regra mais antiga, Regula Magistri, da pena de autor desconhecido, na mesma região, uns trinta anos antes da composição da regra em causa.
O espírito da RB resume-se em dois pontos: o lema da OSB (pax – “paz”), que nasceria séculos mais tarde, como resultado da agremiação de vários mosteiros que partilhavam a mesma regra; e ainda o tradicional imperativo ora et labora (“reza e trabalha”), súmula da vida que cada monge deve levar.
Dom Basilius Steidle propôs as seguintes divisões temáticas para a RB: prólogo; estrutura fundamental do mosteiro, capítulos 1-3; a arte espiritual, capítulos 4-7; oração comum, capítulos 8-20; organização interna do mosteiro, capítulos 21-52; o mosteiro e as suas relações com o mundo, capítulos 53-57; a renovação da comunidade monástica, capítulos 58-65; a porta do mosteiro e a clausura, capítulo 66; acréscimos e complementos, capítulos 67-72; e testemunho pessoal de São Bento sobre a regra, capítulo 73.
São Bento de Aniane retoma a RB no século IX, antes das invasões normandas. Estudou-a e codificou-a, ocasionando a sua expansão por toda a Europa carolíngia, ainda que adaptada diversas vezes, conforme os diversos costumes.
Posteriormente, através da Ordem de Cluny e da centralização dos mosteiros que utilizavam a RB, ela adquiriu enorme importância na vida religiosa europeia durante a Idade Média.
No século XI, surgiu a reforma cisterciense, que buscava recuperar o regime beneditino mais conforme à regra primitiva e reganhou a Europa para um novo impulso humanista e cristão.
Outras reformas (vg camaldulense, olivetana, silvestriana…) fizeram a sua leitura da RB, enfatizando cada uma alguns aspetos específicos, segundo o critério de cada reformador.
Apesar dos diferentes momentos históricos, em que a disciplina fraquejou, as perseguições amedrontaram e as agitações políticas condicionaram e em que a prática da RB e mesmo da população monástica sofreram uma certa decadência, os mosteiros beneditinos conseguiram manter, ao longo do tempo, um grande número de religiosos e religiosas. Atualmente, perto de 700 mosteiros masculinos e 900 mosteiros e casas religiosas femininas, espalhados pelos cinco continentes, seguem a RB. Adotam-na mesmo, além de católicos e ortodoxos, algumas comunidades das confissões luterana, anglicana e metodista.

A abadia do Monte Cassino
Situa-se no topo do monte homónimo, a 80 km a oeste de Nápoles, na Itália. Fundada por Bento de Núrsia no ano de 529, como se referiu já, é o berço da Ordem dos Beneditinos e serviu de retiro a soberanos e pontífices como o príncipe franco Carlomano, irmão de Pepino o Breve, o lombardo Rachis (com a família) e Gregório Magno. Contém imensas riquezas, entre as quais, a preciosa biblioteca juntamente com a galeria de preciosos quadros, colocada sob a proteção direta de Roma (Didier, abade de 1058 a 1087, faz trazer de Constantinopla diversos livros).
Diversas vezes em perigo devido a guerras e invasões, a abadia, foi saqueada e queimada pelos Lombardos do duque Zotton. Reconstruída só no início do século VIII, após um período de turbulências na Itália (devido sobretudo aos Lombardos), foi novamente destruída parcialmente e incendiada por piratas sarracenos (844); depois, em 1030, pelos Normandos que começaram a invadir a Itália meridional. Mais recentemente, no início de 1944, ela foi destruída pelos bombardeamentos dos “aliados” durante a batalha de Monte Cassino, sendo mais tarde reconstruída tal como era antes, no quadro da sugestão de Pio XII.
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E se esta informação/reflexão servisse de alguma valia para uma Europa apostada, não já (ao menos, no imediato) na destruição física de pessoas e povos, mas na degradação/aniquilação da sua dignidade económica e social, ou seja, da dignidade em plenitude da pessoa humana, em vez da via da beleza oferecida pela vida do ser humano (como conforto ético da pessoa em comunidade) e pelo seu ambiente material, cultural, estético e espiritual …

domingo, 30 de março de 2014

Quem é mais importante na Igreja?

