quarta-feira, 30 de junho de 2021

Publicar o que alguém não quer que se publique…

 

Para muitos, é essa a função do jornalismo, que fica vinculado ao exótico princípio de que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique; tudo o resto é publicidade”, o lema do “Tal & Qual” inscrito no frontispício de cada exemplar das diversas edições.

Parece anódino o chavão formulado por William Randolph Hearst e geralmente atribuído a George Orwell (pseudónimo do escritor Eric Arthur Blair), uma frase reflexiva e querida dos jornalistas e muito citada por professores de Jornalismo a marcar o estatuto de independência dos jornalistas em relação aos poderes.

Não obstante, se atendermos ao perfil de William Randolph Hearst, veremos quais as suas verdadeiras intenções neste campo: mais do que a independência em relação aos poderes – político e/ou económico –, mais do que informação e pior que publicidade e propaganda, temos, nas malhas da sua produção, a sede de protagonismo, o sensacionalismo, uma forma específica de combate político e empresarial, enchendo-se a boca com o chavão do jornalismo como 4.º poder ou como contrapoder na perspetiva de alguns.

Hearst, nascido a 29 de abril de 1863 e falecido a 14 de agosto de 1951,  foi um empresário americano do ramo de editoras que criou uma enorme rede de jornais e cujos métodos influenciaram a indústria do jornalismo nos EUA.

Começou como empresário em 1887 após a assunção do controlo do jornal “The San Francisco Examiner”, que era do pai (que o adquirira havia 7 anos). Transferindo-se para Nova Iorque, comprou o “The New York Journal” entrando numa guerra de negócios com o “The New York”, de Joseph Pulitzer (em memória de quem são entregues os prémios Pulitzer desde 1917), e criou a noção de “imprensa marrom” – histórias sensacionalistas de veracidade duvidosa, construindo um jornalismo cujo objetivo é a venda (em rádio e televisão, audiências) de notícias, divulgando de forma exagerada factos e acontecimentos, sem compromisso com a autenticidade. Comprando mais jornais, criou uma rede de mais de 30 jornais (28 diários) sob o seu controlo no país, e, mais tarde, comprando também revistas (18), liderou um dos maiores conglomerados de jornalismo do mundo.

Foi duas vezes eleito pelo Partido Democrata para a Câmara de Representantes dos Estados Unidos e candidatou-se sem êxito à prefeitura de Nova Iorque em 1905 e 1909, para governador do Estado em 1906 e vice-governador em 1910. No entanto, com os seus jornais e revistas, exercia enorme influência política e era acusado de fazer jornalismo sensacionalista. Apesar de pertencer, por mais de 30 anos, à ala populista dos Democratas, Hearst era conservador, nacionalista e fervoroso anticomunista. Defensor da Lei Seca, depois fez lobby, por meio dos seus jornais, para ilegalizar várias drogas psicotrópicas, sobretudo as que afetavam indústrias que financiavam os seus jornais, como a indústria farmacêutica ou a de celulose. Tornou-se conhecido por ser um dos principais apoiantes da Mariahuana Tax Act of 1937, que tornou ilegal a maconha (canábis) nos EUA. Assim como outras de suas iniciativas, usava o poder dos seus jornais para tentar manipular a opinião pública, trazendo apoio às suas iniciativas políticas.

A sua vida – de contradição política e de ambição empresarial – serviu de inspiração para a personagem principal do filme “Citizen Kane”, de Orson Welles.

Comparativamente com este jornalismo sensacionalista e agressivo ou com o jornalismo anódino que se limita a dar notícias – verdadeiras, falsas ou distorcedoras de factos –, será de perfilhar a perspetiva de Pulitzer.

Joseph Pulitzer, nascido, a 10 de abril de 1847, na vila de Makó no Império Austro-Húngaro no seio duma família judia abastada (o pai era um comerciante influente), foi educado em escolas privadas em Budapeste. Com 17 anos, tentou ingressar nos exércitos do Império Austro-Húngaro e do Reino Unido, mas não foi admitido devido à sua frágil saúde e débil visão. Assim, decidiu emigrar, em 1864, para os EUA, onde serviu nas fileiras do exército federal, num regimento de cavalaria, durante a Guerra de Secessão.

Após a guerra, trabalhou em St. Louis (Missouri) como carregador, bagageiro e empregado de mesa, enquanto estudava, na Biblioteca, Inglês e Direito, e participava na política, tendo-se tornado, em 1869, membro da legislatura do Missouri.

Em 1866, teve o seu primeiro emprego como repórter no jornal alemão “Westliche Poste”, de que adquiriu uma parte 5 anos depois. Aos 25 anos, tornou-se editor e, em 1874 foi admitido em Washington D.C., onde passou a trabalhar como correspondente para o “New York Sun”. Em 1878, criou o “Post-Dispatchs” em St. Louis, pela fusão de dois jornais, o “Dispatch” e o “Evening Post”, tornando-se figura proeminente na cena jornalística.

Após a mudança para Nova Iorque, comprou, em 1883, o jornal “The Word”, que passou a ser um dos jornais mais importantes da época. Pulitzer, adiantando os valores pelos quais se pautaria mais tarde, anunciou que o seu jornal seria “truly democratic, dedicated to the cause of the people rather than to that of the purse potentatates”.

Revolucionou os jornais com técnicas que alguns admiraram como um “novo jornalismo” e outros censuraram como “jornalismo amarelo”. Porém, esta proeminente figura da imprensa praticou um jornalismo rigoroso, divulgando e combatendo a corrupção política e proclamando-se “um defensor do lado das pessoas e um porta-voz da democracia”. Lutando por menos horas de trabalho para os operários e por melhores condições de vida para os pobres, atacou as grandes companhias e monopólios laborais. Foi responsável por uma grande parte da legislação antitrust e pela regulamentação de companhias de seguro industriais. Ao mesmo tempo, foi acusado de preencher as colunas do jornal com uma onda sensacionalista, já que aliava algumas inovações como cartoons, dedicava uma página ao desporto e outra às mulheres, editava uma secção para a abordagem de crimes, desastres (mudando totalmente a capa e a disposição do jornal) e fazia uso exaustivo de imagens, gráficos, cor e publicidade e, ainda, de títulos em letras garrafais. Para Pulitzer “presentation is everything”.

Nos anos 90, foi mesmo acusado de práticas de “yellow journalism” (jornalismo amarelo), visto que utilizava títulos destacados, notícias sensacionalistas, imagens e publicidade, com o objetivo de atrair leitores da classe trabalhadora e imigrantes. O seu propósito era aproximar-se das camadas sociais mais desfavorecidas, o que conseguiu através da adoção no jornal do ponto de vista delas e da utilização destes elementos que tornavam o jornal mais atrativo. Acreditava que o jornalismo era um serviço público, isto é, destinado às pessoas “pequenas” e não servindo os interesses do grande poder.

No quadro do combate contra a corrupção política por meio da investigação persistia, “The World” publicou, em 1909, um pagamento fraudulento de US$ 40 milhões feito pelos Estados Unidos à Companhia Francesa do Canal do Panamá. A resistência de Joseph Pulitzer a todo o tipo de pressões e a continuação da investigação constituíram uma vitória crucial para a liberdade de imprensa.

