O Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou o estudo “Educação em Tempo de Pandemia: problemas, respostas e desafios das
escolas”
(237 páginas) em que pretende identificar “as principais dificuldades sentidas, as
respostas dadas e os desafios enfrentados pelas escolas portuguesas durante a
primeira fase de confinamento, iniciada em março de 2020.
Fê-lo com base
em inquérito por questionário, aplicado em julho de 2020, a diretores e professores
com funções de coordenação para recolha de informação que permitisse antever se
a experiência vivida poderia ser impulsionadora de mudanças que transformassem
a escola.
Considerando que
as decisões tomadas em contexto da pandemia de covid-19 “poderão ter consequências a longo prazo para os
futuros da Educação”, o CNE debruçou-se sobre como deve ser a escola depois da
pandemia – reflexão que dever continuar a ser tida em conta.
Sabe que a pandemia evidenciou desigualdades e
vulnerabilidades, mas também revelou arte e engenho, dedicação e esforço da
comunidade educativa a vários níveis. E, vivendo-se um momento em que “são
necessários pragmatismo e ações rápidas”, mas em que “não se pode prescindir da
reflexão partilhada”, observa que “é necessário atuar no imediato, programar a
médio prazo, pensar a longo prazo”. Como ponto de partida, sugere basicamente
a reavaliação dos documentos curriculares, a audição dos alunos e a atenção às
famílias.
Anotando que o ensino à distância destapou
desigualdades e dificuldades no uso da tecnologia e utilização de ferramentas
digitais com que docentes e alunos não estavam familiarizados, vinca:
“Com a pandemia, as desigualdades dispararam: por falta de equipamentos
que permitiam acompanhar as aulas por via remota, por falta de condições no
acesso às redes móveis, por falta de apoios adequados a alunos, por
desigualdades profundas entre as famílias, em diversos domínios, incluindo,
também o da literacia digital”.
O CNE, a partir da análise de documentos e estudos
internacionais e nacionais, da audição de vários especialistas, da consulta de
comissões especializadas, partilha estratégias e medidas para reduzir, na
escola, os impactos socioeducativos da pandemia e potenciar o desenvolvimento e
o progresso nas aprendizagens, pois “as
crianças e os jovens foram atingidos no que de mais importante há para o seu
desenvolvimento, nomeadamente nas suas oportunidades de interação face a face
para a descoberta do conhecimento e com fins de socialização”.
Sendo necessário encontrar respostas e reforçar
recursos para superar dificuldades e problemas indisfarçáveis que já existiam e
que a pandemia agravou, o órgão independente, com funções consultivas, que
funciona junto do Ministério da Educação, recomenda particular atenção aos jovens professores que completaram a formação
inicial no Ensino Superior durante a crise pandémica e que, por via do
confinamento, não fizeram formação prática em contexto escolar. Nesse sentido,
defende um período devidamente supervisionado de práticas letivas e escolares,
recomendação que se aplica a todos os outros profissionais que podem vir a
exercer funções nas escolas e que, por terem concluído a formação inicial
durante os meses da pandemia, “não puderam desenvolver competências de
aplicação direta dos conhecimentos e de comunicação através do contacto
presencial com crianças e jovens em contextos escolares”.
O CNE recomenda ao Ministério da Educação (ME), ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior (MCTES) e a outras entidades governativas com influência nestas
decisões que os documentos curriculares em vigor sejam reavaliados e, se for
caso, reformulados para “disponibilizar um referente curricular coerente,
focado e flexível”. Também sugere que se estude a reorganização do Ensino
Secundário de forma a manter o 10.º ano “mais livre e transversal aos
diferentes percursos de conclusão do ensino obrigatório, relegando para os 11.º
e 12.º anos a escolha das vias de conclusão e acesso ao Ensino Superior”.
