Estado da questão
A questão deve colocar-se não pela falta de vocações
sacerdotais, nem pela conveniência óbvia de ajustar a atividade da Igreja às
circunstâncias ou mesmo pela justa razão da igualdade de todos, homens e
mulheres, perante Deus, perante Cristo ou perante a lei, nem mesmo para anular
a diferença entre profissões de homens e profissões de mulheres. A falta de
vocações sacerdotais, constituindo uma pedra de toque para reflexão e eventual
exigência de mudança de atitudes, poderia ser colmatada pela oração e atenção
acurada à descoberta e amparo de vocações, bem como pela redefinição das
funções de diáconos, presbíteros e bispos. A conveniência de ajustar a
atividade da Igreja a novos tempos é um dado eloquente, mas não justifica tudo,
maxime uma revolução desnecessária na
doutrina. A igualdade fundamental de todos persiste na diversidade de carismas
e funções (cf 1Cor 12,28). E a anulação ou, pelo menos, minoração da distinção
de profissões de homens e profissões de mulheres é uma tarefa da sociedade a
incrementar ao máximo, mas não o escopo direto da Igreja. Acresce que o
sacerdócio não se circunscreve ao mecanismo de profissão e até, segundo o
exemplo de Paulo, é compatível com o exercício de uma profissão (cf 2Ts 3,7-9).
Estender o sacerdócio às mulheres, não havendo incompatibilidade da parte da
Teologia, justificar-se-á por exprimir uma vertente diferente da ação eclesial
(a feminina, complementar da masculina) com possibilidade de melhorar o
cuidado pastoral de modo que só a mulher é capaz, bem como
espelhar o rosto materno de Deus, na linha de João Paulo I e de Leonard Boff, e
a dimensão materna da Igreja, na sequência do pensamento do próprio João Paulo
II e agora do Papa Francisco.
A questão, a meu ver, é mesmo da doutrina teológica
sobre o sacerdócio, pelo que se lamenta que o recém-falecido Dom José da Cruz
Policarpo não se tenha batido até ao fim pela sua convicção.
Sobre o sacerdócio
O sacerdócio comum dos fiéis é predicado e atribuição
de homens e mulheres, pois, ao invés do judaísmo, que marcava pelo sinal de
ingresso no povo de Deus (a circuncisão) só os varões, o cristianismo insere na
economia eclesial todos, homens e mulheres, e marca-os pelo batismo.
Não cabe, nesta reflexão, o discurso sobre a diferença
entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum: em substância ou somente
em grau. Partamos do princípio de que a diferença não é só de grau, já que há
bons motivos para o defender, se aceitamos a transmutação ôntica que a
ordenação traz ao seu sujeito, pela impressão do caráter sacramental, restando
a diferença de grau para diácono, presbítero e bispo. Não obstante, é de
questionar porque, reconhecendo a sua qualidade ministerial, não se chama
sacerdote ao diácono, mas somente ao presbítero e ao bispo. Será somente porque
o diácono não tem o poder de oferecer o sacrifício? Detém o múnus do serviço; e
o presbítero e o bispo não? Será que estes deixam de ser ministros?
Mas voltemos à doutrina do sacerdócio. O Novo Testamento
assegura a distribuição de dons carismáticos pelos discípulos: muitos e
diversos. Encontra-se no
Evangelho (Mc 16, 17-18, Lc 21, 15, etc.) e nos Atos dos Apóstolos (2, 1-13;
5,12ss) a afirmação repetida de manifestações espirituais que Paulo na primeira
Carta aos Coríntios unifica sob o signo da de graça, ligando-as ao dom do
Espírito Santo concedido na pessoa de Cristo à humanidade. Perante a
diversidade dos carismas, Paulo sublinha a unidade deles no Deus uno e trino. São
graças, ministérios e forças (I Cor. 12, 4-6) dados, não para benefício
próprio, mas para o bem da comunidade, tendo em vista o bem comum sobrenatural
da Igreja. Assim, cada carisma representa um serviço, uma função específica que
deve concorrer, segundo a sua especificidade para o bem espiritual do conjunto.