No passado dia 22 de março, o Papa falou aos membros da associação “CORALLO”, que reúne as emissoras televisivas católicas italianas. Num discurso de improviso de resposta às palavras de saudação, em que, de momento, se inspirou, do presidente do grupo, a quem acabou por entregar em suporte de papel o discurso que havia preparado para que o pudesse divulgar, o pontífice faz refletir sobre a missão daquela associação. Tais palavras dão azo a que nós também assumamos o ónus da crítica e da autocrítica – na vida pessoal e de sociedade em comunicação.
Reconhecer a missão de procura da verdade por parte de uma estação televisiva parece afirmar o óbvio, ao tratar-se de órgão de comunicação social, e ninguém admite que um órgão de comunicação estribe a sua função primordial em algo diferente do que seja a verdade. No entanto, o homem, por força das circunstâncias em que sente mais à vontade em se enredar na mentira, muitas vezes intoxica a comunicação fugindo à verdade ou iludindo-a. Tal intoxicação pode também resultar da falta de atenção ou mesmo da ignorância, de que os agentes de informação serão responsáveis se não cuidarem da sua formação e atualização ou se não forem diligentes no trabalho de pesquisa e formulação das peças jornalísticas. Já não falo dos interesses, dos medos ou das pressões que podem condicionar a informação.
Por tudo isso, talvez não seja descabido que o Homem, que foi eleito para servir de modo eminente Aquele que veio ao mundo para dar testemunho da verdade e por ela dar a Vida, aproveite todas as oportunidades que se lhe apresentem para expor a excelência da verdade.
Mas a questão não é simples. Tanto assim que, quando Cristo, no percurso da sua glorificação, insistia na verdade, escutou a pergunta de Pôncio Pilatos: “O que é a verdade” (Jo 18,38)? Cristo deixou sem resposta aquele que dizia ter poder para o soltar ou para o crucificar (cf Jo 19,10).
Alguma reflexão se tem feito sobre a falta de resposta de Jesus. Dizem alguns mestres espirituais, apoiados na palavra de Cristo sobre si próprio – “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6) – e nos Padres da Igreja, que não era necessário responder: a Verdade é o próprio Cristo. No latim, a pergunta “quid est veritas?” (que é a verdade?) teria a resposta existencial “est vir qui adest” (o homem que aqui está). E uma coisa é certa: todo aquele que é da verdade ouve a voz de Cristo (cf Jo 18,37).
Mas, voltando ao discurso de Francisco, reparemos que ele propõe uma trilogia na missão das estações televisivas, que impulsionam um mecanismo específico de comunicação: “Mas não só a verdade! Verdade, bondade e beleza, as três coisas juntas”. Trata-se de ideias/valores de natureza gémea, em que não se entende uma sem as outras, à boa maneira platónica, imersa em Deus – a suprema Verdade, a suma Bondade e a inefável Beleza, ou se quisermos: a Sabedoria, o Bem, o Belo – mas que o Papa quer que sejam assumidas como caminhos ao serviço do homem, da comunidade humana.
E perante este raciocínio pontifical, vou dispensar-me, por momentos, de filosofar e passo a transcrever:
Mas aquelas verdades, bondades e belezas que são consistentes, que vêm de dentro, que são humanas. E, no caminho da verdade, nos três caminhos podemos encontrar erros, também ciladas. “Penso, procuro a verdade...”: toma cuidado para não te tornares um intelectual sem inteligência. “Vou, procuro a bondade...”: toma cuidado para não te tornares um eticista sem bondade. “Eu gosto da beleza...”: sim, mas toma cuidado para que não faças o que muitas vezes acontece, “pintar” a beleza, procurar os cosméticos para fazer uma beleza artificial que não existe. A verdade, a bondade e a beleza como vêm de Deus e estão no homem.
Como se pode ver, há aqui uma inter-relação entre cada uma das metas ou entre cada um dos caminhos, mas também uma advertência para os riscos, mas também um alerta para os riscos, erros e ciladas. Não se deseja um intelectual sem inteligência (Ena tantos e tantas!); não se deseja um eticista sem bondade (Mas que os há, há); não se deseja um pintor de beleza que não existe (E não há por aí tanto pintor/artista nefelibata ou cultor de beleza balofa?)
E é face a este estatuto simultâneo de metas e de caminhos que pouco importa discutir a dimensão dos centros de comunicação social, grande, média ou pequena, desde que se promovam e preservem os ditames da harmonia construtora e fautora da unidade. Por isso, Francisco parafraseia o capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios, segundo a qual “na Igreja não há nem grande nem pequeno”, tendo cada qual a sua função e o seu serviço ao próximo. “Todos somos membros,” disse. E também os meios de comunicação de Igreja – grandes ou pequenos – são membros da grande família comunicacional, que, se devidamente harmonizados, exercem uma vocação específica de serviço na Igreja – o que penso poder e dever aplicar-se aos meios de comunicação que se deixem guiar pelos princípios do são personalismo no serviço à humanidade e ao homem que milita nos escaparates da exposição pública ou na discrição do seu buraquinho, nunca ignorado por Deus, embora esquecido e vilipendiado pelos poderes, a não ser em maré eleitoral.
E o critério da medida da grandeza no reino de Deus, como sabemos, não é a dimensão, o poder, o prestígio ou a riqueza. Podemos lembrar a discussão entre os discípulos sobre quem seria o maior. E o Mestre, contra os parâmetros da profanidade da tradição e do mundo, inclusive o mudo bíblico, indica a criança (que não era tida em conta pela “sabedoria” dos doutores da lei: tal o espanto dos doutores no Templo a responder ao menino Jesus, de 12 anos, e a ouvi-lo) como modelo da maioridade, pela candura e transparência, e o servo, pela capacidade e disponibilidade ao serviço da vida. Pelo lado das criancinhas, lemos: “Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino dos Céus. Quem, pois se fizer como este menino será o maior no Reino dos Céus (Mt 18,3-4); e “quem for o mais pequeno entre vós, esse é que é grande (Lc, 9,48). Do lado dos servidores – o Mestre é peremptório –“ Os reis das nações dominam sobre elas, e os que têm autoridade sobre elas são chamados benfeitores. Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve. Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós sou como aquele que serve” (Lc 22, 25-27).
Há ainda outro critério para aferir da grandeza no Reino, que todos os que têm a responsabilidade da condução de pessoas, grupos, povos e opinião pública, deveriam observar: “Todo aquele que desobedecer a um destes mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino dos céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado grande no Reino dos céus” (Mt 5,19).
Nestes termos, ninguém se deve sentir o menor ou “demasiado pequeno em relação a outro muito grande”. Diante de Deus todos somos pequenos, na humildade cristã da verdade, mas todos temos uma função na sociedade e na Igreja. O Papa lança a si mesmo o repto, a que diz não poder responder: “Eu faria esta pergunta: quem é mais importante na Igreja? O Papa ou aquela velhinha que todos os dias recita o Rosário pela Igreja? Deus que o diga: eu não o posso dizer. […] O corpo de Cristo é esta harmonia da diversidade, e é o Espírito Santo que faz a harmonia: Ele é o mais importante de todos. […] É importante: procurar a unidade, e não seguir a lógica de que o peixe grande come o pequeno” (vd Padre António Vieira, O Sermão de Santo António).
E Francisco não deixa de frisar que naqueles caminhos por que passam os meios da comunicação, ao lado de virtudes eminentes – verdade, bondade, beleza, respeito, lealdade, justiça, caridade – há também os vícios, que se tornam pecados, ao constituírem infrações conscientes e voluntárias à ética: “os pecados dos mass media”.
“Para mim” – explica o papa – “os pecados dos ‘media’, os maiores, são os que vão pelo caminho da mentira, da falsidade, e são três: desinformação, a calúnia e a difamação”. E explicita que “estas duas últimas são graves, mas não tão perigosas como a primeira” e, justificando, explica:
“A calúnia é pecado mortal, mas pode-se esclarecer e chegar a conhecer que aquela é uma calúnia. A difamação é pecado mortal, mas pode-se chegar a dizer: esta é uma injustiça, porque esta pessoa fez aquilo num certo tempo, mas depois arrependeu-se, mudou de vida”.
Quanto à desinformação, Francisco sublinha o facto de ela consistir em “dizer metade das coisas, as mais convenientes para mim, e não dizer a outra metade”. Por isso, o telespectador ou o rádio-ouvinte não pode formar um juízo perfeito, pois não tem os elementos e não lhos fornecem. “São, pois, estes os pecados” – sintetiza o papa – a evitar em comunicação social: desinformação, calúnia e difamação”.
Ora, se jornalistas e empresários da comunicação querem ser grandes na sociedade, têm de se preocupar na busca da verdade, da bondade e da beleza. Para tanto, têm de trilhar sempre o caminho da beleza, o caminho da bondade, o caminho da verdade, mobilizando as virtudes que os tornam transitáveis e delas dando permanente testemunho.

“É como dizes, sou rei. Para isto é que eu nasci, e para isto é que vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18,37).

