Quem apontava a Assunção Esteves, que foi presidente
da Assembleia da República, o rebuscado do vocabulário, o que sempre tentei
perceber e até justificar, não perdoará a Lacerda Sales o emprego da forma
verbal adjetiva “normatizado” e do grupo adjetival “fortemente recomendativo”. Isto
vem a propósito das asserções do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde de que
os testes à covid-19 são um ‘dever’ e quem organiza eventos deve promover
rastreios.
Na
verdade, a DGS (Direção-Geral da Saúde) atualizou, nestes dias (15
a 17 de junho), a Norma
n.º 019/2020, de 26 de outubro, “Estratégia Nacional de Testes para SARS-CoV-2”,
relativamente ao teor dos números 22 a 25, scilicet
“Definição de critérios para rastreios
laboratoriais, designadamente, em contexto laboral, e para eventos culturais,
desportivos, corporativos e de natureza familiar”, que se transcreve:
“Sem prejuízo de planos setoriais
específicos, na atual situação epidemiológica (…), estão recomendados rastreios
laboratoriais regulares nos seguintes contextos:
a. Nas creches, e estabelecimentos
de educação e ensino, nos termos do documento DGEST/ISS/DGS sobre ‘Programa de
Rastreios Laboratoriais para SARS-CoV-2 nas Creches e Estabelecimentos de
Educação e Ensino’, bem como nos estabelecimentos de ensino superior, de acordo
com o estabelecido, para todos os casos, no Plano de Promoção da
Operacionalização da Testagem para SARS-CoV-2;
b. Nos locais com maior risco de
transmissão em meio laboral, incluindo explorações agrícolas e o setor da
construção, nos termos do Plano de Promoção da Operacionalização da Testagem
para SARS-CoV-2, com uma periodicidade de 14/14 dias;
c. Nos serviços públicos, nos
termos do Plano de Promoção da Operacionalização da Testagem para SARS-CoV-2,
com uma periodicidade de 14/14 dias;
d. Nos locais de trabalho com 150
ou mais trabalhadores, independentemente do vínculo laboral, da modalidade ou
da natureza da relação jurídica, nos termos do Plano de Promoção da
Operacionalização da Testagem para SARS-CoV-2, com uma periodicidade de 14/14
dias.
Para
os devidos efeitos:
a. Devem ser utilizados testes
rápidos de antigénio (TRAg);
b. Os resultados positivos devem
ser confirmados por TAAN, realizado no prazo de 24h, de forma a garantir a
implementação de medidas de Saúde Pública adequadas e proporcionais,
assumindo-se o resultado obtido no TAAN como válido30;
c. Pode ser considerada a amostra
de saliva para a realização dos rastreios laboratoriais, utilizando-se, para o
efeito, TAAN;
d. Os rastreios devem ser
periódicos nos concelhos com incidência cumulativa a 14 dias superior a
120/100.000 habitantes, ou em concelhos com incidência cumulativa inferior, de
acordo com a avaliação de risco epidemiológico a nível regional e/ou local,
pela Autoridade de Saúde territorialmente competente.
e. Se não forem identificados casos
de infeção por SARS-CoV-2, mantém-se a periodicidade do rastreio, nos termos da
presente Norma;
f. Se forem identificados um ou mais
casos de infeção por SARS-CoV-2, deverá atuar-se de acordo com a Norma 004/2020
e 015/2020 da DGS.
Sem prejuízo de planos setoriais e
de orientações da DGS específicos, na atual situação epidemiológica, para
efeito do disposto no número 21 da presente Norma, devem realizar-se rastreios
laboratoriais nos seguintes contextos:
a. Nos eventos de natureza
familiar, designadamente festas de casamento, batizados e aniversários, bem
como quaisquer outras celebrações similares, com reunião de pessoas fora do agregado
familiar, aos profissionais e participantes, nos termos do Plano de Promoção da
Operacionalização da Testagem para SARSCoV-2, sempre que o número de
participantes seja superior 10;
b. Nos eventos de natureza
cultural, desportiva ou corporativa, aos profissionais e
participantes/espectadores, nos termos do Plano de Promoção da Operacionalização
da Testagem para SARS-CoV-2, sempre que o número de participantes/espectadores
seja superior a 1000, em ambiente aberto, ou superior a 500, em ambiente fechado;
c. Para os eventos de natureza
cultural, cuja venda de bilhetes já se encontre iniciada à data da atualização
da presente Norma, sempre que o número de participantes/espectadores
corresponda aos indicados na alínea anterior, é recomendado que o promotor
avalie a possibilidade da realização de rastreios laboratoriais.