Em maio de 1904, escrevendo para a revista “The American Review”, o jornalista sintetizou a sua convicção nos seguintes termos:

Our Republic and its press will rise or fall together (…). The power to mold the future of the Republic will be in the hands of the journalists of future generations.”.

Tinha ficado cego, havia alguns anos, este editor e jornalista norte-americano e viajava a bordo do seu iate Liberty (como fazia outras vezes em que o seu estado de saúde piorava) quando morreu, em 1911. Está sepultado no Cemitério de Woodlawn.

Em 1903 havia entregue à Universidade Columbia a quantia de um milhão de dólares destinada à criação de uma escola de jornalismo, a Columbia University Graduate School of Journalism, cuja primeira pedra foi lançada em 1912, nove meses após a sua morte.

Os prémios Pulitzerm entregues desde 1917, têm como objetivo distinguir anualmente personalidades de diferentes áreas do jornalismo e da literatura que se destacaram ao longo do ano pelo seu trabalho. O objetivo do prémio é, pois, “encorajar e distinguir a excelência”.

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Posto isto, não é difícil concluir e aceitar que o jornalismo para ser um poder notável, enquanto meio de influência na evolução da sociedade e produtor do conhecimento ao nível de factos, ideias, sentimentos, ciência e artes, é uma estrutura em cadeia – de política, social e económica – que está ao serviço geral da comunidade e persegue a defesa e a promoção do interesse público. E, para que seja um poder legítimo e eficaz (poder que não é o 4.º, pois não é da natureza dos demais), não um contrapoder (como querem alguns), tem de prosseguir num êthos robusto e respeitar os princípios éticos da investigação, comunicação e apreciação dos factos.

A sua primeira função é a informação tão completa como possível e pautada pela objetividade. Por isso, a notícia tem de basear-se em facto verdadeiro e sem distorção ou acrescentamento. Deve ser bem estruturada, clara e impactante. Mas, como é necessário ir e ver localmente, a reportagem, complementada por entrevistas e imagens, é um dos meios para introduzir as pessoas no mundo real de êxitos e dramas. Nesta linha de informação cabe obviamente a denúncia das maldades políticas e empresariais, do mundo dos desfavorecidos e oprimidos, bem como o destaque aos êxitos, embora sem quaisquer laivos de servilismo.

Não obstante, o jornalismo tem de ser um palco aberto da exposição e debate de ideias. Neste âmbito, cabe a promoção de ideias, valores, sentimentos, desportos, instituições. É uma função promotora e formativa que se cumpre numa atitude pluralista. Partidos políticos, confissões religiosas, entidades de filantropia e as agremiações que lutam pelas grandes causas usam o jornalismo neste aspeto. É o espaço do debate, da crónica do artigo de opinião, da grande entrevista, do painel, da mesa redonda, etc.

O jornalismo é um meio legítimo de publicidade institucional e comercial, como de promoção e campanhas políticas, ideárias e empresariais. Porém, não pode ser veículo de publicidade enganosa nem de fraude política, científica ou económica, pelo que, neste sentido, há lugar para a atempada denúncia ancorada na investigação, sem revelação das fontes, sem exageros e sem achincalhamento das pessoas. Tem aqui lugar atividades atinentes à luta pelas grandes causas.

O jornalismo é também um espaço de entretenimento e registo de itens de curiosidade e de interesse comezinho, que não mesquinho. Daí, os jogos, os instrumentos de lazer, as caricaturas e cartoons, a banda desenhada, o folhetim, etc., que servem o quotidiano.

As vezes, enfada a literatura do jornalismo cor-de-rosa, que expõe indecentemente a vida familiar, de relação social e até de intimidade e imagem de pessoas. É certo que a liberdade de expressão é um direito fundamental, sendo ténue a fronteira entre essa e o direito à imagem e à preservação da intimidade pessoal (sobretudo se o/a visado/a não autorizaram), como a fronteira com o direto do cidadão a não ser importunado. É óbvio que o cidadão é livre de ler ou não um livro, um jornal ou uma revista ou ouvir um tempo de rádio. Mas penso que um serviço de televisão deveria ter mais cuidado nos conteúdos que faz entrar nas nossas casas, não devendo, em todo o caso, ser o Estado ou o poder económico a ditar os itens da ética jornalística.  

Enfim, o jornalismo, como poder moderador na sociedade, mesmo em política e encadeamento económico e sociocultural, informa, forma, denuncia, escalpeliza, promove, entretém. Para tanto, deve primar pela independência relativamente ao poder político, o que nem sempre é fácil, embora deva respeitar as leis e regulamentos legitimamente elaborados e publicados, e relativamente aos poderes económicos, o que, às vezes, é difícil e leva à quebra da objetividade e à subserviência, mormente se está em causa uma carreira ou a sobrevivência pessoal e/ou familiar. Na verdade, ninguém gosta de ficar debaixo da caneta crítica do jornalista, estampado na página, retido na câmara fotográfica ou a bailar na câmara de vídeo.   

Não obstante, ninguém tenha dúvidas: a objetividade não é um absoluto ou um adquirido, mas aprende-se e exerce-se; e a independência não significa sobranceria ou arrogância, mas é compatível com o respeito, a cooperação e a interação, nunca, porém, deixando de parte a denúncia, a dignidade humana, social e profissional do jornalista ou a daqueles e daquelas que estiveram, estão ou vierem a estar sob o olhar do jornalista.

Assim, jornalismo é “publicar aquilo que alguém não quer que se publique”, mas também “aquilo que legitimamente alguém quer que se publique”, desse que esteja em causa a promoção ou a defesa do interesse público. E a comunicação é uma das marcas fortes do ser humano e das comunidades em que se integra ou com as quais se relaciona e interage.

2021.06.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de junho de 2021

Esforço dos sistemas educativos em prol de currículos mais inclusivos

 

O “educare.pt” publicou, a 28 de junho, um texto de Andreia Lobo sobre “como os países estão a tornar os currículos mais inclusivos” e “como as tecnologias podem ajudar”, baseado em novo relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) intitulado “Adapting Curriculum to Bridge Equity Gaps: Towards an Inclusive Curriculum”.

No pressuposto de que um currículo inclusivo não assume os mesmos padrões para todos os alunos, mas respeita e valoriza as necessidades, talentos, aspirações e expectativas exclusivas de cada um e se esforça para “remover barreiras à participação de certos grupos de alunos, incluindo as criadas pelo currículo oculto”, o relatório retrata o esforço dos sistemas educativos nesse sentido. Verifica a OCDE que, embora o currículo continue a ser desenhado “em tamanho único” de modo que sirva a todos, há cada vez mais sistemas educativos comprometidos (os exemplos são muitos) a “não deixar que nenhum aluno fique para trás”. Assim, o currículo vai sofrendo alterações, que o induzem, regra geral, a “ir ao encontro das necessidades de grupos de alunos identificados como vulneráveis” – adaptações que têm em conta aspetos relevantes como as capacidades dos alunos, a sua origem e condição económica das suas famílias.

No concernente às necessidades dos alunos, é referido que, em 92% dos países e economias parceiras da OCDE, os alunos portadores de necessidades educativas especiais têm currículos adaptados. Neste âmbito, os professores australianos podem redesenhar áreas do currículo atendendo às capacidades dos alunos portadores de deficiências e dos alunos com dificuldades de aprendizagem. E, em 42% dos países, também a sobredotação merece atenção especial.