Os carismas promanam do Cristo Cabeça para toda a Igreja, destinados à
construção e ao incremento do Corpo Místico, dilatação do povo de Deus,
robustez do rebanho – assegurando, na diversidade, a unidade da fé (1 Cor 12,
12-14).
Não é crível que “tenha parecido bem
ao espírito santo e aos apóstolos” (era esta a maneira de formular o dogma nos
primeiros tempos) impedir que os carismas (ou qualquer um deles) escorram para
qualquer elemento do povo de Deus, mesmo que de mulher se trate.
A atitude de Cristo
Pode perguntar-se porque não confiou Cristo a mulheres
missões concretas como aos doze. Ora, as revoluções não se fazem totalmente num
momento. A integração das mulheres no colégio apostólico causou espanto geral e
gerou escândalo a maneira natural como Cristo lidava com as mulheres (anote-se
o caso da samaritana, da pecadora, da adúltera), inclusive nos próprios
discípulos (cf Jo 14,27; Lc 7,39) e com as crianças (que os apóstolos achavam
que perturbavam o Mestre). Mas o facto de Cristo não ter feito uma coisa não é
razão para que ela se não faça. Ele também não escreveu e
os apóstolos escreveram (bispos e papas também escrevem). Ele não
confessou, mas mandou perdoar os pecados; não batizou, mas mandou batizar; não
deu a Santa Unção, não usou mitra, pálio, anel, estola, etc. Não integrou no
grupo dos apóstolos homens não judeus e ninguém se atreve a clamar que a
salvação é só para os judeus e para a Palestina. Que saibamos, excetuando a
fuga para o Egito, se o episódio ultrapassa o género literário do midrashim, Cristo não andou fora de
portas israelitas, mas aos apóstolos enviou-os para fazerem discípulos em todas
as nações (cf Mt 28,19). Os grandes mestres da antiguidade não escreviam. Não
conhecemos escritos de Sócrates: conhecemos o seu pensamento através dos
escritos de Platão.
Cristo e a tradição apostólica
Conclui-se claramente pelos Evangelhos e pela doutrina
paulina que, na ótica de Jesus, o homem e mulher são iguais. Ambos, como
referimos, entram no Reino pelo Batismo, enquanto no Antigo Testamento só o
homem era circuncidado. Então, o motivo por que Jesus só elegeu homens para o
grupo dos doze apóstolos prende-se com aspetos de ordem prática, provavelmente
pelas mesmas razões por que escolheu só galileus e judeus – e destes só os
residentes na Palestina. Será totalmente inconsistente inferir daí que tenha
fixado assim uma norma perpétua. Como em muitos outros aspetos, Jesus deixou a
definição e a concretização dos contornos sacramentais para a Igreja, que não
pode eximir-se de fazer o trabalho de aprofundamento e de reformulação da
doutrina e da ação pastoral. E bem podemos verificar como admirou a fé de
estrangeiros (casos da cananeia e do centurião) e como mais tarde veio a
recrutar para o apostolado Paulo de Tarso. Será que a Igreja exige uma visão do
Céu a recrutar mulheres para o sacerdócio?
Os textos limitadores das epístolas de S. Paulo –
como os que estabelecem que as mulheres usem véu, que se submetam aos maridos e
que não tomem a palavra na igreja – não podem ser interpretados como pura doutrina
ou como proibição da ordenação das mulheres, mas como uma necessidade de
aculturação transitória.
Na Igreja dos primeiros tempos, as mulheres assumiram
responsabilidades ministeriais, incluindo o diaconado, sobretudo no serviço às
mesas e na condução dos indivíduos do sexo feminino (acho piada esta formulação
dos assentos de batismo) no Batismo de imersão. Provas históricas mostram que,
na da Igreja católica do oriente, as mulheres serviram como diaconisas até ao
século IX. Ora bem, se as tornaram diaconisas pela ordenação sacramental,
idêntica à dos diáconos homens, então é porque, efetivamente, receberam ordens para
o exercício do ministério, o que implica que também podem hoje aceder ao
sacerdócio.