Para
os devidos efeitos:
a. Devem ser realizados, em
alternativa: i. Teste rápido de antigénio (TRAg), realizado 48h antes do início
do evento; ii. Teste rápido de antigénio na modalidade de autoteste (colheita
nasal), no próprio dia e no local do evento e sob supervisão de um profissional
de saúde; iii. Teste de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN), tais como
RT-PCR, RT-PCR em tempo real ou teste molecular rápido, até 72h antes do evento.
b. Os resultados positivos nos TRAg
devem ser confirmados por TAAN, realizado no prazo de 24h, de forma a garantir
a implementação de medidas de Saúde Pública adequadas e proporcionais,
assumindo-se o resultado obtido no TAAN como válido33;
c. Pode ser considerada a amostra
de saliva para a realização dos rastreios laboratoriais, utilizando-se, para o
efeito, TAAN; d. Se forem identificados um ou mais casos de infeção por
SARS-CoV-2, deverá atuar-se de acordo com a Norma 004/2020 e 015/2020 da DGS, não
devendo estas pessoas aceder aos eventos.”.
***
Nestes
termos, a DGS, em relação aos eventos de
natureza cultural ou desportiva, recomenda a realização de testes “sempre que o
número de participantes/espectadores seja superior a mil, em ambiente aberto,
ou superior a 500, em ambiente fechado”; e recomenda testes de despiste à
covid-19 em casamentos, batizados e outros eventos familiares que tenham mais
de 10 pessoas.
Enfim, quer testes em eventos culturais e desportivos, serviços públicos e empresas,
eventos familiares, designadamente
casamentos e batizados, bem como quaisquer outras celebrações similares, com
reunião de pessoas fora do agregado familiar, aos profissionais e participantes
sempre que o número de participantes seja superior a 10 – um reforço no
rastreio “como medida de controlo da transmissão comunitária”. Já em contexto laboral, nos locais de maior risco
de transmissão, como as explorações agrícolas e o setor da construção, a
referida norma aconselha a testagem com uma periodicidade de 14 em 14 dias – recomendação também dirigida a serviços públicos e
locais de trabalho com 150 ou mais trabalhadores, independentemente do vínculo
laboral, modalidade ou natureza da relação jurídica.
Conhecida a
atualização da predita norma da DGS, o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde
afirmou que os promotores “devem” ser os responsáveis pela promoção dos testes
de despiste à covid-19, como está descrito na norma do Conselho de Ministros.
Em Santa
Cruz da Trapa, concelho de São Pedro do Sul, questionado sobre se a
recomendação da autoridade de saúde era obrigatória, António Lacerda Sales referiu
que “as normas da DGS são sempre fortemente recomendativas”. “Diria que” a testagem “é um dever”, afirmou
referindo-se, por exemplo, a eventos como casamentos e batizados. Lembrou que a testagem “é ‘recomendativa’ em muitos setores: nas escolas, na administração
pública e noutros setores”. E reforçou dizendo que “é um dever de quem organiza promover também essas
testagens” e que “as principais entidades fiscalizadoras são os próprios
promotores”.
E, questionado
sobre se nos eventos culturais a responsabilidade de testagem é dos promotores,
respondeu que está “normatizado” que os custos dos testes vão ser suportados
pelo público, salientando que os promotores têm sido importantes na colaboração
com o Governo – e vão continuar a ser – e que também são “responsáveis”, “são
agentes de saúde pública”. E vincou:
“Há aqui uma forte recomendação e há aqui um dever por parte dos
agentes promotores para que se possa testar toda a gente que vai a um evento”.
Ao mesmo
tempo que recordou que “todos somos responsáveis por todos nós”, sendo uma das
grandes lições da pandemia que “só conseguimos cuidar de nós se cuidarmos dos
outros”, disse:
“As pessoas quando vão a um evento têm de
ser testadas e o promotor deve
impedir a pessoa de participar no evento se não estiver testada. Por isso é que
é uma entidade fiscalizadora, por isso é que é a corresponsabilidade do
promotor.”.
À questão “se os
promotores serão os responsáveis pela realização dos testes”, Lacerda Sales
respondeu fazendo referência à norma do Conselho de Ministros:
“Os promotores devem e, por isso, é
fortemente recomendativo, devem, a palavra é explícita, aliás se olhar para a
resolução do Conselho de Ministros, o ponto número 3, diz lá ‘devem’. Devem
promover esta testagem.”.
Quer dizer:
o governante pretendeu dar uma lição de leitura. Lembra o famoso Vítor Gaspar.
Para o governante “é muito importante” que as pessoas se testem antes dos
eventos, porque são grandes aglomerações de pessoas, com lotações bem definidas na norma, com 500 pessoas
em ambiente interno e 1000 pessoas em ambiente exterior.