Necessidades ocultas em potencial abandono escolar ou saída precoce da escola levam a que, em 31% dos países – por exemplo Hungria e Japão –, haja disposições curriculares que visam os alunos em risco de abandonar a escola precocemente. No caso da Hungria, faz-se um esforço de identificação de potenciais desistências e desenha-se apoio específico (nem tudo é mau com Orbán); e, no caso do Japão, há apoios para compensar a falta de assiduidade.

Quanto à prossecução de estudos numa ou noutra linha (via preponderantemente académica ou via preponderantemente profissionalizante), em 70% dos países, há serviços ou programas, acessíveis a todos os alunos, que incluem orientação ou aconselhamento profissional. É o caso, por exemplo, de Quebeque (Canadá), em que todas as direções de escola têm de oferecer, nos diferentes níveis de ensino, serviços sociais, de psicologia e de orientação vocacional.

No atinente à origem dos alunos, a OCDE regista que 72% dos países têm currículos que atendem à diversidade linguística e cultural dos alunos. Por exemplo, na Finlândia, as crianças e os jovens de famílias de origem estrangeira têm aulas opcionais na sua língua materna; no México, os filhos dos trabalhadores agrícolas migrantes frequentam escolas de múltiplos níveis de ensino; e, no Japão e na Coreia, é dado especial apoio aos alunos em situação inversa: que regressam ao país vindos do exterior. E a maioria dos países (91%) tem políticas de inclusão e antidiscriminação inscritas de forma explícita nos currículos, como é o caso da legislação de educação inclusiva em Portugal.

Também as condições familiares são vetor relevante: neste sentido, 28% dos países (valor percentual baixo em relação à momentosidade do tema) atendem às vulnerabilidades socioeconómicas e 14% às assimetrias geográficas. Assim, as crianças desfavorecidas dos 3 aos 8 anos beneficiam de medidas específicas ao abrigo do Plano de Ação para a Educação Inclusiva, na Irlanda; e, em Hong Kong (China), os estudantes carenciados têm à disposição subsídios para frequentarem atividades de aprendizagem ao longo da vida.

Na maioria dos países da OCDE (85%) pelo menos uma parte do currículo é centralizada a nível nacional, pois o objetivo “é garantir um núcleo comum que proporcione as mesmas oportunidades de aprendizagem a todos os alunos”. Assim, o Japão tem um currículo nacional que garante um nível de uniformização educativa a todos os alunos, independentemente da região que habitem; e a Argentina desenha os currículos a nível federal com conteúdos-chave que todos os alunos devem adquirir da educação pré-escolar ao ensino secundário.

Além do currículo básico, os sistemas educativos de 61% dos países da OCDE permitem flexibilidade curricular: as escolas e professores têm autonomia para adaptar os conteúdos curriculares, os métodos de ensino e avaliação ao contexto local e às necessidades dos alunos. Nestes termos, na Dinamarca, esta flexibilização permite que um aluno possa excecionalmente receber instrução num nível de escolaridade inferior ou ser dispensado duma matéria pelo diretor com o acordo dos pais; e, em Portugal, a “autonomia das escolas permite uma gestão flexível do currículo e dos espaços e horários de aprendizagem, de forma que os métodos, tempos, instrumentos e atividades possam responder às singularidades de cada aluno”.

Em matéria de adaptações curriculares, o relatório em causa reconhece as vantagens do digital, pois, “como a tecnologia permite uma maior adaptação e integração de conteúdos, materiais e atividades, pode ajudar os alunos a ter motivação para aprender, progredir no seu próprio ritmo e continuar a aprender além da sala de aula – a qualquer hora, em qualquer lugar”. Neste campo, a OCDE reconhece o considerável esforço dos países para integrar as tecnologias nas salas de aula. Assim, na Finlândia, os professores recorrem às tecnologias da informação e comunicação para implementar o currículo em diferentes níveis de escolaridade e disciplinas, inclusive para apoiar métodos de avaliação e cooperação com os pais; na Escócia (Reino Unido), os alunos com dificuldades na leitura podem recorrer a um software de leitura de texto durante os exames nacionais para responderem às perguntas; e, na Dinamarca, é obrigatória a utilização de dicionários digitais para as línguas dinamarquesa e estrangeiras, o uso do GPS para educação física e recursos digitais e bancos de dados para ciências.

Refere ainda a OCDE que as escolas podem, com recurso às tecnologias digitais, criar mais oportunidades para envolver os pais na educação dos filhos. Assim, Ontário (Canadá) desenvolve uma plataforma de recursos que permite aos pais e aos alunos o acesso a recursos educativos em modo “amigo do utilizador” através do telemóvel.

Além das adaptações curriculares, a OCDE regista que os sistemas educativos procuram outras soluções para remover as barreiras à aprendizagem, por exemplo, através da distribuição de manuais gratuitos – medida que abrange todos os alunos em 62% dos países, apenas os alunos de escolas públicas em 26% e apenas os alunos desfavorecidos em 26%. A medida de entrega de manuais gratuitos a todos os alunos, muitas vezes, cobre explicitamente todos os níveis do ensino básico ou obrigatório, como na República Checa, Finlândia, Hungria, Coreia e Portugal.

Porém, a formação de professores para garantir a igualdade de acesso a oportunidades de aprendizagem só acontece em 27% dos países da OCDE. Assim, por exemplo, Na Nova Zelândia, os professores têm acesso a formação não obrigatória em áreas específicas, como sobredotação e educação especial; e a Irlanda define orientações específicas para ajudar os professores a garantirem a qualidade dos currículos dirigidos a alunos com problemas de aprendizagem e necessidades educativas especiais.

É pouco ter apenas 27% dos países empenhados nesta especificidade de formação.

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Neste momento, a inclusão educacional escolar em Portugal é enquadrada pelas normas estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 54/2018 de 6 de julho, na sequência do Programa do XXI Governo Constitucional, que elege como uma das prioridades da ação governativa a aposta numa escola inclusiva onde todos e cada um dos alunos, independentemente da sua situação pessoal e social, encontram respostas que lhes possibilitam a aquisição de um nível de educação e formação facilitadoras da plena inclusão social.

Assim, tal prioridade política vem concretizar o direito de cada aluno a uma educação inclusiva que responda às suas potencialidades, expectativas e necessidades no âmbito de um projeto educativo comum e plural que proporcione a todos a participação e o sentido de pertença em efetivas condições de equidade, contribuindo decisivamente para maiores níveis de coesão social, como está plasmado no referido diploma, que também identifica as medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão, as áreas curriculares específicas e os recursos específicos a mobilizar para responder às necessidades educativas de todas e de cada uma das crianças e jovens ao longo do seu percurso escolar, nas diferentes ofertas de educação e formação, para uma verdadeira inclusão escolar.

O predito decreto-lei – que se aplica aos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas, às escolas profissionais e aos estabelecimentos da educação pré-escolar e do ensino básico e secundário das redes privada, cooperativa e solidária – prevê a implementação de medidas de suporte à aprendizagem em todas as modalidades e percursos de educação e de formação, de modo a garantir que todos os alunos têm igualdade de oportunidades no acesso e na frequência das diferentes ofertas educativas e formativas.

As medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão são organizadas em três níveis de intervenção: universal; seletivo; e adicional.

A definição de medidas a implementar é efetuada com base em evidências decorrentes da monitorização, da avaliação sistemática e da eficácia das medidas na resposta às necessidades de cada criança ou aluno, podendo ser adotadas em simultâneo medidas de diferentes níveis.

Assim, as medidas universais correspondem às respostas educativas que a escola disponibiliza a todos os alunos afim de promover a participação e a melhoria das aprendizagens, por exemplo: diferenciação pedagógica; acomodações curriculares; enriquecimento curricular; promoção do comportamento pró-social; e intervenção com foco académico ou comportamental em pequenos grupos. Estas medidas são mobilizadas para todos os alunos, incluindo os que necessitam de medidas seletivas ou adicionais, visando, designadamente, a promoção do desenvolvimento pessoal, interpessoal e de intervenção social.

As medidas seletivas visam colmatar as necessidades de suporte à aprendizagem não supridas pela aplicação de medidas universais e referem-se a: percursos curriculares diferenciados; adaptações curriculares não significativas; apoio psicopedagógico; antecipação e reforço das aprendizagens; e apoio tutorial. Estas medidas são operacionalizadas com os recursos materiais e humanos disponíveis na escola, e, quando a operacionalização das medidas universais implique a utilização de recursos adicionais, o diretor deve requerer, fundamentadamente, tais recursos ao serviço competente do ME (Ministério da Educação). E a monitorização e avaliação da eficácia da sua aplicação são feitas pelos responsáveis da sua implementação, de acordo com o definido no RTP (relatório técnico-pedagógico).

Por seu turno, as medidas adicionais visam colmatar dificuldades acentuadas e persistentes ao nível da comunicação, interação, cognição ou aprendizagem que exigem recursos especializados de apoio à aprendizagem e à inclusão. A mobilização destas medidas depende da demonstração da insuficiência das universais e seletivas, que deve basear-se em evidências e constar do RTP.

Consideram-se medidas adicionais: a frequência do ano de escolaridade por disciplinas; as adaptações curriculares significativas; o plano individual de transição; o desenvolvimento de metodologias e estratégias de ensino estruturado; e o desenvolvimento de competências de autonomia pessoal e social. Tais medidas devem ser preferencialmente, implementadas em contexto de sala de aula. A aplicação das medidas adicionais que requerem a intervenção de recursos especializados deve convocar a intervenção do docente de educação especial enquanto dinamizador, articulador e especialista em diferenciação de meios e materiais de aprendizagem. Tal como sucede com as medidas seletivas, as adicionais são operacionalizadas com os recursos materiais e humanos disponíveis na escola, privilegiando-se o contexto de aula, e quando a sua operacionalização implique a necessidade de mobilização de recursos adicionais, o diretor deve requerer tais recursos ao serviço competente do ME. E a monitorização e avaliação da eficácia da aplicação das medidas adicionais são realizadas pelos responsáveis pela implementação, de acordo com o definido no RTP.

Além de professores e técnicos especiais, por direito e dever, os pais ou encarregados de educação participam e cooperam ativamente em tudo quanto se relacione com a educação do filho ou educando, bem como aceder a toda a informação constante no processo individual do aluno, designadamente no que diz respeito às medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão.

Nestes termos, os pais/encarregados de educação têm o direito de: participar nas reuniões da equipa multidisciplinar; participar na definição e implementação das medidas a aplicar e fazer o seu acompanhamento; participar na elaboração e avaliação do Programa Educativo Individual; receber uma cópia do RTP e, se aplicável, do PEI (Programa Educativo Individual) e do PIT (Plano Individual de Transição); solicitar a revisão do PEI; consultar o processo individual do filho ou educando; e ter acesso a informação compreensível relativa à educação do filho ou educando.

Quando pela reavaliação prevista no n.º 1 do art.º 31.º, o RTP, elaborado pela equipa multidisciplinar de apoio à educação inclusiva, definida no art.º 12.º, recomende adaptações curriculares significativas (as que têm impacto nas competências e nas aprendizagens a desenvolver no quadro dos documentos curriculares), implicando a introdução de outras substitutivas, deve ser elaborado um PEI de acordo com o definido no art.º 24.º. E as atividades substitutivas constantes no PEI do(s) ano(s) anterior(es) terão continuidade se essa for a recomendação da equipa multidisciplinar.

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Resta saber se, nesta floresta de medidas e recursos é dado o devido relevo ao conhecimento…

Além disso, se a escola dispõe de tantos meios e recursos atinentes à inclusão, como é que se entende que tantos alunos (muitos desde o 1.º Ciclo) precisem de pagar explicações fora da escola? Ou será que o Decreto-lei n.º 55/2018, de 6 de julho (que estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário), não se destina a todos, o invés do que o próprio diploma determina?

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Quando a pandemia afeta mentes, comportamentos e discursos…

 

Apraz-me a atribuir alguns dos desmandos verificados nos últimos tempos aos efeitos da pandemia de covid-19 provocada pelo novo coronavírus SARS-Cov-2, para não o imputar à mediocridade instalada em vários setores das sociedades.

Desde logo, a teoria da conspiração formulada sem suporte investigatório contra a China e/ou laboratórios americanos, passando pela fuga acidental do vírus a partir de um dos laboratórios.

Depois, ao lado do pânico geral que se instalou nos diversos países em que não se podia tocar em nada, com base em ciência ainda sem provas dadas, aflorou o negacionismo em alguns ditos cientistas e em líderes de topo de países com relevante tamanho ou significado no concerto das nações. E, enquanto se acusava a China do forçado eclipse de pessoas por terem posto a boca no trombone alegadamente sem razão suficiente, muitos países mostraram a impreparação dos seus sistemas de saúde e ordenaram situação de calamidade pública e estados de emergência, com os respetivos confinamentos e muitas outras medidas restritivas no sistema de acordeão, conforme a incidência e o R(t) do vírus subia ou descia.

Não esqueço que Portugal, já com países como a Itália de barbas a arder, ainda só elegia como hospitais de referência dois, um em Lisboa e outro no Porto. Fechar escolas, estabelecer cercas sanitárias, nem pensar. E, daí, decretou-se encerramento de escolas, casas de comércio, serviços importantes…, o que fez parar a economia; encerraram-se igrejas, clandestinizaram-se funerais, coarctaram-se visitas a hospitais e a lares de 3.ª idade; os hospitais encheram-se de internados covid-19; e as outras maleitas graves foram arredadas da fila. Entretanto, com os briefings diários e a proliferação de notícias e opiniões na comunicação social mais se confundiram os cidadãos, muitos dos quais foram remetidos para dentro das quatro paredes do seu domicílio, alguns dos quais tiveram que sofrer o isolamento por via da quarentena mercê da infeção ou da sua suspeita ou mesmo em razão da provecta idade ou da pertença a certos grupos de risco. Entretanto, instalou-se o dilema entre salvar a saúde e estiolar a economia ou recuperar a economia em detrimento da saúde. E a isto juntou-se a plêiade de juristas a contestar a constitucionalidade de algumas medidas restritivas, no que foi acompanhada por tribunais – e mesmo tribunais superiores – quando lhes foram presentes casos de incumprimento.