sexta-feira, 28 de março de 2014

Pecados atuais, pecados velhos

Li, com interesse, um artigo de Alexandrino Brochado no periódico diocesano do Porto, Voz Portucalense, de 19 de março, subordinado ao título “alguns pecados atuais”. O articulista opina – e bem – que, se nos fosse dado redigir um novo formulário catequético na Escola ou na Igreja, teríamos de o redigir de forma bem diferente do que aprendemos e deveríamos talvez acrescentar ao rol dos pecados tradicionais e aos mandamentos ou às obras de misericórdia mais uns tantos, como os pecados da estrada, no primeiro caso, e arranjar trabalho a quem precisa de ganhar a vida, no segundo caso.
Refere Alexandrino Brochado, com sua visão atenta, o que perpassa por este mundo de Cristo: uma insensibilidade crassa a preceitos como guardar castidade, cultivar a verdadeira beleza e apostar na seriedade e honestidade de vida; e a onda difusora de modos de vida nada plausíveis. E citava, a este respeito, uma revista de grande tiragem que, a propósito de alguém que interessava promover, ostentava o slogan: “esta vedeta espalha beleza e sensualidade em todo o mundo”. E comentava, com razão, a inutilidade de tal palavra de ordem publicitária num mundo já eivado de impureza, sensualidade e podridão, contraposto àquele que preza ainda a sanidade de costumes e tenta difundi-la por todos os meios ao alcance.
Concordando com a intenção e, por princípio, com o fluxo discursivo do autor do texto, gostava de referir – não obviamente para o subscritor do texto, que disso não precisa, mas genericamente para quem ler – que a doutrina tradicional da Igreja Católica contém um referencial mais que suficiente para incorporarmos um moderno rol de virtudes e pecados, a que hoje seremos mais sensíveis, ou um conjunto de preceitos e recomendações, a cujo seguimento estaremos mais atreitos. Não me alongarei se lembrar que o enunciado como pecado que brada ao céu “não pagar o jornal a quem trabalha” se ajustou a uma nova redação “não pagar o salário justo a quem trabalha”. E a sua leitura coeva, a partir de Leão XIII, explicitou que o salário justo deve cobrir o trabalho efetivamente prestado e constituir um contributo para satisfazer as responsabilidades para com a família e precaver as situações previstas e imprevistas de carência futura ou em caso de impossibilidade de trabalho. Não sei mesmo se arranjar trabalho a quem precisa de ganhar a vida não se incluirá no 7.º preceito do decálogo lido à luz do Novo Testamento. É claro que os mandamentos emoldurados pelo tom da misericórdia divina têm outra força e outro sabor (deixam de ser um peso para o praticante de boa fé). Só que o vocábulo “misericórdia” entrou no imaginário como pena, compaixão, favor, não imperativo obrigatório – quando deveria imperar como compaixão, sim, mas assumida como disponibilidade de sofrer com quem sofre, alegrar-se com quem se alegra. Já agora, não é isto a “caridade” (por favor, não caridadezinha!), o contrário da inveja, um dos pecados capitais?
“Dar emprego a quem dele precisa” é obrigação de todo o empresário, de acordo com as suas possibilidades, como é obrigação do trabalhador o desempenho de qualidade no trabalho, cumprindo bem todas as tarefas, mais do que o horário (profissionalismo – manda Francisco, o papa – com as notas de empenho, estudo e atualização). Isto é, no primeiro caso a “liberalidade”, o contrário da “avareza”, outro pecado capital; e no segundo, a “diligência”, o contrário da preguiça, mais outro pecado capital! Porém, dispensem-me de pensar se os deveres/obrigações enunciados obrigam sub gravi ou non sub gravi / sub levi (distinções como estas é que deram cabo de tudo).
Já se pode ver como o não cumprimento do código de estrada pode compaginar um conjunto de pecados: pôr em risco a vida dos outros é uma infração ao 5.º mandamento e pode levar ao homicídio voluntário (pecado que brada aos céus). Coisa semelhante (ao nível do 5.º, 6.º, 7.º e 8.º preceitos) se diga dos insultos/palavrões/calúnias de estrada, danos voluntários nos bens (as colisões provocadas, derrube de postes, fraude às seguradoras, etc.). E mais se poderia dizer. Só um outro aspeto que fere – e com razão – as sensibilidades: a pedofilia e o abuso sexual de menores, independentemente do sexo das vítimas ou da condição do infrator, não são pecado contra o 6.º mandamento e, nalguns casos, pecado que brada aos céus?
Quanto à formulação da doutrina, recentemente foram editados já vários catecismos. Lembro-me de O Novo Catecismo, (tradução portuguesa das edições HERDER), conhecido como “o catecismo da Igreja de Holanda”, elaborado logo a seguir ao concílio Vaticano II, que foi objeto de tantas e injustas críticas. Outras formulações apareceram, como: Catecismo para Adultos – a Aliança de Deus, dos Bispos de França, tradução portuguesa da Gráfica de Coimbra, com nota de Dom João Alves; A Fé Explicada, de Leo Trese, edições Quadrante, S. Paulo; o Libro Básico del Creyente, das edições PPC, Madrid; e os dois volumes de Rey-Mermet, A fé explicada aos jovens e adultos, Edições Paulinas, 1980. João Paulo II mandou elaborar e publicar o Catecismo da Igreja Católica, na sequência da formulação da doutrina conciliar, e Bento XVI fez coisa semelhante com o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. No entanto, em matéria atinente aos costumes, as formulações continuam pouco felizes. Insistem muito no preceito pela negativa: “não dirás, não farás…”. Seria mais positivo formular pela positiva, à semelhança do próprio Código de Direito Canónico, cujo teor é usualmente mais positivo.
Como se pode entender, apesar de haver já muito trabalho feito, muito de caminho ainda resta para percorrer. No entanto, o mais necessário é refletir e tirar conclusões dos materiais já elaborados, que têm muito que se lhes diga. E é necessário que as formulações não constituam floresta anárquica onde o crente não saiba por que jeito possa manobrar.
Resta acrescentar que para haver pecado grave são necessárias três condições cumulativas: matéria grave (atenção, que a matéria leve pode levar ao hábito de queda em atos pecaminosos de matéria grave; por isso, nada como a ação pedagógica); perfeito conhecimento e advertência – o que não dispensa de trabalhar pela formação da consciência); e pleno consentimento (o que também não significa exigência de declaração escrita com testemunhas perante notário ou sub iudice).

Posto isto, para a frente e fé em Deus!

