domingo, 20 de junho de 2021

Que os diáconos testemunhem uma “Igreja constitutivamente diaconal”

 

O Santo Padre Francisco recebeu em audiência, neste dia 19 de junho, os diáconos permanentes da Diocese de Roma, com as respetivas famílias. Na alocução que lhes dirigiu, sobressaem vários aspetos cujo subtexto são importantes passagens do livro dos Atos dos Apóstolos e dos documentos do Concílio Vaticano II, mormente a Constituição dogmática sobre a Igreja, a Lumen gentium (LG), o que leva a dar ao discurso papal a devida atenção.

Desde logo, o diácono não é um padre de segunda categoria, nem de primeira. Aliás, a questão em Igreja assenta não na categorização dos dons, ministérios e serviços, mas na diversidade dentro da unidade (vd 1Cor 12,5-11). Por isso, os Padres conciliares escreveram:

Cristo Nosso Senhor, para apascentar e aumentar continuamente o Povo de Deus, instituiu na Igreja diversos ministérios, para bem de todo o corpo. Com efeito, os ministros que têm o poder sagrado servem os seus irmãos para que todos os que pertencem ao Povo de Deus, e por isso possuem a verdadeira dignidade cristã, alcancem a salvação, conspirando livre e ordenadamente para o mesmo fim.” (LG 18).

O mesmo documento esclarece a correlação nos ministérios ordenados:

Por meio dos Seus Apóstolos, Cristo, a quem o Pai santificou e enviou ao mundo (Jo 10,36), tornou os Bispos, que são sucessores daqueles, participantes da Sua consagração e missão: e estes transmitiram legitimamente o múnus do seu ministério em grau diverso e a diversos sujeitos. Assim, o ministério eclesiástico, instituído por Deus, é exercido em ordens diversas por aqueles que desde a antiguidade são chamados bispos, presbíteros e diáconos. (LG 19).

Portanto, os diáconos integram a hierarquia eclesial. E, prosseguindo, lê-se:

Os presbíteros, embora não possuam o fastígio do pontificado e dependam dos Bispos no exercício do próprio poder, estão-lhes, porém, unidos na honra do sacerdócio e, por virtude do sacramento da Ordem, são consagrados, à imagem de Cristo, sumo e eterno sacerdote, para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e celebrar o culto divino, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento. Participantes, segundo o grau do seu ministério, da função de Cristo mediador único, anunciam a todos a palavra de Deus. Mas é no culto ou celebração eucarística que exercem principalmente o seu múnus sagrado; nela, atuando em nome de Cristo e proclamando o Seu mistério, unem as preces dos fiéis ao sacrifício da cabeça e, no sacrifício da missa, representam e aplicam, até à vinda do Senhor, o único sacrifício do Novo Testamento, ou seja, Cristo oferecendo-se, uma vez por todas, ao Pai, como hóstia imaculada. Exercem ainda, por título eminente, o ministério da reconciliação e o do conforto para com os fiéis arrependidos ou enfermos, e apresentam a Deus Pai as necessidades e preces dos crentes.” (id et ib).

Esta larga referência ao ministério presbiteral vem a seguir aos grandes segmentos discursais sobre o ministério episcopal, exercido pelos sucessores dos apóstolos, sendo que os presbíteros são em maior número, cooperam com os bispos e chegam a toda parte garantindo a presença docente, santificadora e odegética do Bispo. E sobre os diáconos é referido:

Em grau inferior da hierarquia estão os diáconos, aos quais foram impostas as mãos não em ordem ao sacerdócio, mas ao ministério’. Pois que, fortalecidos com a graça sacramental, servem o Povo de Deus em união com o Bispo e o seu presbitério, no ministério da Liturgia, da palavra e da caridade. É próprio do diácono, segundo for cometido pela competente autoridade, administrar solenemente o Batismo, guardar e distribuir a Eucaristia, assistir e abençoar o Matrimónio em nome da Igreja, levar o viático aos moribundos, ler aos fiéis a Sagrada Escritura, instruir e exortar o povo, presidir ao culto e à oração dos fiéis, administrar os sacramentais, dirigir os ritos do funeral e da sepultura. Consagrados aos ofícios da caridade e da administração, lembrem-se os diáconos da recomendação de São Policarpo: ‘misericordiosos, diligentes, caminhando na verdade do Senhor, que se fez servo de todos’.” (LG, 29). 