Enquanto os surtos se multiplicavam, os números internamentos subiam e os cuidados intensivos tinham dificuldade em dar resposta, alguns aproveitaram-se bem da situação e enriqueceram, o que sucedeu também com a produção de vacinas. Adquiriram-se materiais sem qualidade e foram oferecidos equipamentos sem préstimo, como ventiladores adquiridos na China, que vinham com as instruções em mandarim, o que levou tempo a descodificar. 

E, se a onda de solidariedade se formou e alastrou, os fura-regras não cessaram. E as pessoas iam morrendo sem que os familiares pudessem fazer um luto minimamente decente. Mas os hospitais públicos multiplicaram-se em esforço de resposta e lograram muitos êxitos, mesmo contra o expectável. E a esperança colocou-se na ciência que nos ia dar a cura ou as vacinas. Até lá, cuidado, restrições, privações e sofrimento. E, cansados, fomos aguentando…

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O que se passou nos últimos tempos não deixa de ser preocupante.

Já nos vínhamos habitando a que o discurso do Presidente da República pontificasse com relação ao do Governo, a quem incumbe a orientação geral da política do país, e ao dos cientistas, a quem incumbe aconselhar os decisores políticos. Mas estes depararam-se com as divergências entre especialistas, apesar de a ciência dever ser ouvida mestas ocasiões, pelo que as propostas apresentadas aos decisores deveriam reunir sempre um consenso mínimo.

Entretanto, o Chefe de Estado, que estava, a princípio, solidário com as medidas do Governo, que, juntamente com o Parlamento, sempre lhe deu suporte político para as sucessivas declarações de estado de emergência e, subsequentemente, procedeu à tomada das necessárias medidas, chegou a demarcar-se do programa de vacinação contra covid-19, porque a campanha de vacinação contra gripe sazonal não correra bem, e, como teria falado com os fornecedores, que garantiram o fornecimento das vacinas a tempo, não queria colar-se ao insucesso do programa. E o político que nos sujeitou a duas séries de edições de estado de emergência, da segunda vez alegadamente para dar suporte constitucional ao Governo para aplicação de algumas medidas restritivas, veio, não há muito tempo, “sugerir” a revisão da matriz dos critérios do confinamento/desconfinamento, porque já muita gente estava vacinada e já não se justificavam tantas medidas restritivas, até porque já não havia pressão sobre o SNS como dantes. Esquecia que a incidência e o R(t) estavam em fase de ascensão, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), a mais densamente populosa.

E, embora tenha porfiado que respeitava as opiniões dos especialistas, como estes não estiveram de acordo com a sua sugestão, contestou e levantou dúvidas. Também é de recordar que, no início do seu novo mandato presidencial, declarara não se pronunciar sobre as normas e fases de desconfinamento que o Governo ia estabelecer porque não as conhecia, para vir dizer, no dia seguinte, a partir de Roma, que foi informado das decisões do Conselho de Ministros, que eram equilibradas e que muitas delas tinham sido concertadas previamente consigo. Desta feita, como obviamente o Governo preferiu seguir a linha indicada pelos especialistas, veio dizer, quando interpelado, que o Executivo decidiu entre dois fundamentalismos.

Entretanto, quando se desconfia da não eficácia prevista das vacinas, não se sabendo do tempo de vigência da imunização (pela via vacinal ou pela via da contração do vírus), quando a incidência e o R(t) sobem drasticamente no país, com a variante Delta (Índia) e a Delta plus (Nepal), pessoas já completamente vacinadas ficam infetadas e algumas morreram, recordo a troca de galhardetes entre Presidente e Primeiro-Ministro sobre confinamento. O Presidente garantiu que, no que de si depender, não haverá mais confinamento – asserção temerária, pois ninguém sabe do futuro próximo (a ciência, em que se confia, não é absoluta) – não valendo dizer que se referia ao estado de emergência, que bem pode vir a ser necessário; e o Primeiro-Ministro veio dizer que ninguém, nem o Presidente da República, poderia garantir que não haveria confinamento. Diz-se que António Costa escusava de referir o Presidente (não sei porquê), mas que as suas palavras não envolvem desautorização como supuseram os jornalistas que interpelaram Marcelo. Este disse que nunca o Presidente pode ser desautorizado pelo Primeiro-Ministro, pois é o Presidente que nomeia o Primeiro-Ministro (era escusado este esclarecimento, que não é exato, pois a nomeação não é de inteira liberdade do Presidente). E Costa nega que tenha desautorizado o Presidente (até desautorizou…).

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Depois, veio a futebolomania. À final da Champions League, sem público, oferecida e propalada em Lisboa, no Palácio de Belém, em 2020, sucedeu a deste ano no Dragão.

António Costa até disse, em 2020, que era um presente aos profissionais de saúde. Pasme-se! Este ano, contra o que sucedeu, o ano passado, com o campeão nacional, a festa do Sporting nas imediações do Estádio e nas principais artérias de Lisboa constituíram um atentado às regras de um confinamento gradual e controlado. Todavia, os responsáveis assobiaram para o lado… A seguir, o Primeiro-Ministro britânico coloca Portugal na lista verde para deslocações entre o Reino Unido e Portugal. Sem mais, abriu-se a porta a ingleses, obviamente mediante condições, mas cuja aplicação não foi controlada pelas autoridades. Neste contexto, aos jogadores e adeptos que vieram ao Dragão e regressaram ao Reino Unido em sistema de bolha e controlo juntaram-se os que advieram de outros pontos de país, sobretudo do Algarve, e que enxamearam as ruas do Porto e sem respeito pelas condições de proteção individual e comunitária.

Nisto, o Governo britânico retirou Portugal da lista verde, o que prejudicou o turismo algarvio e revelou menosprezo pela deferência de Portugal ter acolhido a final da Champions League entre duas equipas inglesas. Provavelmente foram os ingleses que deixaram aqui a variante Delta!

Entretanto, Merkel atirou-se a Portugal por via disto sem a devida fundamentação e Costa respondeu que não havia ligação entre os ingleses no Porto e a subida da incidência e do R(t), não sei com que fundamentação científica. Ainda bem que Marcelo e a Ministra da Saúde colocaram bem a questão da multifatoriedade e da versatilidade da direção das variantes…     

Eu não tenho nada contra a presença do Presidente da República, de membros do Governo ou do Parlamento nos jogos da Seleção de Portugal. Porém, a obsessão generalizada pelo futebol, sobretudo em tempo como aquele que estamos a atravessar, causa-me comichão.

Com efeito, a aposta de Marcelo e Orbán à garrafa do melhor vinho não abona sobre as altas figuras dos Estados. O apelo dramático de Ferro Rodrigues a que os portugueses acorressem em massa a Sevilha assistir ao Bélgica-Portugal, a recomendação do mesmo aos deputados que pudessem estar presentes e a explicação de Marcelo sobre o apelo de Ferro Rodrigues desdizem da atenção de algumas das figuras do Estado à situação da evolução da pandemia no país e em particular da AML, onde o Governo determinou fortes restrições nomeadamente de circulação de e para a AML, bem como as condições vigentes em Sevilha. Nem a ausência de Marcelo e de Ferro do jogo de Sevilha os iliba, pois cederam às críticas que não acharam suficiente a explicação de que podiam ultrapassar as barreiras da AML os detentores do certificado digital UE. Era um insulto aos que não podem sair nem ter um momento folgado de lazer. Líderes não abandonam a sorte dos liderados.    

