sábado, 26 de junho de 2021

CNE avança com recomendações para a escola depois da pandemia

 

O Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou o estudo “Educação em Tempo de Pandemia: problemas, respostas e desafios das escolas (237 páginas) em que pretende identificar “as principais dificuldades sentidas, as respostas dadas e os desafios enfrentados pelas escolas portuguesas durante a primeira fase de confinamento, iniciada em março de 2020.

Fê-lo com base em inquérito por questionário, aplicado em julho de 2020, a diretores e professores com funções de coordenação para recolha de informação que permitisse antever se a experiência vivida poderia ser impulsionadora de mudanças que transformassem a escola.

Considerando que as decisões tomadas em contexto da pandemia de covid-19 “poderão ter consequências a longo prazo para os futuros da Educação”, o CNE debruçou-se sobre como deve ser a escola depois da pandemia – reflexão que dever continuar a ser tida em conta.

Sabe que a pandemia evidenciou desigualdades e vulnerabilidades, mas também revelou arte e engenho, dedicação e esforço da comunidade educativa a vários níveis. E, vivendo-se um momento em que “são necessários pragmatismo e ações rápidas”, mas em que “não se pode prescindir da reflexão partilhada”, observa que “é necessário atuar no imediato, programar a médio prazo, pensar a longo prazo”. Como ponto de partida, sugere basicamente a reavaliação dos documentos curriculares, a audição dos alunos e a atenção às famílias.

Anotando que o ensino à distância destapou desigualdades e dificuldades no uso da tecnologia e utilização de ferramentas digitais com que docentes e alunos não estavam familiarizados, vinca:

Com a pandemia, as desigualdades dispararam: por falta de equipamentos que permitiam acompanhar as aulas por via remota, por falta de condições no acesso às redes móveis, por falta de apoios adequados a alunos, por desigualdades profundas entre as famílias, em diversos domínios, incluindo, também o da literacia digital”. 

O CNE, a partir da análise de documentos e estudos internacionais e nacionais, da audição de vários especialistas, da consulta de comissões especializadas, partilha estratégias e medidas para reduzir, na escola, os impactos socioeducativos da pandemia e potenciar o desenvolvimento e o progresso nas aprendizagens, pois “as crianças e os jovens foram atingidos no que de mais importante há para o seu desenvolvimento, nomeadamente nas suas oportunidades de interação face a face para a descoberta do conhecimento e com fins de socialização”. 

Sendo necessário encontrar respostas e reforçar recursos para superar dificuldades e problemas indisfarçáveis que já existiam e que a pandemia agravou, o órgão independente, com funções consultivas, que funciona junto do Ministério da Educação, recomenda particular atenção aos jovens professores que completaram a formação inicial no Ensino Superior durante a crise pandémica e que, por via do confinamento, não fizeram formação prática em contexto escolar. Nesse sentido, defende um período devidamente supervisionado de práticas letivas e escolares, recomendação que se aplica a todos os outros profissionais que podem vir a exercer funções nas escolas e que, por terem concluído a formação inicial durante os meses da pandemia, “não puderam desenvolver competências de aplicação direta dos conhecimentos e de comunicação através do contacto presencial com crianças e jovens em contextos escolares”.   

O CNE recomenda ao Ministério da Educação (ME), ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) e a outras entidades governativas com influência nestas decisões que os documentos curriculares em vigor sejam reavaliados e, se for caso, reformulados para “disponibilizar um referente curricular coerente, focado e flexível”. Também sugere que se estude a reorganização do Ensino Secundário de forma a manter o 10.º ano “mais livre e transversal aos diferentes percursos de conclusão do ensino obrigatório, relegando para os 11.º e 12.º anos a escolha das vias de conclusão e acesso ao Ensino Superior”. 

Na preparação do ano letivo, a principal preocupação, por parte da escola, deve ser ouvir as crianças e jovens e identificar as condições psicoafetivas e de aprendizagem para atuar em duas frentes, isto é, nas aprendizagens essenciais e estruturantes e no bem-estar emocional. Por outro lado, era preciso dar especial atenção aos alunos que frequentaram o 3.º ano no ano letivo de 2021/2022, sobretudo quanto às aprendizagens relacionadas com literacia da leitura, escrita e oralidade, bem como aos que estiveram afastados da escola na sua versão digital, e aos que sofreram maior abandono ou dificuldades por diversos motivos. Na gestão do currículo, o CNE recomenda a revisão das planificações em ordem à sua reelaboração numa perspetiva de ciclo de escolaridade e o uso da flexibilidade curricular para reforçar conhecimentos, capacidades e atitudes identificados como menos apreendidos e consolidados em anos letivos anteriores. Mais sustenta que é fundamental dar voz aos alunos, procurar envolvê-los, desde o 1.º Ciclo, no planeamento do ano letivo, e negociar com as crianças e jovens os objetivos a atingir, numa lógica de gestão participada e de fomento da cidadania. 

Por outro lado, o CNE lembra que não podem ser esquecidas as desigualdades a que jovens de alguns municípios e regiões estão sujeitos, dado o reduzido leque de ofertas de vias de finalização do Ensino Secundário, pelo que é necessário reforçar as equipas multidisciplinares com a contratação de técnicos especializados e de assistentes operacionais. 