Francisco e Obama

Refere a agência Ecclesia que o Papa Francisco recebeu, a 27 de março, pela primeira vez no Vaticano, em audiência privada, que durou mais de 50 minutos, o presidente dos Estados Unidos da América, Barack Hussein Obama. Após a receção protocolar por D. Georg Gaenswein, prefeito da Casa Pontifícia, Barack Obama seguiu para a Biblioteca do Papa, onde, agradecido a Francisco, o líder dos EUA disse ser maravilhoso e constituir uma grande honra encontrar-se com ele, confessando-se um profundo admirador do pontífice argentino.  
Os dois líderes foram acompanhados por intérpretes, durante a conversa privada, que foi registada, na parte inicial, por fotógrafos acreditados junto da Santa Sé e pelo Centro Televisivo do Vaticano.
A seguir ao encontro com Sua Santidade, o Presidente Obama avistou-se com o Secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, que se encontrava acompanhado do arcebispo Dominique Mamberti, Secretário para as Relações com os Estados.
A delegação de Obama incluiu John Kerry, Secretário de Estado dos EUA, e a conselheira para a segurança interna, Susan Rice. Kerry, por sua vez, cumprimentou o Papa como “católico” e também se se confessou um “grande admirador” do Bispo de Roma pelo que ele tem feito “pela Igreja” e por “todo o mundo”.
O encontro entre os dois chefes de Estado concluiu-se com a tradicional troca de presentes: Francisco ofereceu uma cópia da sua exortação apostólica ‘Evangelii Gaudium’ (A Alegria do Evangelho) e o presidente norte-americano retribuiu com a oferta de sementes do jardim da Casa Branca, numa caixa feita com madeira da primeira catedral dos EUA, em Baltimore.
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Tanto a Sala de Imprensa da Santa Sé como os serviços de informação da Casa Branca emitiram comunicados sobre o evento.
O serviço de informação do Vaticano refere que “durante as conversações, que decorreram numa atmosfera de cordialidade, se trocaram impressões sobre alguns temas atinentes à atualidade internacional e se formulou o desejo de que nas zonas de conflito se respeitem o direito humanitário e o direito internacional e se alcance uma solução negociada entre as partes em confronto”.
Já no referente ao “contexto das relações bilaterais e da colaboração entre a Igreja e os Estados” – refere o predito comunicado – “foram abordadas questões relevantes para a Igreja no país, tais como o exercício dos direitos à liberdade religiosa, à vida e à objeção de consciência, e a reforma em matéria de emigração”.
Por último, a nota oficial salienta que “se exprimiu o compromisso comum para a erradicação do tráfico de seres humanos no mundo”.
– (cf http://press.vatican.va/content/salastampa/pt/bollettino/pubblico/2014/03/27/0216/00478.html)
Já a Casa Branca destaca o facto de ser esta a primeira vez que o Presidente se encontra com o Papa Francisco. Porém, insere o encontro, que decorreu em clima de franca e cordial discussão, no âmbito do périplo presidencial pela Europa e pela Arábia Saudita, de que faz parte também a receção no Quirinal por parte do seu inquilino, o Presidente Giorgio Napolitano, no quadro das relações bilaterais entre os Estados Unidos e a Itália. De tal receção consta um almoço de trabalho, seguido de uma reunião com o Primeiro-Ministro Matteo Renzi na Villa Madama. Integra ainda a agenda presidencial norte-americana uma vista ao Coliseu, o maior anfiteatro do Império Romano, que Obama considera notável e inesquecível.
Além disso, o Presidente recebeu na embaixada dos Estados Unidos em Roma os funcionários e famílias dos Estados Unidos que representam o país em Itália, na Santa Sé e nas agências das Nações Unidas em Roma.
Quanto ao conteúdo do diálogo com o Papa, o Presidente americano dá-lhe o devido relevo em conferência de imprensa, transcrito no site da Casa Branca. Obama, ao contrário da nota Vaticana, fala na primeira pessoa do singular e afirma que a maior parte do tempo da conversação entre os dois interlocutores se centrou em “duas preocupações centrais” do Papa: a pobreza (the issues of poor), com os problemas afins – da marginalização, da falta de oportunidades e da situação de crescente desigualdade –; e os conflitos no mundo, com a situação alargada de uma paz ilusória. Mas o líder norte-americano não deixa de salientar a “empatia” que é visível na forma de estar e de se relacionar de Francisco e a crença no estabelecimento e manutenção de laços de fraternidade entre as pessoas e sociedades, inspirada no ser cristão.
(cf http://www.whitehouse.gov/blog/2014/03/27/day-4-president-travels-rome-meets-pope)
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Adicionalmente, sabe-se que o Presidente Barack Obama convidou o papa Francisco para visitar os Estados Unidos, durante o histórico encontro entre os dois líderes no Vaticano. “Eu convidei-o e animei-o a visitar os Estados Unidos e disse que as pessoas ficarão encantadas em poder vê-lo” – comentou durante a conferência de imprensa conjunta com o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi, em Roma – ao que o inquilino oficial do Palácio Apostólico teria respondido em castelhano: “Porque não?”.
Esta foi a 28.ª vez – informa o Vaticano – que um presidente dos Estados Unidos se encontrou com o Papa e Obama é o 12.º líder dos EUA a fazer uma visita oficial ao Vaticano, onde já tinha estado em julho de 2009, em conversações com Bento XVI.
O primeiro foi Woodrow Wilson, que lançou a ideia da Sociedade das Nações e que foi recebido pelo Papa Bento XV, a 4 de janeiro de 1919, depois do fim da Primeira Guerra Mundial. 
A audiência seguinte a um Chefe da Casa Branca aconteceu 40 anos depois, sob o pontificado de João XXIII, que recebeu o Presidente Eisenhower a 6 de dezembro de 1959. Seguiu-se a audiência de Paulo VI a John Kennedy, primeiro Presidente católico dos Estados Unidos, a 2 de julho de 1963. O Papa Montini viria a receber sucessivamente no Vaticano outros três Presidentes – Lyndon Johnson (que tinha já encontrado em 1965, a quando da sua visita à ONU), a 23 de dezembro de 1967; Richard Nixon, duas vezes, em 2 de março de 1969 e a 29 de setembro de 1970; e, por fim, Gerald Ford, a 2 de junho de 1975.
Numerosas foram as audiências de João Paulo II aos Presidentes americanos durante o seu longo pontificado. A primeira foi a Jimmy Carter, recebido a 21 de junho de 1980, depois do encontro na Casa Branca em 1979. Duas foram as visitas de Ronald Reagan, sob cuja presidência a Santa Sé e os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas ao mais alto nível, a 10 de junho de 1984 – a 7 de junho de 1982 e a 6 de junho de 1987. Seguiram-se as duas audiências a Jorge Bush Sénior, a 27 de maio de 1989 e a 8 de novembro de 1991, e uma a Bill Clinton, a 2 de junho de 1994. 
George Bush Júnior foi recebido pelo Papa Wojtyla três vezes: a 23 de julho de 2001 (em Castel Gandolfo), a 28 de maio de 2002 e a 4 de junho de 2004, quando entregou ao Pontífice a Medalha Presidencial da Liberdade. Fez duas visitas ao Vaticano sob o pontificado de Bento XVI: a 9 de junho de 2007; e a 13 de junho de 2008, depois do encontro de 15 e 16 de abril em Washington, no início da visita pastoral do Papa aos Estados Unidos. 
Esta visita de Obama, que recebera, na sua primeira visita em 2009, como presente do Papa Bento XVI, a “Dignitatis Personae”, instrução da Congregação para a Doutrina da Fé sobre algumas questões de Bioética”, enquadra-se numa complexa fase das relações da atual Administração da Casa Branca com a Igreja dos Estados Unidos marcada, de modo particular, pela controvérsia sobre a aplicação da reforma sanitária (The Patient Protection and Afordable Care Act), a resolver localmente (embora sob a égide vaticana), na parte relativa às regras atinentes à obrigação de cobertura sanitária da interrupção voluntária da gravidez e dos meios anticoncecionais e a outras questões no epicentro do debate público no país, como a legalização dos matrimónios homossexuais. 
(http://pt.radiovaticana.va/news/2014/03/26/presidente_barak_obama_recebido_esta_manh%C3%A3_em_audi%C3%AAncia_pelo_papa_no/por-785158)
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Perante a informação acabada de expor, ocorre-me discorrer um pouco em jeito de reflexão. Apesar do diminuto poder temporal do Papa, os Chefes de Estado visitam-no. Quais serão as verdadeiras motivações? Os líderes de países católicos poderiam invocar o dever de satisfação dos interesses dos seus governados; os de países com outras religiões cristãs poderiam aduzir o acompanhamento da questão ecuménica; os de outras religiões e culturas poderiam sustentar a sua postura no diálogo das culturas e permeabilidade dos fatores civilizacionais.
Entretanto, afigura-se-me haver outro tipo de razões. Os interesses, já que passam por Itália e, em especial pela cidade de Roma e arredores, inúmeros milhares de pessoas (a coberto do turismo, negócios, investigação científica e histórica, santuários, situação peninsular e marítima, pronto de cruzamento de movimentações, tradição multissecular…), implicam o bom relacionamento entre Estados e o Vaticano, embora minúsculo em termos territoriais, é um Estado soberano, grande em poder formal, em património histórico-artístico-cultural e em prestígio internacional.
Por outro lado, a lição da democracia ensina que todas as entidades que ocupam lugar de relevo internacional têm direito à palavra (e quiçá o dever da palavra) nos competentes areópagos internacionais. Depois, além de ser notória a presença institucional (maioritária ou não) e ativa (nomeadamente ao nível da ação social e na ligação às organizações populares de base) em todo o mundo, é consensual o papel desempenhado pela Igreja Católica em prol da paz, da luta pela erradicação da miséria e da salvaguarda dos direitos fundamentais.
Se a voz da Igreja é incómoda tantas vezes, nem por isso deixa de ser escutada por inúmeros setores da população mundial, enquanto representante de tendência de pensamento e pulsação, referencial de acolhimento, espaço de esperança, vez e voz dos rejeitados ou postos de parte, testemunha atenta dos dramas e tragédias por que passa a humanidade. Por isso, os poderes sentem (sincera ou hipocritamente) que é temerário não a ouvirem. E também, porque, na dirimição de conflitualidades, torna-se útil a intervenção de entidade que não tenha interesse imediato em nenhuma das soluções de parte.
No caso Obama/Francisco, quem se der ao cuidado de analisar a versão romana e a americana, além da divergência do discurso gramatical, já apontada, e da convergência de alguns conteúdos genéricos (cordialidade, franqueza…), encontrará diferenças curiosas: o Vaticano, para lá da necessidade do respeito pelo direito humanitário e pelo direito internacional nas zonas de conflito e da necessidade de alcançar uma solução negociada entre as partes em confronto, sublinha o respeito pelo exercício dos direitos à liberdade religiosa, à vida e à objeção de consciência, e a necessidade da reforma em matéria de emigração; Obama, por seu turno, salienta que a maior parte do tempo foi dedicada a “duas preocupações centrais” do Papa (a pobreza, com os problemas afins da marginalização, da falta de oportunidades e da situação de crescente desigualdade; e os conflitos no mundo, com a situação alargada de uma paz ilusória). E o resto do tempo, trataram de quê? Onde ficaram os direitos? Será a hipocrisia da astúcia americana?