O JN deste dia 28 regista que alguns centros de vacinação verificam um aumento no número de pessoas que faltam à inoculação. Mesmo depois de a terem autoagendado e confirmado por SMS a marcação, o que se verificou de modo evidente aquando do jogo com a Alemanha. E as razões prendem-se com o futebol, mas também com os feriados e as férias, esquecendo os cidadãos que está em primeiro lugar a saúde pessoal e a saúde comunitária e que só depois vem o lazer e mesmo o filosofar: “Primum viver, deinde philosophari”.

O coordenador da “task force” da vacinação diz:

O que estamos a tentar fazer para evitar é [utilizar] a metodologia casa aberta. Primeiro na sua área de residência e depois, eventualmente, até fora da área de residência.”.

A “task force”, não dizendo se tem um “plano B” para a toma das segundas doses, caso calhe em época de férias, apela a que a população cumpra o esquema vacinal proposto.

É certo que a realidade é diferente em vários sítios do país. Todavia, por se tratar de um sistema proativo, em que os utentes têm de procurar um local e uma data com vaga no sistema e depois confirmar a marcação, “é estranho” que o número de ausências seja elevado. No entanto, no caso das segundas tomas, é possível alterar a marcação. Assim, quando fazem a primeira dose, as pessoas podem pedir a alteração da data da segunda. Quanto à primeira dose, o utente deve contactar o centro de saúde e pedir a alteração.

Mas para quê, se todos estávamos à espera da vacina como solução, se todos conhecíamos o faseamento e estávamos advertidos para o passível atraso mercê do fornecimento de vacinas a conta-gotas? Onde está a máxima da “Salus Reipublicae lex suprema esto”?

E, sem falar já das vacinas dadas antes do tempo a funcionários de pastelaria, a gente cuja situação não era prioritária, regista-se ultimamente a decisão da diretora dum ACES de fazer a casa aberta a 100 jovens para quem ainda não estava autorizada a vacinação. Irresponsabilidade!   

Também os parlamentares parecem ziguezaguear. Por exemplo, o ano passado, produziram uma lei sobre eleições autárquicas, que alteraram em parte, este ano, sem conhecerem ainda o veredicto do Tribunal Constitucional. E recentemente aprovaram a Carta dos Direitos Digitais, mas, ainda antes de a lei entrar em vigor, já estão a pensar alterá-la!

O Primeiro-Ministro, na ânsia de fazer disparar a bazuca europeia, quis saber se já podia ir ao banco. E o Presidente quer que a sua Casa Civil, a que dá pouca relevância segundo o “Tal e Qual”, policie a aplicação dos fundos europeus, talvez superando o Tribunal de Contas ou o Ministério Público…    

As redes sociais estão a veicular uma falsa informação, alegadamente com base científica, segundo a qual as pessoas que foram vacinadas contra a covid-19 morrerão até 2025. Se isso fosse verdade, ficaríamos com o mundo reduzido a um terço…   

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Por fim, uma preciosidade do poder judicial. O JN e o Notícias ao Minuto acabam de publicar que o Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando a 1.ª instância, absolveu o homem que chamou arrogante e mau profissional a agente da PSP e disse que não prestava, frisando que o polícia deve ter “acrescida tolerância” a estas formas de expressão. O acórdão considera que tais palavras “não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria”. Mais: quem exerce funções públicas está sujeito à crítica objetiva, acrescentando que, nesse contexto, “são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação” (Ora bolas!). E diz ser exigível a quem exerce funções públicas que “disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social”. Tais expressões remetem para a ideia de que o arguido quis, no âmbito da liberdade de expressão, “criticar o comportamento do assistente no exercício das suas funções profissionais e não atingir a sua dignidade ou honra”.

Entretanto, o JN recorda que a Relação de Lisboa absolveu a mulher que chamou palhaços a agentes da PSP, pois usou linguagem grosseira e ordinária, mas que não configura ilícito criminal, mas condenou o homem que mandou três agentes “pró…”. E sabe-se que polícias foram condenados por mandarem atoardas verbais contra detidos ou contra simples autuandos.

Como o Presidente do CES conseguiu a aprovação dum abstruso manual de linguagens para comunicação entre os elementos do CES e com as outras entidades, o CSMP (Conselho Superior do Ministério Público) ou o CSM (Conselho Superior da Magistratura) podiam fornecer aos cidadãos lista de palavras e expressões que constituem ilícito criminal e das que apenas revelam má educação. Depois, esclareçam se os juízes são funcionários públicos (têm sindicato) a ver se podemos ser mal-educados para com eles. É que órgão de soberania são os tribunais como um todo.

2021.06.28 – Louro de Carvalho

domingo, 27 de junho de 2021

“A tua fé te salvou. Tem apenas fé.”

 

 

O enunciado em epígrafe corresponde a duas indicações de Jesus numa demonstração da sua aposta pela vida: a primeira é dirigida à hemorroísa (do grego “haimórroos, on” – que provoca fluxo de sangue) depois que ela se sentiu curada; a segunda é dirigida a Jairo quando lhe vieram dizer que a filha tinha morrido.

Na verdade, o Evangelho deste domingo XIII do Tempo Comum no Ano B (Mc 5,21-43) relata dois milagres de Jesus, em que um surge ensanduichado pelo outro. Jairo, um dos chefes da sinagoga (Mc 5,22-24), vendo Jesus, caiu aos seus pés e suplicou-Lhe muito (“pollá”):

A minha filhinha (thygátrion: diminutivo de tygátêr) está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva.”. 

Jesus correspondeu prontamente a este apelo à vida e foi com ele (“met’ autoû) rodeado de grande multidão que O apertava (“synéthlibon autón”).

Entretanto, a caminhada para casa de Jairo sofre um incidente (Mc 5,25-34): uma mulher anónima sofria duma grave hemorragia havia 12 anos, situação física, social e religiosamente dolorosa, pois a tornava impura e distante de Deus e das pessoas, mas, com a ousadia inspirada na fé e na confiança, chega junto de Jesus e toca-Lhe por detrás na fímbria do manto, de modo a que ninguém, nem mesmo Jesus se apercebesse (estava convicta de que tocando a orla do manto de Jesus teria a cura que os vários médicos que a tentaram tratar não conseguiram).   

Porém, em vez do relato atinente à hemorroísa ter ficado por aqui, Jesus tira partido do episódio para uma lição de fé, não deixando que a história da mulher se circunscreva ao aspeto físico e mesmo anónimo. Assim interpela a multidão: “Quem me tocou as vestes?” (“tís mou hêpsato tôn himatíôn;”: Mc 5,30). Os discípulos desvalorizam a interpelação aduzindo a compressão produzida pela multidão que O rodeava. Não obstante, o Senhor prossegue na sua aproximação àquela mulher que, pela sua enorme fé, passa a integrar a família de Jesus, pois recebe o raro apelativo de Jesus a uma mulher, “filha”.  Com efeito, a mulher a temer e a tremer, prostrou-se diante de Jesus e contou toda a verdade da sua vida. E Jesus sentenciou a maravilha da fé, “Filha, a tua fé te salvou(“thygátêr, hê pístis sou sésômén se”); e continuou dizendo. “Vai em paz e fica curada da tua enfermidade(“hýpage eis eirênên, kaì ísthi hygiês apò tês mástigós sou”) (Mc 5,34).   