Considera importante a valorização da transdisciplinaridade na abordagem de conteúdos menos consolidados ou de matérias novas, segundo as necessidades específicas identificadas em cada escola, envolvendo trabalho docente colaborativo e cooperativo, tal como relativizar o impacto do número de dias “perdidos” e valorizar, acima de tudo, a tranquilidade, a calma e o equilíbrio no regresso à escola, mantendo tanto quanto possível o tempo das interrupções letivas. 

É também importante potenciar as competências digitais adquiridas por professores e alunos e é essencial consolidar a formação no uso educativo de ferramentas tecnológicas, bem como prever, no horário escolar dos docentes, tempo para trabalho colaborativo, flexibilidade para desempenhar diversas tarefas e créditos para formação. Para tanto, requer-se uma ligação de rede de internet robusta, rápida e eficaz e com equipamentos tecnológicos adequados em todas as escolas, bem como a valorização da capacidade de trabalho colaborativo dentro da própria escola em todos os níveis de responsabilidades e funções. 

O CNE salienta ainda o reforço das equipas multidisciplinares, que trabalham de forma permanente com um delimitado grupo de escolas ou agrupamentos, com diversos profissionais especializados, de forma a desenvolver um plano de promoção da saúde mental e física, do bem-estar sociofamiliar e de fomento do sucesso educativo e social de crianças e jovens. Para isso, é necessária a promoção de competências de gestão emocional e de autorregulação em diferentes idades, bem como de hábitos saudáveis e métodos de organização e estudo. 

A escola não pode esquecer a família, devendo intensificar e consolidar o contacto regular, fomentar reuniões, com vista a um acompanhamento mais sistemático do desempenho dos alunos. A família deve estar envolvida no plano de atividades e no projeto educativo. A escola deve trabalhar em articulação com entidades da comunidade; e as autarquias devem fomentar atividades lúdicas e pedagógicas nas férias escolares, alicerçadas na cultura do seu território. 

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Porém, para não parecer que se fala de cor, dê-se voz ao documento em referência.

Em síntese, as respostas de professores e diretores deixam entrever um desejo ou uma promessa de mudança a diferentes níveis:

- “Ao nível da tutela’, reapreciação dos programas tendo em conta as Aprendizagens Essenciais; diminuição do número de alunos por turma; e revisão da avaliação externa e do acesso ao ensino superior.

- Ao nível da organização escolar’, organização dos grupos/turmas segundo critérios diversificados; reforço do equipamento digital para escolas, professores e alunos; recursos humanos para apoiar a manutenção e a utilização dos recursos digitais; trabalho colaborativo entre professores ao nível da planificação e conceção de materiais; atribuição de tempo no horário dos professores para trabalho colaborativo para organização de estratégias e preparação de materiais; formação de professores direcionada para o uso do digital e para as novas modalidades de organização pedagógica; acesso a recursos digitais abertos; realização de reuniões online; e mais autonomia das escolas, nomeadamente para organização do tempo escolar.

- Ao nível das práticas educativas’, promoção da participação, do trabalho autónomo e da responsabilidade dos alunos; reflexão sobre metodologias de ensino e aprendizagem; uso do digital como ferramenta pedagógica; e alteração das metodologias de avaliação com enfoque na avaliação formativa.

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Algumas das respostas apontam para aspetos que podem condicionar as mudanças que se perspetivam. A maioria dos diretores afirmou que as escolas dispõem de plataformas eficazes de apoio às aprendizagens (oportunidade), mas não dispõem de dispositivos digitais com ligação à Internet, nem de largura de banda e velocidade suficientes (problema). Por outro lado, apenas metade dos diretores entendeu que os professores têm competência técnica e pedagógica para integrar recursos educativos digitais nas suas aulas (desafio).

Os aspetos que as famílias passaram a valorizar na escola podem indiciar um apoio às mudanças que favoreçam a organização e melhorem as aprendizagens, bem como a autonomia e o sentido de responsabilidade dos alunos.” (vd pgs 180-181).

Tudo isto vem, aliás na linha das recomendações da OCDE, de que o CNE destaca como “ações que deveriam ser rapidamente implementadas:

- “Manter o relacionamento com empregadores e sindicatos a nível local e nacional (…);

- “Começar a planear hoje as mudanças no mercado de trabalho que possam ser aceleradas devido à crise, incluindo a digitalização, e, em particular, das ocupações que envolvam tarefas rotineiras e que estejam a ser transformadas, reestruturadas ou a desaparecer devido aos níveis crescentes de automação (…), [sendo que] os sistemas de educação e formação profissional precisam de se concentrar mais nas que exigem níveis mais altos de autonomia, planeamento, trabalho em equipa e competências de comunicação e atendimento mais capazes de resistir à automação;

- “Prestar apoio financeiro aos sistemas de educação e formação e aos alunos para realizar formações em setores e ocupações de futuro;

- “Promover a procura de ofertas digitais a distância, explorando opções inovadoras de abordagens pedagógicas digitais;

- “Verificar se os programas de educação e formação profissional oferecem oportunidades para o desenvolvimento de competências fundamentais, tais como as digitais, transversais e socioemocionais;

- “Concentrar esforços para manter e formar professores e formadores altamente qualificados.”.  