Na preparação do ano letivo, a principal preocupação,
por parte da escola, deve ser ouvir as crianças e jovens e identificar as
condições psicoafetivas e de aprendizagem para atuar em duas frentes, isto é,
nas aprendizagens essenciais e estruturantes e no bem-estar emocional. Por
outro lado, era preciso dar especial atenção aos alunos que frequentaram o 3.º
ano no ano letivo de 2021/2022, sobretudo quanto às aprendizagens relacionadas
com literacia da leitura, escrita e oralidade, bem como aos que estiveram
afastados da escola na sua versão digital, e aos que sofreram maior abandono ou
dificuldades por diversos motivos. Na gestão do currículo, o CNE recomenda
a revisão das planificações em ordem à sua reelaboração numa perspetiva de
ciclo de escolaridade e o uso da flexibilidade curricular para reforçar
conhecimentos, capacidades e atitudes identificados como menos apreendidos e
consolidados em anos letivos anteriores. Mais sustenta que é fundamental dar
voz aos alunos, procurar envolvê-los, desde o 1.º Ciclo, no planeamento do ano
letivo, e negociar com as crianças e jovens os objetivos a atingir, numa lógica
de gestão participada e de fomento da cidadania.
Por outro lado, o CNE lembra que não podem ser
esquecidas as desigualdades a que jovens de alguns municípios e regiões estão
sujeitos, dado o reduzido leque de ofertas de vias de finalização do Ensino
Secundário, pelo que é necessário reforçar as equipas multidisciplinares com a
contratação de técnicos especializados e de assistentes operacionais.
Considera importante a valorização da
transdisciplinaridade na abordagem de conteúdos menos consolidados ou de
matérias novas, segundo as necessidades específicas identificadas em cada
escola, envolvendo trabalho docente colaborativo e cooperativo, tal como
relativizar o impacto do número de dias “perdidos” e valorizar, acima de tudo,
a tranquilidade, a calma e o equilíbrio no regresso à escola, mantendo tanto
quanto possível o tempo das interrupções letivas.
É também importante potenciar as competências digitais
adquiridas por professores e alunos e é essencial consolidar a formação no uso
educativo de ferramentas tecnológicas, bem como prever, no horário escolar dos
docentes, tempo para trabalho colaborativo, flexibilidade para desempenhar
diversas tarefas e créditos para formação. Para tanto, requer-se uma ligação de
rede de internet robusta, rápida e eficaz e com equipamentos tecnológicos
adequados em todas as escolas, bem como a valorização da capacidade de trabalho
colaborativo dentro da própria escola em todos os níveis de responsabilidades e
funções.
O CNE salienta ainda o reforço das equipas
multidisciplinares, que trabalham de forma permanente com um delimitado grupo
de escolas ou agrupamentos, com diversos profissionais especializados, de forma
a desenvolver um plano de promoção da saúde mental e física, do bem-estar
sociofamiliar e de fomento do sucesso educativo e social de crianças e jovens.
Para isso, é necessária a promoção de competências de gestão emocional e de
autorregulação em diferentes idades, bem como de hábitos saudáveis e métodos de
organização e estudo.
A escola não pode esquecer a família, devendo
intensificar e consolidar o contacto regular, fomentar reuniões, com vista a um
acompanhamento mais sistemático do desempenho dos alunos. A família deve estar
envolvida no plano de atividades e no projeto educativo. A escola deve
trabalhar em articulação com entidades da comunidade; e as autarquias devem
fomentar atividades lúdicas e pedagógicas nas férias escolares, alicerçadas na
cultura do seu território.
***
Porém, para não parecer que se fala de cor, dê-se voz
ao documento em referência.
“Em síntese, as respostas de professores e diretores deixam entrever um
desejo ou uma promessa de mudança a diferentes níveis:
- “Ao nível da ‘tutela’, reapreciação dos programas
tendo em conta as Aprendizagens Essenciais; diminuição do número de alunos por
turma; e revisão da avaliação externa e do acesso ao ensino superior.