Mas o Vaticano não foi menos astuto. A nota vaticana não releva em espécie os conteúdos de Obama. Para quê, se eles são consensuais? Por outro lado, o líder americano olvida taticamente direitos fundamentais ou negociação entre partes nas zonas de conflito (prefere sanções económicas!) e parece ter de justificar-se: foi ao Papa, mas num périplo pela Europa e Arábia Saudita, com protocolo e trabalho com o Estado italiano, com os interesses americanos em Itália, Santa Sé e ONU. Papa, graças a Deus, esse não precisa de se justificar porque recebe Obama… é a religião política. É a política, senhoras e senhores, com religião! 

quinta-feira, 27 de março de 2014

O Nobel da Economia e a reestruturação da dívida portuguesa

O prémio Nobel da Economia em 2001, Joseph Stiglitz, defendeu no dia 27 de março, em Macau, uma reestruturação ‘profunda’ da dívida soberana de Portugal, ao mesmo tempo que teceu duras críticas às políticas de austeridade impostas pelas ‘troikas’ aos países com programa de ajustamento na Europa. Entretanto, por cá, o caseiro fenómeno dos 74 subscritores do manifesto pela reestruturação/renegociação é considerado como quase crime de lesa-pátria ou, no mínimo, os autores formais daquele documento político são apodados de irresponsáveis pela situação a que o país chegou, por via de erros de antanho, e agora mal arrependidos dos erros de governação, mas reconvertidos a uma postura demagógica e fautora da imagem do incumprimento no exterior.
Porém, o insigne orador no Fórum e Exposição Internacional de Cooperação Ambiental de Macau (MIECF), que arrancou na quinta-feira e se prolonga até sábado, declarou aos jornalistas: “É preciso fazer uma reestruturação e, quando a fizerem, devem fazer uma reestruturação profunda. Se não for suficiente, vão voltar a ter problemas daqui a três anos, tal como a Grécia teve” – são palavras de Joseph Stiglitz que podem ser lidas no Jornal de Notícias, de 27 de março.
Apontando o caso da Grécia, assegurou que a sua dívida precisava mesmo de uma reestruturação, argumentando que “não havia outra saída”. No entanto, apontou o dedo ao erro cometido: “Não a fizeram, de uma forma tão profunda como deveriam ter feito. E, por isso, tiveram uma segunda reestruturação e estão a discutir agora uma terceira e hoje o Produto Interno Bruto da Grécia é cerca de 25% inferior ao que era antes da crise”. Mas os portugueses sempre ouviram o pregão governamental de que “nós não somos a Grécia”, esquecendo-nos de que a todo o momento o podemos vir a ser, se é que já não o somos.
Embora, ao ser questionado se assinaria o documento dos 74 magníficos a apelar à reestruturação da dívida pública portuguesa (que já recebeu o apoio de vários economistas de renome internacional), tenha respondido não o conhecer, não deixou de assinalar a analogia entre os países e as empresas. “Os países tal como as empresas – afirma – quando ficam sobre-endividados, precisam de um 'recomeço' e isso significa reestruturar”.
Nestes termos, evocou o exemplo da Argentina, de cuja dívida apoiou a reestruturação, lembrando que este país se encontrava na mesma situação que Portugal tem hoje e que mereceu uma reestruturação “profunda”. Ora, se se faz uma reestruturação superficial, pouco tempo depois tem de se proceder a outra. Nada que em Portugal se não tenha afirmado por quem vem avisando os governantes.
Continuando a glosar o caso do aludido país sul-americano, sublinhou que “a Argentina teve uma reestruturação muito profunda e o resultado que obteve – durante o período desde 2003 até à crise financeira global [em 2008] – foi um crescimento de 8%, o mais rápido crescimento em qualquer país do mundo, à exceção da China”.
Criticando a falsa ingenuidade dos governantes europeus de países em ajustamento, entende que há algum crescimento que é tão diminuto e tão lento que se pode tornar ilusório. “Quando falo com pessoas de governos de países como Espanha ou Portugal – comenta Stiglitz – eles dizem: ‘As coisas estão a melhorar. A crise acabou’. E, em certo sentido [estão]: Eles estavam a cair de um precipício e deixaram de cair e começaram a crescer”.
Contudo, como sustentou o Nobel da Economia, com quem alinha António Costa (a ajuizar pelas suas declarações recorrentes do programa “Quadratura do Círculo” na SIC Notícias), “o crescimento é tão lento que, a este ritmo, nunca mais vão voltar à normalidade. Mas, mesmo se começassem a crescer rapidamente ia demorar anos e anos”. Nada que o Presidente da República não tenha prevenido, como escreveu no prefácio ao último livro dos seus roteiros presidenciais, apesar de muitas vezes se ter apresentado como o ministro da informação do XIX governo constitucional.
Mas atente-se nas palavras referido eminente economista: “Penso que as políticas que têm sido impostas pela ‘troika’ são contrárias às políticas sustentáveis. São políticas que farão com que o crescimento seja mais difícil no futuro”.
E a Europa, nas suas palavras não sai bem na fotografia: “O preço que estes países estão a pagar, particularmente os jovens, é enorme” – afirmou o economista laureado pelo Nobel, que, na intervenção que proferiu na abertura do MIECF, já tinha estabelecido um paralelismo entre a atual crise na Europa e a Grande Depressão.
Que mais necessidade tem o Governo de testemunhos para arrepiar caminho e passar a defender os interesses de Portugal na linha da razoabilidade negocial, à luz dos ditames do são realismo e do mutualismo?
Porém, parece que os políticos portugueses parecem inscrever-se no quadro de honra dos políticos mundiais, que, mesmo quando ela está bem à vista, “nada aprendem com a História e cometem, por isso, os mesmos erros dos seus antecessores” (Bill Fawcett, in Os 100 Grandes Erros da História. 3.ª ed. 2013: Clube do Autor). Ou, como afirma George Santanaya (apud Fawcett, op cit): “os que não conseguem aprender com a História estão condenados a repeti-la”.

Estaremos a militar a sério sob a égide de uma ingovernabilidade hereditária? Ou estaremos a ser presa de governantes que, herdeiros de uma atávica paroquialidade provinciana, mais não sabem do que governar em regime de navegação à vista, não se coibindo de “por dá cá aquela palha” se atirarem aos cofres pessoais e familiares daqueles que, segundo o preceito bíblico, comem o pão com o suor do seu rosto (cf Gn 3,19)?