Também a UNICEF chamou a atenção para a possibilidade de aumento da violência contra crianças, nomeadamente violência física, sexual, emocional, económica, abuso e negligência, em tempo de confinamento e maior pressão económica sobre as famílias. Impactos que poderão continuar a ser sentidos muito tempo após a pandemia ser resolvida. E, convicta de que a pandemia iria aprofundar as desigualdades e vulnerabilidades já existentes, a iniciativa Safe to Learn formulou um conjunto de recomendações, porque serão os sistemas educativos a servir de base para a recuperação e reparação dos danos causados pela pandemia na sociedade (UNICEF, 2020). Das recomendações emitidas, salientam-se as seguintes: 

- “Os governos devem organizar uma resposta intersetorial abrangente para prevenir e responder à violência nos ambientes de ensino à distância e por meio dele.

- “A proteção infantil e os assistentes sociais devem ser preparados e apoiados para continuarem a fornecer serviços essenciais a crianças, remota ou pessoalmente, onde for possível fazê-lo com segurança.

- “[Há que] priorizar as soluções não tecnológicas e de baixa tecnologia para alcançar o maior número possível de alunos, independentemente do local onde se encontram.

- “A implementação dos currículos escolares, inclusivamente durante o ensino remoto, deve incluir medidas de prevenção de maus-tratos, de apoio psicossocial e atividades de aprendizagem social e emocional, incorporar resiliência na resposta à crise para criar ambientes de aprendizagem seguros e mitigar os impactos do trauma durante – e depois – da crise.

- “Os professores, que estão na linha de frente para identificar crianças que sofreram maus-tratos, devem ser incentivados a manter contacto adequado com as crianças e jovens, através de mensagens ou contactos por telefone, e fornecer ou manter serviços de aconselhamento escolar, [devendo] os códigos de conduta ser claros e ser implementados ou adaptados para orientar essas interações.  

- “[Há que] manter e aprofundar o relacionamento entre as escolas e os pais e cuidadores.” (Cf pgs 31-32).

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Entretanto, a 9 de junho, o CNE atualizou as recomendações acima referenciadas e reclamou: reavaliação e, se necessário, a reformulação dos documentos curriculares; gestão mais autónoma dos recursos nas escolas e a contratação de professores especialistas das correspondentes áreas; estudo da reorganização do ensino secundário para manter o 10.º ano mais livre e transversal aos diferentes percursos de conclusão do ensino obrigatório, relegando para os 11.º e 12.º anos a escolha das vias de conclusão e acesso ao ensino superior, havendo, nestes anos, flexibilidade e permeabilidade entre os diversos desenhos curriculares e recurso à modalidade de ensino híbrido (presencial e remoto); valorização social e educativa dos Cursos Profissionais e atualização das ofertas formativas, com a consequente adequação de espaços e equipamentos, contratação de professores e técnicos, e com articulação com o ensino superior; melhoria das condições para o desenvolvimento dos Cursos Artísticos Especializados, incluindo a qualidade dos espaços e equipamentos, a contratação dos professores especializados e a articulação com o ensino superior; atenção às desigualdades a que jovens de alguns municípios e regiões estão sujeitos; revisão do acesso ao Ensino Superior, no quadro definido na LBSE, para que a conclusão do Ensino Secundário não esteja condicionada por este acesso, nem as provas que para ele se realizem induzam práticas letivas e de aprendizagem baseadas, quase exclusivamente, no treino e na memorização; reativação de programas e planos de intervenção, nas escolas e territórios, que já demonstraram dar bons resultados (Programa Nacional do Ensino do Português, Programa de Formação em Ensino Experimental das Ciências, Plano de Ação para a Matemática, entre outros) e se consolidem ou criem outros planos de intervenção nacional ou local (vg: Plano Nacional de Leitura, Plano Nacional das Artes, Desporto Escolar); reconhecimento do voluntariado juvenil, nas suas diferentes expressões e potencialidades; continuação duma ampla aferição do sistema educativo e das escolas como meio de avaliação continuada e sistematizada do processo educativo e do sucesso dos alunos; trabalho de recuperação da vertente preponderantemente pedagógica da avaliação em detrimento da função classificativa; reforço das equipas multidisciplinares nas escolas com a contratação de técnicos especializados e de assistentes operacionais e a necessária formação contínua; regulamentação da lei dos Conselhos Municipais de Educação, avaliando as competências vinculativas e definindo com clareza as competências essenciais correspondentes à autonomia das escolas; e desenho de políticas educativas estritamente articuladas com políticas sociais.

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Como se vê, o sistema educativo e a escola requerem muitas e grandes mudanças, centradas no desenvolvimento pessoal e social dos alunos e não na satisfação de interesses instalados. Há que pôr as mãos na massa oportuna e inoportunamente. O futuro o exige.   

2021.06.26 – Louro de Carvalho

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