Motivo
da vedação do sacerdócio às mulheres por parte da Igreja
Durante quase toda a história da Igreja um múltiplo
preconceito, resultante da contaminação veterotestamentária, greco-romana,
bárbara e iluminista, impediu a ordenação sacerdotal das mulheres, apesar do
relevo dado à mulher nas medievas cantigas de amor provençais e ibéricas:
Os teólogos esqueceram que a mulher fora criada por
Deus a partir do lado do homem, ou seja, igual a ele, porque carne de sua
carne, osso de seus ossos (cf Gn 1,27; 2,21-24). A mulher, ao invés do
enunciado bíblico, era considerada um ser inferior. A filosofia grega
considerava-a ser humano incompleto.
Segundo o direito romano, que foi adotado pela Igreja, a mulher não podia
exercer responsabilidades públicas. Por isso, não poderiam as mulheres ser investidas em funções de direção que o
sacerdócio implica.
A mulher era uma espécie de amaldiçoado Caim no
feminino, considerada em estado de castigo por ter introduzido no mundo o
pecado. Era tida como culpada pelo pecado original e encarada como fonte
contínua de sedução (cf Gn 3,1-13). Ora nunca uma pecadora, uma sereia, um
ser serpentino poderia ser um transmissor da graça divina. Segundo as
normas veterotestamentárias, a mulher era considerada como ritualmente impura
devido à menstruação, para quem era necessário o ritual da purificação, no
prazo ritual após o parto (cf Lv 12,1-8). Nestes termos, não se podia
permitir que uma impura maculasse
templo, coro, altar e vasos sagrados.
A mentalidade medievo-popular
atribui a mulheres os crimes hediondos da bruxaria e feitiçaria que as levaram
à fogueira e a maior parte dos malefícios que se abatem sobre os humanos
devem-se a entidades no feminino: fadas, iaras, sereias, etc. Mesmo as mulheres
excecionais vêm marcadas pelo erro: Helena desgraçou Troia; Letabla arruinou
Espanha; Joana d’ Arc, ora a padroeira celeste do exército francês, foi condenada
como feiticeira e mulher-homem; as influentes mulheres do Renascimento, poderosas
em torno de reis, papas e cardeais, tornaram-se notáveis pela intriga,
devassidão e, por vezes contraditoriamente, pela sujeição. A revolução francesa
- da liberdade, igualdade e fraternidade – que substituiu no trono da respetiva
catedral “Notre Dame” pela deusa RAZÃO, condenou à guilhotina a autora e
propositora da declaração dos direitos da mulher e da cidadã. É o signo de Eva,
a mãe de todas as mulheres (cf Jorge Aguiar. “Contra as mulheres”, in Cancioneiro
geral, de Garcia de Resende).
Frequentemente a mulher foi
considerada objeto manipulável a troco de dinheiro, indumentária, joalharia,
lugar de relevo para filhos e protegidos, satisfação de caprichos masculinos. E
assim é que a responsabilizam injustamente pela criação e manutenção da
designada por “a mais antiga profissão do mundo”, esquecendo a responsabilidade
dos homens que nisto, como em outras coisas altamente censuráveis, estão
enfiados até às orelhas. O direito penal veterotestamentário condenava à pena
de morte por lapidação (cf Jo 8,3-11) mulher surpreendida em adultério (E o
homem, que lhe faziam?).
Os aludidos preconceitos, apesar de sua origem veterotestamentária
e seu cariz cultural, tornaram-se pressupostos de ordem teológica. Constituem o
verdadeiro motivo de recusa da ordenação das mulheres, como se conclui dos
escritos dos Padres da Igreja, dos cânones dos concílios gerais e dos sínodos
locais, dos regulamentos eclesiásticos e da teologia de raiz medieval. Assim a pretensa tradição de não ordenar mulheres é a
falsa tradição, muito menos tradição apostólica inalterável pela autoridade da
Igreja. A verdadeira e autêntica Tradição da Igreja tem de se apoiar em razões
válidas, e não no costume errado, que no dizer de S. Cipriano, não passa de erro
velho.