A declaração dos bispos da COMECE sobre as eleições europeias

Os bispos da COMECE (Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia), em 2009, afirmaram que, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a UE estava finalmente preparada para enfrentar os desafios urgentes da próxima década (2011-2020). Nessa ocasião, saudaram a escolha de Herman Van Rompuy para primeiro Presidente do Conselho Europeu, assim como a de Catherine Ashton como alta representante para a política externa da União Europeia. 
Entendiam os bispos que aqueles dois novos representantes da UE eram convidados a desenvolver a sua ação “a favor do bem comum e da dignidade humana”, conscientes que são da “vocação histórica da União Europeia voltada para a paz e para a justiça no mundo inteiro”.
Os bispos tomaram e tomam a palavra sobre a Europa por duas razões: a primeira é que na Europa dos cidadãos todos têm direito à palavra, quer individualmente considerados, quer enquadrados nas organizações a que pertencem; a segunda é que o art.º 17.º do Tratado de Lisboa “reconhece a identidade e o contributo específico das Igrejas e irá dar continuidade ao diálogo”.
Neste contexto ideático e justificativo, a conferência dos bispos da COMECE sentiu-se na obrigação e no direito de produzir uma declaração sobre as próximas eleições para o Parlamento Europeu (que terão lugar de 22 a 25 de maio de 2014, em Portugal a 25), que pode ser lida na agência Ecclesia, na página de hoje, 27 de março.
Reconhecendo que elas terão “grandes implicações para aqueles que vão conduzir a União ao longo dos próximos anos, declaram que “é essencial que os cidadãos da UE participem do processo democrático por meio do seu voto no dia das eleições”.
A meu ver, não deveriam ser apenas os cidadãos a ler e a ter em conta esta palavra dos bispos católicos, mas também os partidos políticos, em razão da obrigação que lhes cabe no sentido da mobilização dos cidadãos para a participação nos atos eleitorais – obrigação prévia à da apresentação dos seus projetos próprios.
Os partidos devem saber e ensinar aos eleitores que, como referem os prelados, “a aproximação das eleições oferece ao conjunto da sociedade europeia a oportunidade de debater as questões socioeconómicas centrais que irão moldar a União nos próximos anos” (e não pretender aproveitar o momento para “dar pancada” nos governantes dos respetivos Estados-Membros ou lhes apresentar os desportivos cartões – amarelo ou mesmo vermelho). Quanto aos cidadãos, os deveres eleitorais são atribuições de todos os que estão em idade eleitoral, ou seja, no gozo dos direitos civis e políticos – pelo que nenhum eleitor, católico ou não, tem o direito de ficar em casa refugiando-se no “estatuto” de abstencionista.
Por isso, os bispos da COMECE, quiseram fornecer uma “orientação ao eleitor da UE na formação da sua consciência” aproveitando o ensejo para destacar algumas “questões de relevo” e avaliá-l­as “sob o prisma da doutrina social da Igreja” (Pode a todo o momento aceder-se ao site da Santa Sé na página dos textos fundamentais e ler-se o longo Compêndio da Doutrina Social da Igrejahttp://www.vatican.va/), esperando que o seu juízo “possa ser igualmente escutado por todos os homens e mulheres de boa vontade empenhados no êxito do projeto europeu” e mesmo “por aqueles que se candidatam nas presentes eleições para o Parlamento Europeu”.
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Nestes termos, enumeram as seguintes condições gerais, em número de quatro, como, a seguir, se explana:
− “Votar é ao mesmo tempo direito e dever de cada cidadão da UE”. Por isso, deixam o apelo, sobretudo aos jovens que vão votar pela primeira vez, para que participem nos debates e votem.
− “É importante que aqueles que aspiram a ser eleitos pela primeira vez ou que buscam a reeleição para o Parlamento Europeu estejam cientes dos danos colaterais da crise económica e bancária iniciada em 2008”. Sendo assim e dado que “o número dos ‘novos pobres’ cresce a um ritmo alarmante”, é necessário ter em conta as palavras do Papa Francisco sobre “a difícil situação dos pobres e vulneráveis, jovens e pessoas com deficiência, não esquecendo aqueles recentemente empurrados para a pobreza pela crise”.
− “A mensagem cristã é de esperança”. A este respeito citam a exortação de João Paulo II, Ecclesia in Europa, em que se declara que “é com uma confiança firme num futuro melhor que a Igreja aborda o desafio europeu” apelam a que, em razão da “visão nobre da humanidade” em que se inspira o projeto europeu, todos – os cidadãos, comunidades e até mesmo os Estados-­nação – sejam “capazes de pôr de lado o interesse particular em busca do bem comum”.
− “A temperança é uma das virtudes naturais no centro da espiritualidade cristã. Assim sendo, propõem a criação de uma “cultura de moderação” que inspire “a economia social de mercado e a política ambiental”, levando a que “as pessoas em situação de pobreza real participem de uma forma mais equitativa na distribuição dos bens”.
***
Depois destas considerações gerais, os prelados da COMECE, elegeram áreas específicas da política europeia para a reflexão dos concidadãos:
O princípio da subsidiariedade. Este pilar básico da família única de Estados-­nação que constitui a UE, não pode ficar em risco por causa do movimento em direção à unidade, o qual também não deverá sacrificar as tradições de cada Estado-nação.
O outro pilar da União, a solidariedade. Enquanto princípio fundamental da doutrina social da Igreja, é preciso que presida à política, na UE, a todos os níveis, entre nações, regiões e grupos populacionais, porque a solidariedade é a urgência deste mundo cada vez mais divido entre a super-riqueza e o sobre-empobrecimento.
3. O respeito pela dignidade do homem. Decorre de uma visão da humanidade que deve sustentar todas as áreas da política socioeconómica e levar a apoiar a vida em qualquer uma das fases da sua existência, bem como a proteger a família, núcleo fundamental da sociedade.
4. O impacto do movimento migratório – interno e externo – na vida dos indivíduos e da sociedade. A fronteira externa da União europeia é comum. Por isso, a responsabilidade de acolhimento e integração é responsabilidade de todos e cada um dos Estados-membros, sempre no respeito dos direitos humanos e com um tratamento humano, mobilizando para o efeito as organizações das Igrejas, que também são parte interessada na promoção do bem comum.
5. O dever de guardiões da criação. Este dever leva-nos a reiterar a determinação de “respeitar e atingir as metas de emissão de CO2”, na da ótica da promoção do “entendimento internacional sobre as alterações climáticas”, do compromisso “com uma abordagem mais ecológica” e da insistência na “sustentabilidade” enquanto “elemento fundamental de qualquer política de crescimento ou desenvolvimento”.
6. A liberdade religiosa como caraterística fundamental de uma sociedade tolerante e aberta. Incluindo esta liberdade “o direito de manifestar as suas crenças em público”, a COMECE congratula-se “com as orientações da UE sobre a promoção e defesa da liberdade de religião e crença”, ao mesmo tempo que espera “que o novo Parlamento Europeu intensifique o seu trabalho nesta importante matéria”.
7. O domingo como dia comum de descanso semanal. Neste sentido, os representantes das conferências episcopais limitam-se a apoiar “todas as medidas para proteger o dia comum de descanso semanal, que é o domingo”. Poderiam, entretanto, ter feito alguma referência à necessidade do descanso para quem trabalha, com vista ao restabelecimento das forças físicas e psíquicas, como não ficaria despropositada alguma reflexão sobre a teologia do tempo livre (ócio) enquanto momento de liberdade contra a tendência escravizadora do trabalho por parte da vertente selvática do neocapitalismo sem rosto e exercício do direito/dever de entrega ao culto da espiritualidade – ante um mundo que ou despreza os tempos de descanso ou os ocupa de todos os modos e feitios, originando outras formas de servidão.  
8. O impacto profundo das alterações demográficas na vida da UE. Sem pessoas não há Estados, sem Estados não há União Europeia. Sendo assim, os bispos pretendem cuidados da qualidade para os idosos, a que eles têm direito (não sendo lícito descartar pessoas que já deram muito à humanidade e continuam a constituir a reserva da sabedoria experiencial e, tantas vezes, académica) e políticas criadoras de novas oportunidades para os mais jovens.
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Finalmente, o episcopado da COMECE põe o dedo na ferida, alertando para o risco que a UE corre neste momento dramático, mas decisivo: a crise económica, resultante do colapso do sistema bancário de 2008, adensou as relações entre os Estados-Membros, lançou um premente repto ao dinamismo da solidariedade entre as partes da União, colocou na esteira da pobreza galopante um grande número de cidadãos e lançou a cizânia da frustração das perspetivas de futuro a muitos jovens.

