terça-feira, 18 de março de 2014

As consequências dos referendos

Ao olhar para as consequências em perspetiva do recente referendo na Crimeia, ocorre-me uma pequena reflexão sobre referendo e suas consequências. Antes de mais, importa assentar na noção de referendo e distinguir este de outros instrumentos próprios das democracias.
A palavra referendo é um nome que provém do verbo latino refero (derivado de re+fero), excessivamente polissémico para assumirmos inequivocamente uma das suas aceções. Uma coisa é certa: a morfologia da palavra portuguesa remete para a noção de futuro e de obrigação ou necessidade inerente ao gerundivo do verbo latino. E aí parece que se tratará de ato de “trazer de novo”, “referir”, “trazer e levar” ou vice-versa, “entregar”. E, sim, o legislador, leva ao povo uma questão em concreto, o qual, ao pronunciar-se, lha devolve num determinado direcionamento.
 É óbvio que a ciência política, tendo-se inspirado na etimologia, tal como a generalidade das ciências, não fica presa nas brumas das etimologias e facilmente obtém meios de formulação dos seus conceitos.  Não se deve, entretanto, confundir o referendo com a “referenda ministerial”, prevista na Constituição para algumas matérias, sob pena da inexistência jurídica do ato, e que consiste na aposição da assinatura do Primeiro-Ministro, ou de quem legalmente o substitua, e do ministro da tutela num diploma promulgado pelo Presidente da República (cf artigo 140.º da CRP).
No caso em questão, referendo é um instrumento que a democracia representativa encontra para episodicamente se comportar como se democracia direta fosse – o que permite afirmar que as democracias que frequentemente o utilizem são democracias semidiretas. Enquanto as diversas matérias são votadas pelos representantes que o povo elegeu (a eleição, do verbo latino “eligo”, implica escolha e não somente uma resposta de “sim” ou de “não”) com base em programas supostamente ideológicos e pragmáticos, para alguns assuntos de relevante e excecional interesse, os cidadãos eleitores são chamados a pronunciar-se por sufrágio direto e secreto. E, nos países, que o levam a sério, as suas consequências serão análogas às dos demais atos eleitorais. Não me parece politicamente honesta a definição de consequências de vinculação ou não consoante o nível de participação eleitoral, quando a mesma definição se não faz relativamente a outros atos eleitorais.
Há quem distinga claramente entre referendo e plebiscito (do latim plebs+scito, saiba ou saberá o povo). Tal distinção tem sentido no direito latino em que o plebiscito é convocado antes da criação da norma (ato legislativo ou administrativo), e é o povo que, através do voto, aprova ou não a questão que lhe é submetida. Por regra, o plebiscito nacional visa a formulação de uma lei, ao passo que o plebiscito local visa a formulação de uma disposição administrativa. Por seu turno, o referendo é convocado após a edição da norma, devendo o povo ratificá-la ou não. Porém, no direito anglo-saxónico, os referidos termos “plebiscito" e "referendo” são usados quase como sinónimos, tornando-se a sua distinção obnubilada.
A experiência portuguesa parece seguir a obnubilação anglo-saxónica, como se verá a seguir.
A CRP (Constituição da República Portuguesa) dispõe, no artigo 115.º, que, sob proposta da Assembleia da República, do Governo – na esfera das respetivas competências – ou por iniciativa de um grupo de cidadãos dirigida à Assembleia da República, pode o Presidente da República convocar o referendo no qual serão chamados a votar todos os cidadãos recenseados no território nacional, o que exclui deste tipo de sufrágio os emigrantes. E os artigos 232.º e 240.º preveem a possibilidade de referendo, respetivamente, a nível regional e local.
Como em Portugal um referendo só é juridicamente vinculativo no caso de a participação ser igual ou superior a 50%, até à data nenhum o foi. No sufrágio sobre a regionalização e nos dois sobre a interrupção voluntária da gravidez (eufemismo para designar o aborto praticado nas condições previstas legalmente), a abstenção foi sempre superior a 50%.
Todavia, antes da realização do segundo escrutínio sobre o aborto, uma questão profundamente fraturante na sociedade portuguesa, o Governo comprometeu-se a legislar, independentemente do número de votantes, em consonância com a vontade da maioria dos que fossem às urnas; isto é, caso o resultado não fosse vinculativo (como não foi), o governo acataria a recomendação popular, atribuindo previamente um caráter vinculativo a ato que, per se, dele carecia. Por conseguinte, o Parlamento português aprovou, por ampla maioria, a Lei n.º 16/2007, de 17 de abril de 2007, que incorporou à legislação portuguesa o que fora recomendado pela população no referendo sobre o aborto realizado pouco antes.
Porém, sempre que o referendo foi convocado, já estava em franco avanço o estudo da norma, embora sem votação global final – o que dá a entender que o ato referendário nem configura em termos de pureza de ato o referendo nem o plebiscito. Quanto ao ato plebiscitário, a única matéria levada a plebiscito, de que me recorde, foi a Constituição Política, de 1933. E esta norma fundamental já estava mesmo elaborada, só não tinha entrado formalmente em vigor. Mas deixou sequelas na memória política coletiva:
Esse “plebiscito nacional”, como foi designado, ou referendo, como parece dever tecnicamente chamar-se, tornou-se um exemplo deplorável do uso perverso de uma verdadeira consulta popular. Não só as abstenções foram somadas à contagem das respostas de “sim” – ludibriando a vontade da maioria – como esse ato referendário tinha um caráter nitidamente “delegatório”, que serviu de cheque em branco para a institucionalização da Ditadura Nacional, doravante o regime do Estado Novo, sob a égide de Oliveira Salazar.
O uso delegatório do referendo não é permitido pelas modernas constituições democráticas, que instituem salvaguardas para evitar essas distorções. A CRP, entre nós, incorpora múltiplas salvaguardas para evitar o uso distorcido do referendo. Além da referida condição exigida para o caráter vinculativo, ficam excluídas da consulta popular várias matérias: as alterações à Constituição; as questões e os atos de conteúdo orçamental, tributário e financeiro; as matérias previstas nos artigos 161.º (exceto a matéria referente a tratados internacionais que não se refiram à paz e à retificação de fronteiras) e 164.º (exceto as bases do sistema de ensino). Por outro lado, estabelece-se que o referendo deve incidir sobre uma única matéria, a pergunta deve ser clara e submetida à apreciação prévia do Tribunal Constitucional.
Todavia, não podemos deixar de referir que, além de o nosso ordenamento constitucional acautelar com demasiados espartilhos os possíveis abusos do referendo, há um certo receio do referendo. Não se operou uma revisão constitucional que previsse o referendo ao tratado que estabeleceu a União Europeia, em 1992, apesar de o Presidente da República, ao tempo, ter pressagiado o “hão de arrepender-se”. Procedeu-se a uma revisão constitucional para possibilitar o referendo sobre matéria europeia, mas os poderes, apesar de os partidos o haverem prometido em campanha eleitoral, não levaram a referendo o Tratado de Lisboa, obviamente depois de terem olhado para a experiência europeia. Houve um país em que a mesma matéria europeia foi duas vezes consecutivas a referendo.
Outro entendimento há que, por vezes, divide a opinião pública e política portuguesa. Uns defendem que os temas fraturantes devem ser sempre sujeitos a referendo; outros, alegando que as matérias habitualmente catalogadas como fraturantes configuram direitos fundamentais, não aceitam facilmente essa exigência, argumentando que um direito fundamental não é referendável. Depois, sempre que há referendo, lá vêm as vozes daqueles que acusam o poder legislativo de que a discussão em sede própria já começou e outras a dizer que ainda o processo não chegou a seu termo, pelo que ainda há tempo de referendo. E ainda se regista, por vezes, a ginástica política de mau conselho a driblar o tempo político e degradar a imagem da seriedade do Parlamento, como foi o caso da coadoção.
Em minha opinião, penso que matérias que constem expressa e claramente de programa eleitoral de um partido que, por si só, ganhe eleições com maioria absoluta, não devem ser submetidas a referendo, uma vez que quem vota deve assumir a responsabilidade do voto. Havendo necessidade de decidir sobre matérias que não reúnam as condições anteriormente definidas, devem ser submetidas a referendo porque maioria relativa ou maioria absoluta resultante de forças partidárias coligadas após o conhecimento do ato eleitoral, embora garantam a representatividade aritmética do eleitorado, não correspondem à vontade maioritária cidadã e sociológica. Levado a cabo o referendo, ele deverá ter consequências de acordo com o sentido maioritário do voto validamente expresso. Outra forma de atuar significa que não se leva o povo a sério, que se brinca com coisas sérias e que não se ousa responsabilizar o abstencionismo. Por outro lado, sendo a regra da democracia o seguimento da vontade popular maioritária, embora com o escrupuloso respeito pelos direitos das minorias, não pode a vontade das minorias impor-se como norma ou conduta modelar.
Olhando para outros países, verificámos que alguns levam a sério o referendo como as eleições. A título de exemplo, recordo a Dinamarca, que, por via do referendo, ficou fora da Zona Euro, e a Suíça, que vai recolocar por via legislativa a problemática da imigração, em consequência de recente ato referendário.  
Quanto ao referendo na Crimeia, quero dizer que: os ucranianos o tentaram torpedear, os russos o resguardaram de forma intimidatória, colocando tropas à sua guarda, e os cidadãos da Crimeia não o levaram a sério. Vão a referendo sobre o “sim” ou “não” à independência em relação à Ucrânia. Ganha o “sim” pela esmagadora maioria de 96% e, a seguir, o Parlamento da Crimeia declara formalmente a independência da Crimeia e, ato contínuo, solicita a anexação formal à Federação Russa. Russos tudo aceitam, Estado Ucraniano reage mal, União Europeia e EUA ameaçam a Rússia com sanções. Já agora a sublevação ucraniana depôs governo eleito.

Afinal, referendo deve ou não ter “consequências consequentes”? E eleição, também ou não?!

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