- “Ao nível da ‘organização escolar’, organização dos
grupos/turmas segundo critérios diversificados; reforço do equipamento digital
para escolas, professores e alunos; recursos humanos para apoiar a manutenção e
a utilização dos recursos digitais; trabalho colaborativo entre professores ao
nível da planificação e conceção de materiais; atribuição de tempo no horário
dos professores para trabalho colaborativo para organização de estratégias e
preparação de materiais; formação de professores direcionada para o uso do
digital e para as novas modalidades de organização pedagógica; acesso a
recursos digitais abertos; realização de reuniões online; e mais autonomia das
escolas, nomeadamente para organização do tempo escolar.
- “Ao nível das ‘práticas educativas’, promoção da
participação, do trabalho autónomo e da responsabilidade dos alunos; reflexão
sobre metodologias de ensino e aprendizagem; uso do digital como ferramenta
pedagógica; e alteração das metodologias de avaliação com enfoque na avaliação
formativa.
***
“Algumas das respostas apontam para aspetos que podem condicionar as
mudanças que se perspetivam. A maioria dos diretores afirmou que as escolas
dispõem de plataformas eficazes de apoio às aprendizagens (oportunidade), mas
não dispõem de dispositivos digitais com ligação à Internet, nem de largura de
banda e velocidade suficientes (problema). Por outro lado, apenas metade dos
diretores entendeu que os professores têm competência técnica e pedagógica para
integrar recursos educativos digitais nas suas aulas (desafio).
“Os aspetos que as famílias passaram a valorizar na escola podem
indiciar um apoio às mudanças que favoreçam a organização e melhorem as
aprendizagens, bem como a autonomia e o sentido de responsabilidade dos alunos.”
(vd pgs 180-181).
Tudo
isto vem, aliás na linha das recomendações da OCDE, de que o CNE destaca como “ações
que deveriam ser rapidamente implementadas:
-
“Manter o relacionamento com
empregadores e sindicatos a nível local e nacional (…);
-
“Começar a planear hoje as mudanças no
mercado de trabalho que possam ser aceleradas devido à crise, incluindo a
digitalização, e, em particular, das ocupações que envolvam tarefas rotineiras
e que estejam a ser transformadas, reestruturadas ou a desaparecer devido aos
níveis crescentes de automação (…), [sendo que] os sistemas de educação e
formação profissional precisam de se concentrar mais nas que exigem níveis mais
altos de autonomia, planeamento, trabalho em equipa e competências de
comunicação e atendimento mais capazes de resistir à automação;
-
“Prestar apoio financeiro aos sistemas
de educação e formação e aos alunos para realizar formações em setores e
ocupações de futuro;
-
“Promover a procura de ofertas digitais
a distância, explorando opções inovadoras de abordagens pedagógicas digitais;
-
“Verificar se os programas de educação e
formação profissional oferecem oportunidades para o desenvolvimento de
competências fundamentais, tais como as digitais, transversais e socioemocionais;
-
“Concentrar esforços para manter e
formar professores e formadores altamente qualificados.”.
Também
a UNICEF chamou a atenção para a possibilidade de aumento da violência contra
crianças, nomeadamente violência física, sexual, emocional, económica, abuso e
negligência, em tempo de confinamento e maior pressão económica sobre as famílias.
Impactos que poderão continuar a ser sentidos muito tempo após a pandemia ser
resolvida. E, convicta de que a pandemia iria aprofundar as desigualdades e
vulnerabilidades já existentes, a iniciativa Safe to Learn formulou um conjunto
de recomendações, porque serão os sistemas educativos a servir de base para a
recuperação e reparação dos danos causados pela pandemia na sociedade (UNICEF,
2020). Das
recomendações emitidas, salientam-se as seguintes:
-
“Os governos devem organizar uma
resposta intersetorial abrangente para prevenir e responder à violência nos
ambientes de ensino à distância e por meio dele.
-
“A proteção infantil e os assistentes
sociais devem ser preparados e apoiados para continuarem a fornecer serviços essenciais
a crianças, remota ou pessoalmente, onde for possível fazê-lo com segurança.