Por isso, os bispos, instando a que se compareça em massa à boca das urnas no próximo ato eleitoral e se vote seguindo os ditames de uma consciência informada, apelam a que de modo algum seja abandonado ou posto em risco o projeto europeu. Um projeto solidário inspirado numa nobre visão da humanidade não pode soçobrar num mar de procelas ou nos caminhos deste mundo em que está a haver mais pedras que “caminho”.

Ingovernabilidade hereditária

O título desta perícopa ficaria mal aplicado se não fora aplicável à causa portuguesa. Ingovernabilidade remete para a impossibilidade de governar porque o “objeto” da governação não o permite, é insubordinado, é impaciente, não coopera, não se interessa pela causa pública. Ora bem, essa não é a verdade, mas é dessa verdade que os governantes se queixam: que não conseguem, que estão cansados, que as forças de bloqueio não permitem as reformas e por aí adiante. E esse mundo lá vai acreditando, por graça e obra dos nossos líderes (alguns de meia tigela), que somos herdeiros e fiéis depositários dos lusitanos, que viviam no cabo do mundo e que não se governavam nem se deixavam governar. Só que se esquecem de que não comiam deitados como os romanos, mas sentados, como convém a pessoas!
Lembro-me de, em 1977, ter lido, num dos escaparates da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, um relato piadético que referia que o povo português não se vergava às ordens do governo, porque, na sua lucidez, pensava que elas não eram justas e eficazes, pleno que lhe assistia a liberdade de não as acatar. Então, o Presidente da República e o Primeiro-Ministro teriam decidido dissolver o povo. É óbvio que tal narrativa não era verdadeira. Porém, revelava a tentação de quem governa fazer migrar para os governados as inépcias de sua atividade de condução do país.
As pessoas que têm memória bem se recordam da tónica governativa até 1982: o país estava ingovernável porque o Conselho da Revolução, apoiado em parecer técnico da Comissão Constitucional, declarava a inconstitucionalidade das sucessivas propostas de lei da delimitação do setor público e do setor privado. E o governo de apoio parlamentar minoritário de Cavaco Silva (o primeiro) cantava a ladainha da impossibilidade das reformas por causa da maioria que as inviabilizava. No entanto, a Assembleia da República discutiu e aprovou a Lei de Bases do Sistema Educativo (lei n.º 46/86, de 14 de outubro), a qual com três alterações cirúrgicas se mantém em vigor nos dias que hoje vivemos. E quem não se lembra de, nos tempos do Congresso Portugal e o Futuro, o então chefe do governo bradar: “Deixem-nos trabalhar”?
Ora todos sabem que: o povo aceitou sem se opor, embora fosse refilando, à descolonização em África; aderiu sem pestanejar à CEE, à CE e à UE – gastando da melhor forma possível sem grande fiscalização os fundos europeus – enquanto avançava a destruição da agricultura, das pescas, da marinha comercial e da marinha de guerra; seguiu pacatamente as indicações de investimento público ora dito faraónico, os dez estádios de futebol, as cinco linhas do TGV (reduzidas a duas e a nenhuma), o aeroporto da Ota, de Alcochete ou da Portela + um, as SCUT, os cinco submarinos (reduzidos a dois), com contrapartidas nebulosas; e agarrou a onda de consumismo e o crédito fácil. Entretanto, achara natural a miraculosa entrega de Macau à China e acompanhou com desesperança, dor e alegria o processo de Timor Leste. E, quando vieram os homens da troika de fora e os da de dentro, o povo, lá foi gritando, gemendo e chorando, galgando “criminosamente” umas escadarias, mas submeteu-se à “justa punição” de pagar com quase dois terços da sua bolsa (Não acreditam? Façam as contas! Claro que estou a falar do povo-povo…) porque lhe disseram que estava a viver acima das suas possibilidades e que era preciso honrosamente pagar àqueles senhores que fazem o favor de nos emprestar dinheiro. Ó Vítor Hugo, anda cá fazer uma nova versão d’ Os Miseráveis!
E, em julho do ano transato, o senhor das finanças renunciou porque se tinha enganado e reconheceu que não era capaz de levar a barca até Berlim. Porém, há dias, comunicou de boca bem aberta que o responsável pelo monstro era o bisavô da Dra Ferreira Leite. O senhor Dom Carlos, rei de Lisboa e arredores, encarregou-o de formar governo e ele cumpriu, mas não aceitou uma proposta de concertação com os “credores” externos (quer dizer, recusou-se a ser bom aluno) apresentada pelo então senhor da fazenda nacional, que se demitiu. Ora, o rei de Lisboa e arredores (do Minho a Timor), acabou por o exonerar ao fim de nove meses. Depois, foi só cometer erros e mais erros sob a batuta do defunto até ontem… Nunca pensei que uma orquestra tocasse em sucessão de anos e séculos (parecia-me que os músicos deviam estar juntos): só a dos políticos!
Penso que a venerável ministra das finanças de Durão Barroso cometeu os seus erros, mas não tinha que levar com essa “do lobo e do cordeiro”. Os homens e mulheres da minha terra, se estivessem presentes no fórum de discussão sobre estas matérias, teriam aconselhado a senhora a mandar o mago Gaspar aonde ele não queria ir (à missa todos os dias, por exemplo).
Só agora é que estou a topar: ela é uma das setenta e quatro figuras públicas que apôs o seu nome naquele manifesto da reestruturação /renegociação da dívida. É esta afronta que esta “perigosa esquerdista” fez aos reis magos do centro da Europa, bem representados em Lisboa. Não tem o direito de refazer a direção das agulhas do seu pensamento governativo. Foi uma das responsáveis (mulher, ainda para mais). Por isso, deve passar o resto da vida a carpir o luto da governação como as viúvas das nossas aldeias rurais. São estes os políticos do século XXI que têm um lugar no FMI?
Agora, umas alfinetadas nos credores. É ou não verdade que as ditas agências de rating, as que fazem as notações, não são financiadas pelos clientes (Portugal é um deles), que lhes pagam para que digam mal deles? Somos ou não contribuintes regulares do FMI, do BCE e da União Europeia? Sendo assim, é justo pagar-se já com o corte do pescoço, se for necessário? Quanto ao crédito fácil, incentivo ao consumo, investimento público, não foram os agora denominados credores que o incentivaram, ganhando com isso? Então, devem esperar um pouco mais, não?! A senhora Dona Alemanha relevantou-se de duas grandes guerras, inteiramente por si provocadas, e reunificou-se com a ajuda de quem? Os países do sul viraram-lhe as costas? Não teve um perdão de dívida em termos percentuais bem elevados? Não teve tempo de carência, moratórias e facilidade de juros e apoios reconstrutivos que fartassem os outros de paciência, abnegação e solidariedade? Querem enganar quem?
Contudo, temo que venha aí um perdão de dívida, não que quem tenha mais responsabilidades não deva pagar mais (porque é que o país tem uma dívida soberana em que estão empacotadas dívidas de banca e de empresas?), mas porque, se um grande bolo da dívida foi comprado por entidades nacionais, em que pontifica o Instituto de Segurança Social (através de diversos fundos, mesmo o de reserva), é de perguntar quem iria ficar sem o capital, que – não esqueçamos – é de trabalho acumulado que se trata!

