quarta-feira, 12 de março de 2014

Guerrilha de interesses




Nos últimos anos, o mundo e a Europa, em especial, assistiram ao desencadear de sublevações em países cujos regimes pareciam inabaláveis enquanto os líderes fossem respirando. Terá havido mesmo sensação de alívio na Tunísia, na Líbia e no Egito, embora devesse ter sido em conta o facto de as preditas sublevações terem azado destruições materiais e sobretudo inúmeras vidas humanas. Por outro lado, a seguir a regimes ditatoriais, os sucedâneos não ficaram menos ditatoriais, não tendo passado as primaveras circum-mediterrânicas de primaveras marcelistas em contextos de início de milénio e de contornos e consequências menos incruentas, porque resultantes de posições mais radicais, de grupos de índole demasiado musculada para levar a bom termo a condução de populações que precisam de paz, conforto e progresso.
O caso mais visível do logro, aceite com progressivo sossego internacional, foi o do Egito. O novo líder revelou-se tão autocrático como o predecessor, mas a justiça fez ajoelhar perante si um ex-ditador invalidamente deitado a responder por crimes de repressão generalizada e por morte de civis. Deu o novo regime egípcio um espetáculo bastante parecido com o do términus da “democratização” do Iraque (multinacionalmente armada e invasiva). Aqui, o antigo ditador conheceu morte macabra infligida por meios exemplarmente cruentos e a nação iraquiana, cujo território corresponderá ao descrito no primeiro livro da Bíblia, manteve as vagas de destruição, muitas vezes na modalidade de ataque suicida de homens-bomba ou carros-bomba. E as tropas da força multinacional lá tiveram de proceder a um regresso a quartéis nacionais, genericamente como os nortenhos lusos soem dizer “de rabinho entre as pernas”. Dessa guerra “pró-democrática”, em nome da blaireana existência não existente de armas de destruição maciça ou massiva, os portugueses retêm a protocolar fotografia de Bush, Aznar e Blair nos Açores, com acordes de acompanhamento barrosinos, e a heroica intervenção humanitária da GNR, decorrente do compromisso nacional de Sampaio (de não se enviarem militares – fez valer a sua autoridade de comandante supremo das forças armadas) e internacional de Barroso de participar com homens e mulheres armados (honrou o compromisso dos Açores – fez valer a sua prerrogativa de condutor da política interna e externa).
Entretanto, os noticiários não têm parado de oferecer aos seus recetores o espetáculo de carnificina interna na Síria, apesar da multiplicação das iniciativas diplomáticas, das sanções políticas e económicas e das resoluções da ONU, satisfatoriamente vetadas por quem tem esse direito-prerrogativa comummente reconhecido, ou os apelos lancinantes dos sucessivos Bispos de Roma, das tomadas de posição de diversos grupos. E continuam as perdas de bens, os estropiamentos, as mortes e os refugiados.
Recentemente, eclodiu a sublevação na Ucrânia. Alegadamente, as oposições pretendiam que o líder celebrasse acordo de cooperação com a União Europeia; este, fiel à raízes, preferiu o acordo com a Rússia. O regime ucraniano estava sob o signo da alternância no poder, não resultante de processos pacíficos ou de clara expressão democrática. Apontam-se atuação autocrática e atos de corrupção a uns e a outros. E os líderes oscilam entre a tomada do poder, a destituição e o regresso, num misto de golpe de estado e processos eleitorais – ambos não genuínos.
Ultimamente, os opositores conseguiram um acordo de alegada pacificação de que resultou a fuga do chefe – que agora diz querer regressar (porque ainda é o presidente legítimo) e entregar a resolução da justiça sobre os acontecimentos a tribunais ocidentais e o esvaziamento dos poderes constituídos, com a entrega do poder a um líder interino até à realização de eleições gerais e presidenciais, nos termos constitucionais.
Coisas curiosas: um líder que nada quis com a União Europeia, agora quer a justiça dos tribunais ocidentais (parece que não será para resolver os problemas de política interna, mas para que induzam a punição dos que interferiram nos assuntos internos da Ucrânia); os russos podem intervir (mediante o acordo celebrado, com o envio de tropas para a Crimeia e para tácita ou expressamente ajudarem ao ato de referendo marcado para o próximo domingo, podendo acolher a decisão de anexação), mas os ocidentais não podem interferir, talvez por serem ocidentais; a União Europeia, que tem desprezado os países do Sul, explorando-lhes os recursos até ao último cêntimo, oferece disponibilidades à Ucrânia, enquanto os russos dizem não querer intervir, mas simplesmente facilitar as opções autónomas da Crimeia (Lindo! – exclamaria Durão Barroso. Porreiro, pá! – anuiria Pinto de Sousa.), e a diplomacia norte-americana assegura que, face às movimentações russas, têm os americanos de estar preparados para a resposta que vier a ser considerada necessária (Si vis pacem, para bellum – diriam os velhos Romanos).   