Em reação às
críticas dos promotores culturais, de que estas testagens podem ser a morte da
cultura, Lacerda Sales diz que temos de ir adaptando “gradualmente esta
situação”. E frisou:
“Temos de
ter a perceção de que tem de ser nesta progressividade que temos de ir
caminhando no desconfinamento. Todas as normas vão sendo adaptáveis. Primeiro, temos de começar por alguns
números, depois se a situação for evoluindo favoravelmente vamos com certeza
melhorar essa possibilidade.”.
***
Também a IGAC (Inspeção-Geral
das Atividades Culturais) diz que os testes são obrigatórios em eventos
culturais com mais de 500 pessoas. Ou seja, enquanto a DGS recomenda e o
governante fala em fortemente recomendativos e normatizados, a IGAC esclareceu, no dia 16, que é “obrigatória” a
realização de testes à covid-19 nos eventos culturais, quando o número de expectadores
for superior a mil, em espetáculos ao ar livre, e a 500, em espaços fechados.
O
esclarecimento da IGAC acontece horas depois de conhecida a norma da DGS, que
especifica números diferenciados de participantes em eventos familiares,
culturais e desportivos, a partir dos quais recomenda a realização de testes à
covid-19. E é veiculado nos termos seguintes:
“A Direção-Geral de Saúde (DGS) procedeu à atualização da Norma n.º
019/2020, de 14/06/2021, sobre a Estratégia Nacional de Testes para SARS-CoV-2,
da qual decorre ser obrigatória a realização de rastreios laboratoriais nos
eventos de natureza cultural aos participantes/espectadores, sempre que o
número de participantes/espectadores seja superior a 1000, em ambiente aberto,
ou superior a 500, em ambiente fechado”.
De acordo
com a IGAC, “para os eventos de natureza cultural, cuja venda de bilhetes já se
encontre iniciada à data da atualização da norma em questão, é recomendado que
o promotor avalie a possibilidade da realização de rastreios laboratoriais”.
Mais: a IGAC
explica que “os testes admitidos” são:
“Teste rápido de antigénio (TRAg), realizado
48h antes do início do evento; teste rápido de antigénio na modalidade de
autoteste (colheita nasal), no próprio dia e no local do evento e sob
supervisão dum profissional de saúde; teste de amplificação de ácidos nucleicos
(TAAN), tais como RT-PCR, RT-PCR em tempo real ou teste molecular rápido, até
72h antes do evento”.
***
Não
discuto a legitimidade nem a oportunidade da neologia fabricada ou simplesmente
assumida por Lacerda Sales, mas assinalo duas dificuldades: a contradição entre
a visão DGS/Sales e a visão da IGAC; e a tomada da semântica do verbo “dever”. Quanto
à primeira, fica por saber se os testes são obrigatórios no atinente a eventos
culturais e só recomendados nos outros casos referenciados; e, relativamente à
segunda, já ouvi juristas a dizer que o verbo “dever” não traduz a força
obrigatória duma norma, a qual é expressa por “é obrigatório”, “são obrigados”,
“têm de” e outras expressões com o memso peso semântico.
Em
todo o caso, é de referir que o chorrilho de recomendações – não creio que uma
entidade inspetiva tenha competência para urgir a obrigatoriedade de algo que é
apresentado como recomendação, por mais adjetiva e adverbializada que venha –
da DGS, a mão executória da política do Ministério da Saúde, não tem força
coercitiva, mesmo em tempo de pandemia. E isso é muito grave.
Poder
administrativo que não consegue produzir normas procedimentais com força
obrigatória geral é poder vazio ou nulo. E confiar em absoluto na capacidade
cívica dos cidadãos, já cansados do confinamento e das restrições concomitantes
e subsequentes é uma irresponsável temeridade dos poderes políticos. Ora, se as
leis e normas equivalentes produzidas em pandemia têm esbarrado nos tribunais,
é de perguntar o que se passará em tribunal face a incumprimento de recomendações
por parte de cidadãos mais rebeldes. Aí percebo que as forças de segurança
tenham dificuldade em fazer cumprir os normativos. Está o poder na rua…
Como
é que este poder consegue promover os organizadores de eventos a fiscalizadores
em causa própria? Que acontecerá a alguém que não siga as suas determinações? É
lícito remeter para o público assistente ou participante o custo dos testes. O convidado
para um casamento ou para um batizado, além da prenda, tem de pagar o teste?
Recusa-se a ir?
Depois,
critica-se festa do Sporting, comportamento de ingleses no Porto, arraiais festas
com muita gente, festas populares, eventos políticos (mesmo
os rigorosamente organizados),
comícios, procissões, aglomerações em santuários, etc. Se, afinal, tudo não
passa de recomendações…
Não
vale a pena “dourar negro” a pílula “recomendativa” com o advérbio “fortemente”
nem remeter para uma responsabilidade que está normatizada. A não assunção responsável
do poder não pode disfarçar-se com os escaninhos linguísticos.
2021.06.17 – Louro de Carvalho
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