Não apareça aí nenhum realizador a fazer novo filme de “E tudo o vento levou”!

segunda-feira, 24 de março de 2014

Promover emprego para garantir a solidariedade

Quando os portugueses, sem qualquer via referendária em nenhuma das suas fases de evolução, foram levados a aderir à então CEE (comunidade económica europeia), que passou a CE (comunidade europeia) e cristalizou como UE (União europeia), foi-lhes acenado com o binómio nevrálgico do dinamismo da organização que passámos a integrar: subsidariedade e solidariedade.
Quanto à primeira, cedo os portugueses a entenderam como “subsidiariedade”, que celeremente se transformou em “subsidiodependência”, muitas vezes concretizada por meios nada genuínos e pasto de abusos deploráveis, uns detetados a tempo, outros nem tanto. No que à segunda diz respeito, não sei se foram os cidadãos que ensinaram as autoridades europeias a inobservá-la ou se foi ao contrário. Restaria ainda indagar se a inobservância é matéria que não se ensina ou se é conteúdo que se aprende pelo mero exercício. O certo é que, se a subsidariedade consiste em cada um, cada estrutura de um determinado nível se encarregar de fazer tudo o que está ao seu alcance fazer e, subsidiariamente solicitar a entidade superior (ou seja com maiores possibilidades e recursos) e dela aceitar o apoio de que necessite, o qual, por princípio, não deveria ser negado nem dificultado caprichosamente, tal desiderato só terá sido conseguido quando autoridades nacionais, encarregadas de encaminhar e apadrinhar projetos, faziam orelhas moucas e caneta buliçosa a criar empecilho, ou a negar a comparticipação nacional. Tais situações, ao invés de criarem solidez na relação Estados-Europa e Europa-cidadãos, geraram desconfiança, espírito inquisidor, fraude, gestão de legalidade duvidosa. E a solidariedade entre cidadãos, entre Europa e cidadãos e entre Europa e Estados ficou a ver navios, como os franceses em Portugal quando a Corte da louca D. Maria I e do “brioso” D, João VI fugiu para o Brasil.
E, como consequência, os cidadãos deixaram de se interessar pelas matérias europeias e passaram a aproveitar as “euroeleições” para lançamento de umas vaias aos governos nacionais. Hoje “quem tem boca (não) vaia Roma”, mas vaia governo. A propósito, quem é que sabe a versão originária do provérbio “quem tem boca vaia Roma” (do verbo vaiar, gente!)? Hoje dava para vaiar Bruxelas, Estrasburgo ou Berlim. Mas os ministros preferem lá ir, mostrar os projetos, pedir o conselho, agradecer o apoio (a esmola, que é bem suadinha!)…
Porém, D. Manuel Linda, vogal da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, passa por cima deste discurso, para o qual não dispõe de tempo, e, como refere a agência Ecclesia, em 23 de março, na homilia da celebração eucarística a presidiu, exortou os católicos a que “promovam a partilha de bens e trabalho” (trabalho também é um bem; e “trabalho acumulado” chama-se “capital”).
No dia Nacional da Cáritas de 2014, o Bispo das Forças Armadas e de Segurança fala com a humildade do servo de Deus e a delicadeza do pobre:
“Queria, da minha parte, deixar apenas um apelo: que a luta contra a fome, sempre que possível, passe pela oferta de trabalho”.
E eu alvitro que o ouçam todos: os empresários, para que, em vez do lucro pelo lucro, se decidam a redimensionar “positivamente” as empresas, a ver se podem obter mais-valias, integrando mais colaboradores (Quando se fala em redimensionamento ou reestruturação, costuma ser somente para abater efetivos ao contingente de empresa!), não se valham facilmente da declaração de insolvência para abrir outra unidade empresarial a seguir, em seu nome ou em nome de outrem; os trabalhadores, para que não mascarem a situação a aproveitarem a condição de desemprego e se entregarem à "biscataria" ou estenderem abusivamente a mão à caridade. E todos ouçam o prelado que nos avisa com palavras de sabedoria: quem foge despudoradamente aos impostos; quem deve fiscalizar e não o faz ou se faz cúmplice de quem não cumpre, fechando os olhos, por vezes a troco de luvas; e os que nos desgovernam por não encontrarem outra maneira de gerir a coisa pública e de satisfazer encargos com a Europa, senão à custa do assalto useiro e vezeiro à bolsa de reformados e trabalhadores públicos.
Saibam os que dizem que nos governam duas coisinhas: primeiro, não nos entregámos à Europa pela mão de Mário Soares para sermos “bons alunos” (nem a Europa é propriamente uma escola decente), mas para praticarmos a subsidariedade e a solidariedade, sob o olhar ético dos zeladores do desígnio europeu, que falharam redondamente, impondo-nos gastos excessivos, crédito fácil e agora, em nome da “dívida soberana”, alegando que vivemos acima das nossas possibilidades, termos de pagar tudinho, “custe o que custar” e, se possível, hoje; segundo, têm de aprender quanto antes com o papa Francisco (já que o admiram tanto) a lição de Moisés (que negociava com Deus e lhe refilava em favor do povo), ou seja, tal como o homem que não seja capaz de negociar e refilar com Deus por causa do povo não pode ser bispo, também quem não é capaz de negociar e refilar com outrem (Europa, banqueiros, mercados…) em favor do seu povo não é digno de ser governante da lusa Pátria.
Ora, a Cáritas Nacional tem como lema ‘Unidos no amor, juntos contra a fome’, associando-se à grande campanha da Cáritas Internacional pelo “direito inalienável de todos à alimentação condigna”, para “combater a fome e lutar contra o desperdício alimentar”. E D. Manuel Linda, na linha daquele necessário lema, falou do “flagelo do desemprego” como “maior causador de empobrecimento social”. E explicou-se, justificando e ensinando: “Por isso, um emprego não só gera novas condições de vida para o próprio, mas também acaba por pôr a economia a funcionar, pois o produtor transforma-se num consumidor com poder de compra”. 
Porém, o prelado mostrou que não é ingénuo ao selecionar cirurgicamente os destinatários do seu apelo: dirigiu-se em particular, aos “pequenos e médios investidores, particularmente se cristãos”, partindo do princípio de que “não vale a pena perder latim com quem dita as regras férreas do mercado e com quem não conhece outra linguagem que não seja a do lucro”. Mas, por outro lado, o seu apelo é lancinante: “Sede ousados na generosidade”.
Em sintonia com a ideia de Francisco, que apresenta hoje a Igreja com a imagem do hospital de campanha em prol de uma humanidade estilhaçada, ferida ou doente – razão pela qual é preciso acudir aos seus órgãos vitais, com o risco de esquecer outros aspetos também importantes – o bispo escalpeliza o “egoísmo” individual”. E acusa-o de ter conduzido à construção coletiva de “uma cultura da indiferença, da insolidariedade e da não responsabilização pelas condições de vida do semelhante, do «salve-se quem puder»”. E uma Cáritas, que não foi criada especificamente para colmatar situações de emergência e de calamidade, mas para promover em regime de permanência, numa atitude de solidariedade, como marca da ação pastoral da Igreja, a distribuição cristã dos bens – a repartição justa do produto da terra ou do mar e do trabalho do homem – agora não pode entreter-se no puritanismo da sua missão permanente, mas ir à luta pelo homem, mesmo com armas enferrujadas, confiante em Deus e na Virgem.

Enfim, com mais sentido ético firmado nos valores axiais da humanidade, com mais solidariedade e menos solitariedade, com mais subsidariedade e menos subsidiariedade, com mais justiça e menos avareza, mais trabalho e menos diversão e mais sentido do outro, como “outro eu”, almejamos clamar ao mundo dos homens e mulheres de boa vontade que a fé da Igreja, que nós professamos, é indissociável daquele mandamento novo do Cristo “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” o qual, no dizer do antístite, tem de se “traduzir em gestos de solidariedade e de partilha”.