Afinal, o que faz mover estas diplomacias? Não será por certo a pureza teleológica da democracia, já que se sabe que os poderes até há pouco tempo constituídos resultaram de eleições populares. Se elas não foram suficientemente isentas e livres, é caso para perguntar se as eleições em países considerados campeões da democracia têm sido inteiramente livres: se a árvore se conhece pelos frutos, as árvores democráticas têm apodrecido muito precocemente (corrupção, gestão danosa, aparelhismo, compadrio, jogos dos blocos centrais de interesses, enriquecimento ilícito, branqueamento de dinheiros, fuga ao fisco, espoliação das classes médias). E o atual poder interino da Ucrânia tem, no seu seio, dirigentes que não correspondem em número à dimensão eleitoral das formações partidárias de que emergem e um partido de designação nacionalsocialista (leia-se neonazi) está a ganhar vulto no espectro eleitoral.
Entretanto, como a situação na Ucrânia continua tensa e incerta, as movimentações diplomáticas não se fazem esperar. A Casa Branca confirmou no domingo a deslocação na quarta-feira aos Estados Unidos da América do primeiro-ministro interino ucraniano, Arseni Iatseniouk, a convite de Barack Obama, o Presidente norte-americano, que pretende assim mostrar o reconhecimento do novo governo de Kiev. Por seu turno, a Crimeia convocou um referendo sobre a reunificação com a Rússia marcado para o próximo domingo dia 16 que, no entanto, foi considerado ilegal por Kiev e por diversos países, tais como Estados Unidos da América, Reino Unido, a França e Alemanha. Ao mesmo tempo, as coisas avançaram no sentido da autonomia e os dirigentes da Crimeia proclamaram a independência, sem desmarcar o referendo.
Recorde-se que a península da Crimeia, em nome da proteção da população russa, que é maioritária, está a ser controlada desde o final de fevereiro por forças russas, que estão a consolidar a sua posição a cada dia que passa. A acrescentar a esta situação, segundo o Público de 19 de março, vários ativistas da antiocupação russa foram raptados nos últimos dias na Crimeia. Um deles foi Anatoli Kovalski, que, juntamente com Andrei Shekun, se viu, no domingo, levado num carro das milícias pró-russas, que o intercetaram e agrediram na estação de comboios de Simferopol.
“A União Europeia tem-se mostrado chocada, angustiada – com muitos estados de alma, mas com pouca ação” – opina o diretor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, José Miguel Sardica, que acrescenta que “para além das dificuldades económicas, políticas, religiosas e linguísticas no local, o conflito evidencia a fragilidade da política internacional”.
Da santa Sé sabe-se que o Secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin, declarou à Rádio Vaticano que só o diálogo entre as partes poderá encontrar “soluções negociadas” e acalenta a esperança de que tal seja possível: “Se é possível dar um contributo também a nível das relações inter-religiosas a favor da população, nós estamos prontos a fazê-lo e esperamos que se possa fazer. Eu creio que na Ucrânia se pode procurar uma solução em que cada uma das partes possa salvaguardar os seus interesses e o bem do país e das suas populações.” – disse.
Entrementes, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se esta segunda-feira pela 5.ª vez em 10 dias, com a crise ucraniana na agenda, e, na próxima quinta-feira o Conselho de Segurança vai receber o primeiro-ministro ucraniano. Moscovo e Washington mantêm-se no impasse nas conversações.
É que, embora ninguém, o confesse claramente, as diligências internacionais configuram a guerrilha ou guerra encoberta de interesses. Os russos querem manter o acesso ao Mar Negro, o único porto de águas quentes de que dispõem. E a via de acesso é a Crimeia. Por outro lado, querem precaver-se de qualquer tentativa de avanço tático dos americanos, originável da chegada da alçada da NATO à Ucrânia. A Alemanha e outros países da Europa Central precisa da Ucrânia para a passagem do gás natural, vindo de leste, e do manancial da produção de cereais que o par Ucrânia-Crimeia produzem em franca abundância. E a Ucrânia quererá manter o território da Crimeia que lhe fora oferecido pelo líder do poderio soviético de então e afirmar a sua posição no concerto das nações europeias, escoando os seus produtos e recebendo, em contrapartida, os benefícios da modernização económica. E aqui se dividem as opções de método e de alianças para concretizar este desígnio.
Portugal, tranquilizado porque o seu gás natural vem do Magrebe, vai fazendo as declarações da conveniência. E o diálogo ansiado pelo Vaticano não terá êxitos se os interesses internacionais não se derem por satisfeitos.

Até quando é lícito às instâncias internacionais assistirem impávidas ao desbaste das populações, em nome da não ingerência, mas a escavar clandestinamente o túnel da satisfação de interesses setoriais?

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