Nos últimos anos, o mundo e a Europa,
em especial, assistiram ao desencadear de sublevações em países cujos regimes pareciam
inabaláveis enquanto os líderes fossem respirando. Terá havido mesmo sensação
de alívio na Tunísia, na Líbia e no Egito, embora devesse ter sido em conta o
facto de as preditas sublevações terem azado destruições materiais e sobretudo
inúmeras vidas humanas. Por outro lado, a seguir a regimes ditatoriais, os
sucedâneos não ficaram menos ditatoriais, não tendo passado as primaveras
circum-mediterrânicas de primaveras marcelistas em contextos de início de
milénio e de contornos e consequências menos incruentas, porque resultantes de
posições mais radicais, de grupos de índole demasiado musculada para levar a
bom termo a condução de populações que precisam de paz, conforto e progresso.
O caso mais visível do logro, aceite
com progressivo sossego internacional, foi o do Egito. O novo líder revelou-se
tão autocrático como o predecessor, mas a justiça fez ajoelhar perante si um
ex-ditador invalidamente deitado a responder por crimes de repressão generalizada
e por morte de civis. Deu o novo regime egípcio um espetáculo bastante parecido
com o do términus da “democratização” do Iraque (multinacionalmente armada e
invasiva). Aqui, o antigo ditador conheceu morte macabra infligida por meios
exemplarmente cruentos e a nação iraquiana, cujo território corresponderá ao
descrito no primeiro livro da Bíblia, manteve as vagas de destruição, muitas
vezes na modalidade de ataque suicida de homens-bomba ou carros-bomba. E as
tropas da força multinacional lá tiveram de proceder a um regresso a quartéis
nacionais, genericamente como os nortenhos lusos soem dizer “de rabinho entre
as pernas”. Dessa guerra “pró-democrática”, em nome da blaireana existência não existente de armas de destruição maciça ou
massiva, os portugueses retêm a protocolar fotografia de Bush, Aznar e Blair
nos Açores, com acordes de acompanhamento barrosinos, e a heroica intervenção
humanitária da GNR, decorrente do compromisso nacional de Sampaio (de não se
enviarem militares – fez valer a sua autoridade de comandante supremo das
forças armadas) e internacional de Barroso de participar com homens e mulheres
armados (honrou o compromisso dos Açores – fez valer a sua prerrogativa de
condutor da política interna e externa).
Entretanto, os noticiários não têm
parado de oferecer aos seus recetores o espetáculo de carnificina interna na
Síria, apesar da multiplicação das iniciativas diplomáticas, das sanções
políticas e económicas e das resoluções da ONU, satisfatoriamente vetadas por
quem tem esse direito-prerrogativa comummente reconhecido, ou os apelos
lancinantes dos sucessivos Bispos de Roma, das tomadas de posição de diversos
grupos. E continuam as perdas de bens, os estropiamentos, as mortes e os
refugiados.
Recentemente, eclodiu a sublevação na
Ucrânia. Alegadamente, as oposições pretendiam que o líder celebrasse acordo de
cooperação com a União Europeia; este, fiel à raízes, preferiu o acordo com a
Rússia. O regime ucraniano estava sob o signo da alternância no poder, não
resultante de processos pacíficos ou de clara expressão democrática. Apontam-se
atuação autocrática e atos de corrupção a uns e a outros. E os líderes oscilam
entre a tomada do poder, a destituição e o regresso, num misto de golpe de
estado e processos eleitorais – ambos não genuínos.
Ultimamente, os opositores
conseguiram um acordo de alegada pacificação de que resultou a fuga do chefe –
que agora diz querer regressar (porque ainda é o presidente legítimo) e entregar
a resolução da justiça sobre os acontecimentos a tribunais ocidentais e o
esvaziamento dos poderes constituídos, com a entrega do poder a um líder
interino até à realização de eleições gerais e presidenciais, nos termos
constitucionais.
Coisas curiosas: um líder que nada
quis com a União Europeia, agora quer a justiça dos tribunais ocidentais
(parece que não será para resolver os problemas de política interna, mas para
que induzam a punição dos que interferiram nos assuntos internos da Ucrânia);
os russos podem intervir (mediante o acordo celebrado, com o envio de tropas
para a Crimeia e para tácita ou expressamente ajudarem ao ato de referendo
marcado para o próximo domingo, podendo acolher a decisão de anexação), mas os
ocidentais não podem interferir, talvez por serem ocidentais; a União Europeia,
que tem desprezado os países do Sul, explorando-lhes os recursos até ao último
cêntimo, oferece disponibilidades à Ucrânia, enquanto os russos dizem não
querer intervir, mas simplesmente facilitar as opções autónomas da Crimeia (Lindo!
– exclamaria Durão Barroso. Porreiro, pá! – anuiria Pinto de Sousa.), e a
diplomacia norte-americana assegura que, face às movimentações russas, têm os
americanos de estar preparados para a resposta que vier a ser considerada
necessária (Si vis pacem, para bellum –
diriam os velhos Romanos).