Seguindo com atenção a História da Igreja, pela mão de
John Wijngaards, descobrimos uma tradição “dinâmica” e “latente” que postula a
possibilidade de ordenar mulheres. A tolerância das doutrinas para com a
menoridade antropológica e social das mulheres é parecida com a da tolerância
implícita da escravatura, que todos sabiam ir contra a vontade de Cristo e que
o magistério ordinário da Igreja sancionava como se fora parâmetro da doutrina
católica. A tradição latente, apesar da doutrina e da prática oficiais,
ter-se-á manifestado na suposta ordenação efetiva de algumas mulheres; na
perceção das funções sacerdotais de Maria, que com sua apresentação do Cristo
no Templo foi apresentada tantas vezes como modelo místico da função sacerdotal;
no facto de terem existido mulheres que administravam o batismo e oficiavam no
casamento; e na consciência da igualdade de homens e mulheres em Cristo. (cf http://www.womenpriests.org/pr/story_pr.asp,
acedido em março de 2014).
Atente-se no facto de Cristo não ter escolhido para o
colégio apostólico homem negro e como foi aceite pela Cúria Romana a
propositura henriquina da ordenação de um bispo negro no século XV português (as
suas comunicações teriam por base um texto escrito previamente visado), exigências
hoje consideradas bizarras e atentatórias da dignidade da pessoa humana.
Concluindo
Como criatura de Deus recebeu, como o homem, a
capacidade de se guindar à perfeição e, como filha adotiva de Deus, a mulher é
também um ser à imagem e semelhança de Deus, redimida pelo mesmo Cristo. Na
ministração dos sacramentos do batismo e do matrimónio, a mulher representa
plenamente Cristo. O que o sacerdote representa na Eucaristia não é o Cristo de
sexo masculino, mas a sua entrega sacrificial. E, quando se distribui pelos
demais fiéis o corpo de Cristo, não é um corpo de perfil masculino ou feminino,
mas o “pão partido pela vida do mundo inteiro”.
Quando João Paulo II, em 11
de maio de 1994, publicou a carta apostólica ordinatio sacerdotalis, limitou-se reafirmar a doutrina corrente do
magistério ordinário eclesiástico. Não se lhe pode conferir o estatuto de uma definição
dogmática, não se lhe aplicando, por consequência, o aforismo “Roma locuta,
causa finita”. Uma definição dessas teria de ser expressamente declarada como
tal e proferida “ex cátedra” pelo papa enquanto supremo doutor da Igreja
Universal, reunindo em volta de si e da questão a autoridade de ensino de todos os bispos do mundo,
agindo coletivamente – o que efetivamente não aconteceu.
Roma parece pensar que, porque os bispos geralmente
não ordenam mulheres sacerdotes (houve exceções!) e porque também geralmente
guardam silêncio sobre esta questão ou a remetem para o papado, isso significa
que exprimiram um consentimento unânime. Ora em matéria de tal importância não se pode aplicar o aforismo “qui tacet videtur consentire”. Os bispos deveriam ter escutado a Palavra de Deus e o
"sensus fidelium" (aquilo que católicos empenhados sentem ser justo “in
corde suo”) e exercido a sua autoridade como um corpo. Após madura reflexão, deveriam
ter-se sentido ser livres na expressão de suas opiniões e pedido que a doutrina
fosse declarada definitiva.
Como tal não sucedeu, a
investigação deve continuar o seu aprofundamento e lançar o debate sobre as diferentes
mesas de discussão, na certeza de que todo o crescimento é precedido de
conflitos e de crises. A Igreja oficial reencontrará o “sensus ecclesiae”, como
o fez no passado em tantas questões. Mas, até que este problema seja resolvido,
não se podem demitir das suas responsabilidades os católicos conscientes e
responsáveis. Têm de manifestar seus pontos de vista até que a implícita, mas autêntica
vontade de Cristo se realize com a ordenação das mulheres na Igreja católica.
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