Jesus, na verdade, acompanha-nos sempre e detém-se sobretudo com aqueles que sofrem e os acompanha: partilha o caminho e as dores; tira-os do anonimato e do buraco em que estavam.

Estava a dar a impressão de o Mestre se esquecera do pedido de Jairo. Mas não. Resolvido um problema, Jesus passa ao seguinte (Mc 5,35-43). Todavia, enquanto prossegue a marcha, os criados de Jairo trazem a triste notícia de que a morte chegou a casa da menina antes de Jesus, não valendo a pena continuar a incomodá-Lo. E Jesus, que até agora tinha acompanhado aquele pai sem dizer nada, agora conforta o homem destroçado pela notícia da morte: “Não tenhas medo; tem apenas fé!(“mê phóboû, mónon písteue”: Mc 5,36).

Jesus, que nunca chega atrasado, apenas Se demora connosco pelo caminho, chegou muito a tempo a casa de Jairo. E, face aos fortes prantos e lamentações, proclama: “A menina não morreu, mas dorme(“tò paidíon ouk apéthanen, allà katheúdei”: Mc 5,39).

Dom António Couto, Bispo de Lamego, chama a atenção para a recorrência deste modo de falar da morte como de um sono na Igreja primitiva (1Ts 4,13-15; 1Cor 11,30; 15,6 e 20; Mt 27,52) e na tradição da Igreja ainda hoje, sendo que a palavra “cemitério” deriva do grego koimêtêrion, que significa literalmente “dormitório”, pelo que, na liturgia, é habitual rezarmos pelos nossos irmãos que adormeceram em Cristo. Jesus entra na divisão da casa onde está a menina apenas com o pai, a mãe da menina e três apóstolos (Pedro, Tiago e João). E vinca o predito prelado académico o número sete dos presentes, sublinhando que Jesus, com a plenitude (é o significado do número 7), “rasga a nossa planitude”.

Frisando Dom António Couto a soberania de Jesus na sua voz e no seu gesto, não deixa de vincar a ternura o Mestre taumaturgo. A este respeito não deixa de ser interessante o pequeno “excursus” que faz sobre a expressão “Talitha, qûm!” (“tò korásion, soì légô, égeire”):

Pegando ternamente na mão da menina, Jesus diz, em aramaico, língua materna de Jesus e da menina: «Talitha, qûm!» [= menina, filha, irmã, levanta-te!] (Mc 5,41). Não passa despercebido que a palavra de Jesus interpela a própria morte e trata aquela menina ternamente por irmã, irmãzinha, sua irmã querida. Na verdade, o aramaico Talitha é o feminino de Talyaʼ. E o aramaico Talyaʼ é a mais bela, plena e significativa palavra para dizer Jesus, pois significa ao mesmo tempo «filho», «cordeiro», «servo», «pão». Sim, Jesus é o «Filho de Deus», o «Cordeiro de Deus», o «Servo de Deus», o «Pão de Deus». Como se vê, Talyaʼ diz o Jesus todo, sendo Ele a vida verdadeira, ressuscitada, levantada, que liberta e alimenta, ressuscita e levanta.”.

Como a hemorroísa também a filha de Jairo é considerada família de Jesus.

Não posso deixar de referir que, tal como dizia hoje o Padre Passionista João Paulo Silva, tanto a hemorroísa, que sofria da sua enfermidade há 12 anos, como esta menina, que tinha 12 anos de idade, simbolizam a comunidade de Israel organizada nas suas 12 tribos e a comunidade cristã fundada por Cristo sobre os 12 apóstolos, uma transformação na continuidade permanentemente renovada e com total abertura a todos e a todas.

Como afirma o pároco de São Luís, de Faro, as duas beneficiárias das ações de Jesus neste têm em comum os 12 anos: a primeira estava doente desde os 12 anos e a jovem filha morreu aos 12 anos, idade em que se devia tornar mulher. No povo de Israel, o percurso destas duas mulheres era sinal de fracasso. Uma estava atingida na sua fecundidade, como Sara, a mulher de Abraão, visto que perdia o sangue, princípio de vida na mentalidade semítica; a outra perdia a vida na idade em que se preparava para a transmitir (era tradição casar-se muito cedo). Ora, Cristo, curando as duas, permite-lhes assumir a sua vocação maternal: trunfa pela vida.

Assim, estas duas mulheres representam a Igreja na sua vocação maternal de dar e de alimentar a vida em Cristo. Efetivamente, as alusões aos mistérios da Igreja orientam a compreensão do relato: Jairo pede a Jesus que imponha as mãos para salvar e dar a vida à filha, quando toda a preparação para o Batismo está sinalizada pela imposição das mãos. Jesus levanta a jovem, tomando-a pela mão, tal como o diácono fazia sair da água o batizado, tomando-o pela mão a despertá-lo para a vida em Deus. E Jesus, para que não se distraíssem com o prodígio, manda dar de comer à jovem ressuscitada da morte, alusão à Eucaristia que se segue ao Batismo. Porém, alude também à necessidade do alimento corporal, comum a todos os seres humanos.

Diz o Bispo de Lamego que a voz de Jesus “é mais fina do que o silêncio (cf 1Rs 19,12), mais afiada e eficaz do que a lâmina do bisturi (Heb 4,12), mais íntima e apelativa do que a chama que, da sarça, chama Moisés (cf Ex 3,4) ou queima o coração dos dois de Emaús (cf Lc 24,32) ou do que as línguas de fogo daquele ardente Pentecostes (cf At 2,3).”. Como “voz nova que quebra as nossas crostas”, “desde dentro, queima, purifica, limpa, corta, opera, atravessa o coração”.

Não podemos deixar de pensar e sentir que O Reino de Deus é a vida. Por isso, Jesus, no contexto e para o objetivo da pregação do Reino percorre o país a anunciá-lo e implantá-lo. Fala e age. A sua fama espalha-se, porque brota d’Ele, a força da ressurreição, o Espírito de vida. “Fica curada” é um imperativo que tem algo de muito afetuoso para com a mulher restaurada na sua dignidade e reinserida na sociedade que a excluía pelo seu mal. Por outro lado, aparece como uma verificação: foi a sua fé que a salvou, o que alegra Jesus, pois a cura é consequência da fé, que é fonte de vida e de felicidade. E estoutro imperativo “Levanta-te” é dinâmico e traduz o desmedido desejo de Deus em ver o homem vivo, o seu amor incondicional pela vida. Evoca a ressurreição, o novo surgir da vida, o amor divino que nos põe de pé. Jesus só pede ao pai da jovem que não tenha medo e tenha fé.