Afinal, o que faz mover estas
diplomacias? Não será por certo a pureza teleológica da democracia, já que se
sabe que os poderes até há pouco tempo constituídos resultaram de eleições
populares. Se elas não foram suficientemente isentas e livres, é caso para
perguntar se as eleições em países considerados campeões da democracia têm sido
inteiramente livres: se a árvore se conhece pelos frutos, as árvores
democráticas têm apodrecido muito precocemente (corrupção, gestão danosa,
aparelhismo, compadrio, jogos dos blocos centrais de interesses, enriquecimento
ilícito, branqueamento de dinheiros, fuga ao fisco, espoliação das classes
médias). E o atual poder interino da Ucrânia tem, no seu seio, dirigentes que
não correspondem em número à dimensão eleitoral das formações partidárias de
que emergem e um partido de designação nacionalsocialista (leia-se neonazi) está a ganhar vulto no espectro
eleitoral.
Entretanto, como a situação na Ucrânia continua tensa e
incerta, as movimentações diplomáticas não se fazem esperar. A Casa Branca confirmou no domingo a
deslocação na quarta-feira aos Estados Unidos da América do primeiro-ministro
interino ucraniano, Arseni Iatseniouk, a convite de Barack Obama, o Presidente
norte-americano, que pretende assim mostrar o reconhecimento do novo governo de
Kiev. Por seu turno, a
Crimeia convocou um referendo sobre a reunificação com a Rússia marcado para o
próximo domingo dia 16 que, no entanto, foi considerado ilegal por Kiev e por
diversos países, tais como Estados Unidos da América, Reino Unido, a França e Alemanha.
Ao mesmo tempo, as coisas avançaram no sentido da autonomia e os dirigentes da
Crimeia proclamaram a independência, sem desmarcar o referendo.
Recorde-se
que a península da Crimeia, em nome da proteção da população russa, que é
maioritária, está a ser controlada desde o final de fevereiro por forças
russas, que estão a consolidar a sua posição a cada dia que passa. A
acrescentar a esta situação, segundo o Público
de 19 de março, vários ativistas da antiocupação russa foram
raptados nos últimos dias na Crimeia. Um deles foi Anatoli Kovalski, que,
juntamente com Andrei Shekun, se viu, no domingo, levado num carro das milícias
pró-russas, que o intercetaram e agrediram na estação de comboios de
Simferopol.
“A União
Europeia tem-se mostrado chocada, angustiada – com muitos estados de alma, mas
com pouca ação” – opina o diretor da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Católica Portuguesa, José Miguel Sardica, que acrescenta que “para
além das dificuldades económicas, políticas, religiosas e linguísticas no
local, o conflito evidencia a fragilidade da política internacional”.
Da
santa Sé sabe-se que o Secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin, declarou à
Rádio Vaticano que só o diálogo entre as partes poderá encontrar “soluções
negociadas” e acalenta a esperança de que tal seja possível: “Se é possível
dar um contributo também a nível das relações inter-religiosas a favor da
população, nós estamos prontos a fazê-lo e esperamos que se possa fazer. Eu
creio que na Ucrânia se pode procurar uma solução em que cada uma das partes
possa salvaguardar os seus interesses e o bem do país e das suas populações.” –
disse.
Entrementes,
o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se esta segunda-feira pela 5.ª vez em 10
dias, com a crise ucraniana na agenda, e, na próxima quinta-feira o Conselho de
Segurança vai receber o primeiro-ministro ucraniano. Moscovo e Washington mantêm-se
no impasse nas conversações.
É que,
embora ninguém, o confesse claramente, as diligências internacionais configuram
a guerrilha ou guerra encoberta de interesses. Os russos querem manter o acesso
ao Mar Negro, o único porto de águas quentes de que dispõem. E a via de acesso
é a Crimeia. Por outro lado, querem precaver-se de qualquer tentativa de avanço
tático dos americanos, originável da chegada da alçada da NATO à Ucrânia. A
Alemanha e outros países da Europa Central precisa da Ucrânia para a passagem
do gás natural, vindo de leste, e do manancial da produção de cereais que o par
Ucrânia-Crimeia produzem em franca abundância. E a Ucrânia quererá manter o
território da Crimeia que lhe fora oferecido pelo líder do poderio soviético de
então e afirmar a sua posição no concerto das nações europeias, escoando os
seus produtos e recebendo, em contrapartida, os benefícios da modernização
económica. E aqui se dividem as opções de método e de alianças para concretizar
este desígnio.
Portugal,
tranquilizado porque o seu gás natural vem do Magrebe, vai fazendo as
declarações da conveniência. E o diálogo ansiado pelo Vaticano não terá êxitos se
os interesses internacionais não se derem por satisfeitos.
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