É de advertir que o sobredito grau inferior não quer dizer menos relevante – é apenas uma questão de posicionamento, pois, tal como no templo não se discute posição de cada uma das pedras angulares, mas reconhece-se a relevância de todas, também os ministérios ordenados, que são diferentes, são relevantes na Igreja.  

Não podemos esquecer que a concretização da instituição dos diáconos resultou da verificação duma necessidade logística da Igreja dos primeiros tempos como se pode ler no livro dos Atos:

Naqueles dias, como crescesse o número dos discípulos, houve queixas dos gregos contra os hebreus, porque as suas viúvas teriam sido negligenciadas na distribuição diária. Por isso, os Doze convocaram uma reunião dos discípulos e disseram: ‘Não é razoável que abandonemos a Palavra de Deus, para administrar. Portanto, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação (episképsasthe dé, adelphoí, ándras ex hymôn martyroumémous heptà), cheios do Espírito Santo e de sabedoria (plêreis pneúmatos kaì sophías), aos quais encarregaremos deste ofício (khreías taútês). Nós atenderemos sem cessar à oração (i proseukhêi) e ao ministério da palavra’ (i diakoníai toû lógou). O parecer agradou a toda a assembleia. Escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo; Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos aos apóstolos, e estes, orando, impuseram-lhes as mãos. Divulgava-se sempre mais a Palavra de Deus. Multiplicava-se consideravelmente o número de discípulos em Jerusalém. Também grande número de sacerdotes aderia à fé.” (At 6,1-7).

Estando deficiente e problemático o serviço das mesas, não era razoável que os apóstolos abandonassem ou enfraquecessem a oração e o serviço da Palavra. Por isso, impuseram as mãos sobre os sete homens de boa reputação indicados pela comunidade para servirem (diakoneîn) às mesas. São os diáconos (diákonoi), os servos ou criados, mas que não deixam de ser pessoas, homens, ao invés dos escravos (doúloi), que não eram reconhecidos como tais. São especiais testemunhas da Igreja como “diaconía”, não propiamente da escravidão (doulía), pois não se trata de escravos (doúloi) nem de escravas (doúlai). Porém, rapidamente, como nos dá conta o livro dos Atos, um diácono, Estêvão, passou a ser também agente de prodígios e grandes sinais (At 6,8) e agente da “diakonía” da palavra, (At 7,1-53.56.59-60), a que se seguiram outros na história da Igreja. E foi um diácono, Estêvão, o primeiro mártir na Igreja, que se comportou no martírio muito à semelhança de Cristo (cf At 7,54-60). E cedo a Igreja primeva viu a necessidade de recrutar diaconisas (Rm 16,1), sobretudo para a ministração do Batismo às mulheres.   

Enfim, diáconos, presbíteros e bispos são consagrados para o serviço em Igreja cujo poder ou é serviço e proximidade ou é abuso e tirania em nome de Deus.

Ora, sucedendo que até ao Concílio Vaticano II, o diaconado não passava de grau de Ordem como trampolim para o presbiterado, os Padres conciliares estabeleceram a restauração do diaconado “como grau próprio e permanente da Hierarquia”, segundo a oportunidade “para a cura das almas”, podendo “ser conferido a homens de idade madura, mesmo casados, e a jovens idóneos”, mas, em relação a estes últimos, permanece em vigor a lei do celibato” (cf LG 29).

***

Assim, no seu discurso, o Papa, depois de agradecer as palavras e os testemunhos dos diáconos permanentes de Roma, saudou o facto de um ter sido nomeado Diretor da Caritas e o de a Diocese de Roma ter retomado o antigo costume de confiar uma igreja a um diácono, esperando que este “não termine como San Lourenço” (mártir). Na verdade, a diocese de Roma estava rodeada de dioceses suburbicárias regidas, cada uma por um bispo; e servida de paróquias entregues, cada uma a um presbítero, e de diaconias, cada uma entregue a um diácono. Quando se criou o sacro colégio dos cardeais, a composição assentou nestes três tipos de líderes. Eram os cardeais-bispos, os cardeais-presbíteros e os cardeais-diáconos – nomenclatura que se mantém a nível de títulos, mas em muito maior número e recrutados em toda a Igreja universal.   

