O Jornal de Notícias de hoje noticia que “o Tribunal da Relação de Guimarães ilibou um homem que tinha
sido condenado na primeira instância por um crime de injúria agravado, por ter
chamado ‘palhaços’ aos membros da Junta de Freguesia de Silvares, daquele
concelho”.
Efetivamente, eu não sei se o nosso código penal diz
expressamente que “chamar palhaço” a alguém é crime. E, como ensinam os mestres
de Direito, nullum crimen sine lege,
ou seja, ninguém pode ser condenado por crime que não esteja previsto de forma
tipificada na lei. Só que o código penal também não coloca lá como crime tantas
palavras pelas quais as pessoas são indiciadas, acusadas, julgadas e condenadas
porque insultaram, injuriaram e não sei que mais. E ninguém defende o alegado
criminoso porque tais palavras insultuosas não vêm lá mencionadas como crime no
dito código. A Comunicação Social tem propalado casos de docentes que são
infernizados (e só não entram na barra dos tribunais porque entram em acordo
com a outra parte) por alegados excesso de linguagem. Também já todos sabemos
que a escola está demasiado “judicializada” ou “patrocinada”, se quisermos.
Também quero dizer aos doutos Meritíssimos que o código não
tipifica como crime o “rifar um bacalhau” (pelo qual a tasca rifante pagou a multa de cerca de 300
euros) ou o “tirar do supermercado dois quilos de arroz”.
Afirmar que uma palavra polissémica proferida contra
elementos de uma junta de freguesia não pode ser considerada insultuosa porque
não pode ser julgada do lado do recetor é surreal. Será que o agressor (perdão,
o chateado pelas coisas da vida! É que a vida tem destas coisas…) quando clamou
“vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos escolheu”, disse para o lado “atenção,
que eu estou só a usar uma palavra polissémica”?!. Tanta palavra polissémica com
que poderíamos adornar a honra dos nossos ministradores da justiça (Atenção, que
eu estou só a evocar palavras polissémicas!). Peçamos, pois, a Sua Excelência a
Ministra da Justiça que organize um glossário dos vocábulos que serão
tipificados como crime (que nenhum se torne polissémico!); o apresente a
Conselho de Ministros; este o remeta, sob a forma de proposta de lei com a
devida exposição de motivos, ao Parlamento; este, depois da aprovação na
generalidade, da baixa à comissão respetiva para discussão e aprovação na
especialidade e votação global final em plenário, o envie ao Presidente da República
para promulgação; o Primeiro-Ministro o referende; e o Diário da República o
publique na Série I. É que sempre a culpa foi dos políticos.
Agora, deixemo-nos de coisas. É ou não é crime insultar a
autoridade? Os membros da junta de freguesia são ou não detentores do poder
político protegido pela Constituição da República Portuguesa? Pois, sim, Meritíssimos,
julguem, condenem, absolvam, dispensem do cumprimento da pena, suspendam a
pena, sobreponham as atenuantes aos factos, “ignorem” (aqui também é
polissémico!) a lei: façam como entenderem (Vossas Excelências é que aprenderam
a lei, o direito e a justiça no CEJ), mas não se expliquem como o fazem tantas
vezes. Depois, os Meritíssimos estudaram direito, não linguística, direito e
não moral. Volte-se ao grito de Apeles: ne
sutor ultra crepidam – não vá o remendão além da chinela! – estou em
contexto polissémico.
Este escrevente sapateiro remendão (polissémico, é óbvio), quando
estudou, sempre ouviu dizer que o insulto se gradua do lado de quem o recebe e
não do lado de quem o pratica; ao invés, a pena gradua-se inversamente do lado
de quem a merece – ou seja, quanto mais alto for o insultado, maior é o insulto,
mas quanto mais débil for ou se tornar o réu (hoje é o arguido), menor deve ser
a pena.
Nós já sabíamos que “é próprio da vida em sociedade haver
alguma conflitualidade entre as pessoas, sendo ‘normal’ que a animosidade
resultante dessas situações tenha expressão ao nível da linguagem”. Mas ser
normal, Meritíssimos, não quer dizer que seja correto. Também sabíamos que “uma
pessoa que se sente incomodada por outra pode compreensivelmente manifestar o
seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas”. É óbvio
que todos nós o compreendemos, mas não o podemos validar. Que “o Direito não
pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere
suscetibilidades do visado” não discuto. Mas duvido de que não possa ser
invocado. Mas para quê? Se é verdade o que refere a notícia, a Junta de Freguesia
também com a sua atitude terá azado a situação. Se calhar o tribunal superior
poderia ter ido por aí…
Entretanto, é mais “divertido” (termo polissémico!)
condenar a prisão um condutor com um nível de alcoolemia acima do permitido, enquanto
um carregador de contentores ébrio pode trabalhar com mais alegria e com maior
eficácia. É a vida da justiça!
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