Da ressuscitação da menina, Jesus manda que não se diga nada a ninguém (Mc 5,43), pois ela aponta para a verdadeira e plena ressurreição de Jesus, que ainda não seria entendida, mas que não é para ser calada. É, antes, para ser anunciada a todos os corações, a todos os povos.

Trata-se de duas cenas únicas, plenas de humanidade e divindade. Passa Senhor Jesus à nossa porta, entra-nos em casa, reveste de festa o nosso dorido coração e faz-nos sentir seus irmãos.

Este passo do Evangelho é o episódio da transformação pela fé. Um chefe de sinagoga cai de joelhos e suplica a Jesus a cura da filha. Uma mulher atingida por grave hemorragia não diz nada: contenta-se em tocar as vestes de Jesus, porque se considera impura. Isto basta Àquele que veio para levantar a humanidade ferida. São diversas as reações dos que acompanham Jesus. Riem-se d’Ele. Só a fé concita um sinal de Jesus, a fé de Jairo, a fé da mulher, a fé de Pedro, Tiago e João. É a fé que leva Jesus a agir e transforma os beneficiários: a mulher é curada, a jovem levanta-se, as testemunhas ficam abaladas. Jesus, que não é um simples taumaturgo, é reconhecido por aqueles que acreditam, mas recomenda insistentemente que ninguém saiba, com receio, sem dúvida, de que se valorizem os seus sinais sem se verem com o olhar da fé.

De Jesus mergulhado no barulho e no aperto da multidão circula o rumor: vai fazer um milagre, vai curar a menina de Jairo. A multidão comprime-se à volta de Jesus. E uma mulher quer, a todo o custo, aproximar-se de Jesus para, ao menos, tocar as suas vestes, pois também quer ser beneficiária do poder do homem de Deus, ser curada da sua doença que dura há 12 anos. Ela chega por detrás, toca as suas vestes. O mesmo acontece com Jairo que se aproxima.

No meio da multidão, Jesus está atento a estas pessoas concretas, manifesta uma disponibilidade extraordinária. Jesus está atento a cada um. Ninguém fica anónimo aos seus olhos. Está habitado pelo amor de Deus para com os seus filhos. No Coração do Pai, Jesus é capaz de uma atenção extrema a cada angústia do ser humano. Não interessa quem possa vir junto d’Ele ou qual é a situação: Jesus dará sempre a sua atenção como se cada um estivesse sozinho no mundo com Ele. Isto continua a ser assim, agora que Jesus está na plenitude da glória do seu Pai.

***

Como referência à 1.ª leitura (Sb 1,13-15; 2,23-24), sempre é de sublinhar que o Livro da Sabedoria foi composto um pouco antes da vinda de Jesus, sendo a sua doutrina mais serena que a dos livros mais antigos, sobretudo no atinente à apresentação do rosto de Deus.

O trecho em referência leva-nos a proclamar, com toda a força, que “não foi Deus quem fez a morte”. Ao invés do que sugerem ideias ainda muito espalhadas, segundo as quais agradaria a Deus fazer morrer o homem, é preciso afirmar, sem margem para dúvidas, que Ele, o Deus da vida, cria a vida e dá-a à humanidade, modelada à sua imagem; restaura a vida, quando esta está em perigo de se apagar; e dá a vida quando está perdida, como se vê pelo passo evangélico desta dominga. A Sabedoria otimiza o mundo com a luz da misericórdia de Deus. E o mundo assim otimizado não pode conter em si nem a origem do pecado nem a morte. É, pois, ao demónio, autor do mal e pai da mentira, não à mulher (cf Sir 25,24) nem à serpente que o Livro atribui a entrada do pecado no mundo (Sb 2,24). Por isso, tem razão o salmista ao dizer ao Senhor “Vivificaste-me”. Com efeito, no seguimento da proclamação deste excerto do Livro da Sabedoria, o Salmo 30 exprime a experiência de um Deus que quer a vida dos seus fiéis. Por isso, nós cantamos: “Eu Te louvo, Senhor, porque me salvaste”. E sabemos que, em Jesus ressuscitado, para todos os que n’Ele acreditam, a oração do salmo encontra toda a sua verdade.

Este salmo – ligado à Festa da Dedicação do Templo, quando Judas Macabeu entrou no Templo de Jerusalém em 164 e o fez purificar após um longo período de ocupação e paganização pelos selêucidas – configura uma bela Ação de Graças ao Deus que liberta o orante da tristeza, da doença, do luto e da morte, e o faz exultar de vida, alegria e saúde. Na verdade, Deus muda as nossas situações difíceis e, por vezes, sem saída, largas rotas de paz e felicidade.

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E, no atinente à 2.ª leitura (2Cor 8,7-15), Paulo rasga-nos o horizonte da caridade tecida nas primeiras comunidades cristãs, que praticaram a entreajuda e a partilha, não apenas entre os seus membros, mas também para com as outras comunidades, sobretudo as necessitadas.

O apóstolo tinha organizado uma coleta (“logeía) junto das comunidades que tinha fundado na Ásia Menor, na Macedónia e na Acaia, em prol dos irmãos de Jerusalém que estavam em dificuldades. A iniciativa correspondia às orientações da jovem Igreja, segundo At 4,32-35.

Paulo justifica esta ação de partilha pela generosidade de Cristo: esta é modelo para os cristãos e eles próprios já beneficiaram dela. E Paulo, reconhecendo que os Coríntios “abundam em tudo (vd 2Cor 8,7) – em fé (“pístei”) e palavra (“lógôi”) e conhecimento (“gnôsei”) e todo o afinco (“pásê spoudêi”) e no nosso amor para convosco” (“i ex hêmôn en hymîn apapêi”) – exorta a que primem nesta graça (generosidade) (“en taútêii káriti”) para com os irmãos necessitados de Jerusalém. Fá-lo, não pela via do mando, mas em nome da autenticidade da caridade dos Coríntios.

À imagem Cristo que, “sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9), Paulo, que é, segundo Bento XVI, “o maior missionário de todos os tempos”, e, para São Paulo VI, o “modelo de cada evangelizador”, norteou a sua missão pela bússola: “Nós só nos devíamos lembrar dos pobres(Gl 2,10). E, porque a atenção para com os pobres constitui o critério de validação da missão, Paulo empenhou-se na predita coleta mobilizando todas as Igrejas que fundara. Tal coleta intereclesial constitui fenómeno único (hápax phainómenon) no mundo antigo, a concretizar realidades fundamentais na Igreja, como a comunhão (“koinonia), o serviço (“diakonía”) e sobretudo a graça (“kháris”), a graça servida por nós, como refere exemplarmente Paulo (2Cor 8,19), com vista à glória do Senhor.

E aqui fica a forte interpelação às Igrejas de hoje. Na verdade, a causa da vida mobiliza-nos face à doença com vista à cura, contra a morte iminente com vista à sua protelação quanto possível e, sobretudo, não a causando a ninguém. Mas tudo começa na procura de que todos tenham o suficiente para viverem condignamente almejando a igualdade, pois, como está escrito, “quem muito recolheu não teve em superabundância e aquele que recolheu pouco não teve falta de nada (2Cor 8,15; cf Ex 16,18).

É a vida. Para que a tenhamos e a tenhamos em abundância é que Ele veio ao mundo (cf Jo 10,10).  

2021.06.27 – Louro de Carvalho