Para sustentar o que espera dos diáconos, Francisco refletiu um pouco sobre o ministério do diácono na esteira do Concílio Vaticano II, que entendeu o diaconado como “grau próprio e permanente da hierarquia”. Com efeito, a LG, depois de descrever a função dos sacerdotes como participação no ofício sacerdotal de Cristo, explica o ministério dos diáconos, a quem as mãos não são impostas para o sacerdócio, mas para o serviço(LG 29). Segundo o Papa, essa diferença significa que o diaconado, que estava reduzido, com o tempo, a uma ordem de passagem para o sacerdócio, “recupera assim o seu lugar e a sua especificidade”. Por outro lado, tal diferença “ajuda a superar o flagelo do clericalismo, que põe uma casta de sacerdotes “acima” do Povo de Deus. E o Pontífice, sabendo que a tentação do clericalismo continuará na Igreja, espera que “os diáconos, precisamente porque se dedicam ao serviço deste Povo, recordem que no corpo eclesial ninguém pode elevar-se acima dos demais”. Com efeito, todos somos chamados a rebaixar-nos, porque Jesus Se rebaixou (etapeínôsen heautón), Se fez servo de todos (cf Fl 2,8). Por isso, deve ser aplicada e prevalecer na Igreja a lógica da auto-humilhação. Aliás, foi o Mestre quem desfiou os discípulos no sentido de “quem quiser ser o maior que sirva” (cf Mt 20,27.28). Por conseguinte, o Papa adverte:

E tudo começa aqui, como nos lembra o facto de que o diaconado é a porta de entrada da Ordem. E os diáconos permanecem para sempre. Lembremo-nos, por favor, de que para os discípulos de Jesus sempre amar é servir e servir é reinar. O poder está a serviço, não em qualquer outra coisa. E como vós lembrastes o que eu digo, que os diáconos são os guardiões do serviço na Igreja, pode-se dizer que eles são os guardiões do verdadeiro “poder” na Igreja, para que ninguém vá além do poder do serviço.”.

Isto de os diáconos serem na Igreja os guardiões do poder enquanto serviço, mostra, segundo o Bispo de Roma, que o diaconado, na esteira do Concílio, nos leva ao centro do mistério da Igreja. Por isso, como tem falado duma “Igreja constitutivamente missionária” e duma “Igreja constitutivamente sinodal”, apresenta agora uma “Igreja constitutivamente diaconal. E vinca:

Se esta dimensão do serviço não for vivida de facto, todo ministério se esvazia por dentro, se torna estéril, não dá fruto. E pouco a pouco torna-se mundano. Os diáconos lembram à Igreja que o que Santa Teresina descobriu é verdade: a Igreja tem um coração ardente de amor. Sim, um coração humilde que bate em serviço. Os diáconos lembram-no-lo quando, como o diácono São Francisco, aproximam Deus dos outros sem se imporem, servindo com humildade e alegria.”. 

A seguir, Francisco fala do diácono com uma das suas expressões típicas: a generosidade de um diácono “que se gasta sem buscar as primeiras filas cheira a Evangelho”, pois, “fala da grandeza da humildade de Deus que dá o primeiro passo” (…) “para encontrar até aqueles que não Lhe deram o seu ombro”, que não O acolheram.

Depois, o Santo Padre abordou o problema da diminuição do número de sacerdotes e observou que esta levou a um compromisso prevalente dos diáconos em tarefas substitutivas que, embora importantes, não constituem a especificidade do diaconado, mas apenas tarefas de suplência. 