-
“[Há que] priorizar as soluções não
tecnológicas e de baixa tecnologia para alcançar o maior número possível de
alunos, independentemente do local onde se encontram.
-
“A implementação dos currículos
escolares, inclusivamente durante o ensino remoto, deve incluir medidas de
prevenção de maus-tratos, de apoio psicossocial e atividades de aprendizagem
social e emocional, incorporar resiliência na resposta à crise para criar
ambientes de aprendizagem seguros e mitigar os impactos do trauma durante – e
depois – da crise.
-
“Os professores, que estão na linha de
frente para identificar crianças que sofreram maus-tratos, devem ser
incentivados a manter contacto adequado com as crianças e jovens, através de
mensagens ou contactos por telefone, e fornecer ou manter serviços de
aconselhamento escolar, [devendo] os
códigos de conduta ser claros e ser implementados ou adaptados para orientar
essas interações.
-
“[Há que] manter e aprofundar o
relacionamento entre as escolas e os pais e cuidadores.” (Cf pgs 31-32).
***
Entretanto,
a 9 de junho, o CNE atualizou as recomendações acima referenciadas e reclamou: reavaliação
e, se necessário, a reformulação dos documentos curriculares; gestão mais
autónoma dos recursos nas escolas e a contratação de professores especialistas
das correspondentes áreas; estudo da reorganização do ensino secundário para
manter o 10.º ano mais livre e transversal aos diferentes percursos de
conclusão do ensino obrigatório, relegando para os 11.º e 12.º anos a escolha
das vias de conclusão e acesso ao ensino superior, havendo, nestes anos, flexibilidade
e permeabilidade entre os diversos desenhos curriculares e recurso à modalidade
de ensino híbrido (presencial e remoto); valorização social e educativa
dos Cursos Profissionais e atualização das ofertas formativas, com a
consequente adequação de espaços e equipamentos, contratação de professores e
técnicos, e com articulação com o ensino superior; melhoria das condições para
o desenvolvimento dos Cursos Artísticos Especializados, incluindo a qualidade
dos espaços e equipamentos, a contratação dos professores especializados e a
articulação com o ensino superior; atenção às desigualdades a que jovens de
alguns municípios e regiões estão sujeitos; revisão do acesso ao Ensino
Superior, no quadro definido na LBSE, para que a conclusão do Ensino Secundário
não esteja condicionada por este acesso, nem as provas que para ele se realizem
induzam práticas letivas e de aprendizagem baseadas, quase exclusivamente, no
treino e na memorização; reativação de programas e planos de intervenção, nas
escolas e territórios, que já demonstraram dar bons resultados (Programa
Nacional do Ensino do Português, Programa de Formação em Ensino Experimental
das Ciências, Plano de Ação para a Matemática, entre outros) e se consolidem ou criem outros
planos de intervenção nacional ou local (vg: Plano Nacional de
Leitura, Plano Nacional das Artes, Desporto Escolar); reconhecimento do voluntariado
juvenil, nas suas diferentes expressões e potencialidades; continuação duma
ampla aferição do sistema educativo e das escolas como meio de avaliação
continuada e sistematizada do processo educativo e do sucesso dos alunos;
trabalho de recuperação da vertente preponderantemente pedagógica da avaliação
em detrimento da função classificativa; reforço das equipas multidisciplinares
nas escolas com a contratação de técnicos especializados e de assistentes
operacionais e a necessária formação contínua; regulamentação da lei dos
Conselhos Municipais de Educação, avaliando as competências vinculativas e
definindo com clareza as competências essenciais correspondentes à autonomia
das escolas; e desenho de políticas educativas estritamente articuladas com
políticas sociais.
***
Como
se vê, o sistema educativo e a escola requerem muitas e grandes mudanças,
centradas no desenvolvimento pessoal e social dos alunos e não na satisfação de
interesses instalados. Há que pôr as mãos na massa oportuna e inoportunamente. O
futuro o exige.
2021.06.26 – Louro de Carvalho
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