Efetivamente, como vinca o Papa, o Concílio, após ter falado do serviço ao Povo de Deus na liturgia, na palavra e na caridade, sublinha que os diáconos são antes de tudo “dedicados aos ofícios da caridade e da administração” (LG 29), o que lembra os primeiros séculos, quando os diáconos cuidavam das necessidades dos fiéis em nome e por conta do bispo, especialmente os pobres e os enfermos. E, inspirando-se nas raízes da Igreja de Roma, explicita:

Não estou a pensar apenas em São Lourenço, mas também na opção de dar vida aos diáconos. Na grande metrópole imperial foram organizados sete lugares, distintos das paróquias e distribuídos nos concelhos da cidade, onde os diáconos realizaram um trabalho capilar a favor de toda a comunidade cristã, em particular dos ‘últimos’, porque, como os Os Atos dos Apóstolos dizem que nenhum deles era necessitado (cf At 4,34).”.

Foi por isso que, em Roma, se tentou resgatar a antiga tradição com o diaconado na igreja de Santo Estanislau. E os diáconos de Roma trabalham na Caritas e em outras realidades próximas dos pobres. Contudo, o Papa adverte que não podem perder a bússola e avisa:

Os diáconos não serão ‘meio padres’ ou padres de segunda categoria, nem ‘coroinhas de luxo’, não, vós não podeis andar por esse caminho; sereis servos atenciosos que trabalharão arduamente para que ninguém seja excluído e o amor do Senhor toque de forma concreta a vida das pessoas”.

E sintetiza a espiritualidade diaconal ou espiritualidade do serviço em disponibilidade interna e abertura externa. À luz destes conceitos, o diácono tem de estar “disponível de dentro, com o coração, pronto para dizer sim, dócil, sem deixar que a vida gire em torno da própria agenda”; e, por outro lado, tem de estar “aberto para o exterior, com olhar para todos, sobretudo para os que ficaram de fora, para os que se sentem excluídos”. E, citando um trecho de Dom Orione sobre o acolhimento aos necessitados, disse:

Em nossas casas – falava aos religiosos da sua Congregação – em nossas casas deve ser acolhido todo aquele que tem uma necessidade, qualquer necessidade, qualquer coisa, mesmo quem tem uma dor. E eu gosto disso. Recebei não só os necessitados, mas também os que sofrem. Ajudar essas pessoas é importante. Eu confio-vo-las.”.

E, sobre o que espera dos diáconos de Roma, acrescentou mais três ideias, que não vão no sentido de “coisas a fazer”, mas de “dimensões a cultivar”. 

Em primeiro lugar, é a humildade que deve caraterizar o diácono, pois, se é triste ver um bispo ou um sacerdote a alardear, mais triste será ver um diácono a querer colocar-se no centro do mundo, da liturgia ou da Igreja. Assim, que todo o bem que o diácono faz seja um segredo entre ele e Deus, pois assim é que dará frutos.

Depois, é preciso que o diácono, se é casado, seja bom esposo; se tem filhos, seja bom pai; e, se tem netos, seja bom avô. Com efeito, se o diácono pode ser um grande exemplo na felicidade de estar com os pobres e com os sacerdotes, também o deve ser como esposo, pai e avô, pois, como diz o Papa, “isso dará esperança e consolo aos casais que estão passando por momentos de fadiga e que encontrarão a mão estendida na sua genuína simplicidade”. E, por outro lado, “fazer tudo com alegria, sem reclamar é um testemunho que vale mais do que muitos sermões”. 

Por fim, o Santo Padre quer que os diáconos sejam sentinelas, que saibam identificar os distantes e os pobres, o que não será difícil, e, sobretudo, que “ajudem a comunidade cristã a ver Jesus nos pobres e distantes, quando Ele bate às nossas portas. E o Papa chama a esta “uma dimensão catequética, profética”, do “profeta-catequista sentinela” que “sabe ver além e ajudar os outros a ver além e a ver os pobres, que estão longe”. 

***

Em suma, o Papa pretende que sejam assim os diáconos de Roma, mas também os diáconos da Igreja em todo o mundo. E penso que todos os cristãos que se sentem no empenho por uma Igreja de serviço ou “constitutivamente diaconal” deverão meditar estas condições para as seguirem no quadro do seu estilo de vida, pois não são apenas os diáconos esta Igreja “constitutivamente diaconal”. Eles, sendo membros dela, são, pelo seu papel específico, suas especiais testemunhas, seus especiais obreiros, seus especiais impulsionadores. Nada de padres de segunda ou meio-padres, mas servidores qualificados!

2021.06.19 – Louro de Carvalho

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