sexta-feira, 4 de junho de 2021

O que implica celebrar a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo

 

A razão de ser do título desta página de reflexão resulta de duas observações que Dom Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa, evidenciou na sua homilia da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, vulgarmente designada por Corpo de Deus.

Diz o prelado lisbonense que celebramos o mistério da Divina Eucaristia com muita gratidão e com grande sentido de responsabilidade.

Por outro lado, contou a história do frade, que encontrou umas crianças junto a uma praia e lhes perguntou se se comiam as gaivotas, ao que responderam prontamente que “não”. Tendo-lhes perguntado porque não as comiam, responderam que sabiam a peixe. Então, o frade perguntou-lhes se já tinham feito a primeira comunhão, ao que responderam afirmativamente. E o bom do religioso interpelou-as: “Então vós sabeis a Jesus?”.

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Obviamente a Igreja celebra jubilosamente esta Solenidade, relevando o facto da instituição da Eucaristia, mistério da incomensurável caridade divina, pela qual o Senhor Jesus Se dá em Corpo e sangue como alimento do viandante por este mundo sob as espécies de pão e de vinho. De igual modo, constrói e robustece a comunidade dos crentes tornando-os um só corpo vivificado pelo mesmo Espírito. E o Cardeal Patriarca, com base nas fórmulas de epíclese (vd Anáfora II), frisa a ação do Espírito Santo sobre as oblatas ou dons (“Santificai estes dons, derramando sobre eles o vosso Espírito, de modo que se convertam, para nós, no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”) e nos crentes para que sejam capazes de edificar a Igreja (“Humildemente Vos suplicamos que, participando no Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só corpo”).

Por isso, celebramos com gratidão pelo dom do Espírito que nos faz percecionar o Corpo e Sangue de Cristo como Jesus presente entre nós nas espécies de pão e de vinho, dom gratuito de imensa caridade divina, companheiro e alimento e construtor da Igreja seu corpo extenso e dinâmico. E, de igual modo, celebramos com a responsabilidade de fazer com que a nossa vida saiba a Jesus no sentido do nosso desenvolvimento espiritual tendo em conta a totalidade da nossa pessoa, no sentido da edificação consolidada da Igreja com o nosso contributo e no sentido da solidariedade para com os irmãos e irmãos, com prioridade para os pobres, doentes e demais fragilizados ou mesmo descartados.

Como pano de fundo para esta gratidão e responsabilidade está necessariamente e fé profunda e inabalável na presença de Cristo nas sagradas espécies, fé que é preciso alimentar com a oração contemplante e o exercício do saborear do mistério eucarístico. Na verdade, Se no corpo mortal do Senhor estava escondida, mas presente, a divindade, no mistério do pão e vinho feitos Corpo e Sangue de Cristo, estão escondidas, mas presentes e eficazes a divindade e a humanidade – em prol de cada crente, sobretudo se fragilizado no corpo e/ou na alma ou descartado pela sociedade, e em benefício da comunidade eclesial, que tem a Eucaristia como “centro e cume de toda a vida cristã”, a ponto de, na prática, a identificar com a própria condição cristã, de modo que ser crente é participar na Missa com a comunhão sacramental, se possível, de modo que renunciar a esta participação sem motivo grave significa “não ter fé ou tê-la de forma ténue e adormecida”, como referiu na sua oportuna homilia Dom Manuel Linda, Bispo do Porto.

A este propósito, o antístite portuense sublinhava a “profunda angústia” com que “se assiste à forte desvalorização do apreço pela missa do domingo”, o  que já acontecia “antes da pandemia”, sendo que, “ao deixar-se a missa, deixam-se as outras dimensões religiosas católicas: a fé, o estilo de vida crente e a pertença à comunidade ou Igreja”. Por isso, vincou a necessidade de ajudarmos as pessoas a regressar, uma vez que os cristãos são chamados a receberem a graça dos sacramentos, a alimentarem-se com a palavra de Deus e a fortalecerem continuamente a fé e o exercício da caridade. Com efeito, é a força da Eucaristia que faz com que a Igreja se realize no seu ser, Corpo e de Cristo e Povo de Deus, e na sua missão de saída ao encontro dos que necessitam da Boa Nova porque doentes, pobres, cativos, fragilizados, descartados, atormentados pelos erros ou pelos excessivos cuidados com este mundo. 

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O trecho evangélico que nos é dado saborear na Liturgia da Palavra da Solenidade no Ano B (Mc 14,12-16.22-26) mostra-nos como Jesus diz onde e como preparar a Ceia: nada de improviso, nada à sorte ou desordenado, mas em local apropriado com tudo o que é necessário, sem excessos e superfluidades. Com efeito, a instituição da Eucaristia acontece num ambiente de refeição, banquete de íntimos, que falam, expõem as suas ideias, convicções, sentimentos e expectativas e se alimentam. Assim, podemos e devemos fazer os preparativos, mas só na parte do que depende de nós. Já o Pão e o Vinho, feitos Corpo e Sangue de Cristo, só os podemos receber d’Ele. Essa receção torna-nos cocelebrantes da Eucaristia e, nessa condição, conjugamos o verbo “eukharistéô” no passado, no presente e no futuro, pensando, sentindo, dizendo, querendo e fazendo bem e o bem. E o melhor bem que se pode fazer é, antes de mais, na linha da união com Deus e com os irmãos, fazer o que Jesus fez e manda fazer:

Enquanto eles comiam, tomou um pão (“labôn árton”) e, pronunciando a bênção, partiu-o (“eulogêsas éclasen”) e deu-lho e disse (“kaì édôken autoîs kaì eîpen”): ‘Tomai, este é o meu corpo’ (“lábete, toûtó estin tò sômá mou ”). Tomando, então, um cálice e dando graças (“kaì labôn potêrion eukharistêsas”), deu-lho (“édôken autoîs”) e todos beberam dele (“kaì épion ex autoû pántes”). E disse-lhes (“kaì eîpen autoîs”): ‘Este é o meu sangue da aliança (“toûtó estin tò haîmá mou tês diathêkês”), derramado em favor de muitos’ (“tò enkhynnómenon hyper pollôn”). (Mc 14,22-24). 

Ora, Jesus pegou num pão e no cálice, deu graças, partiu o pão, deu o cálice com vinho e falou. Isto é o que os sacerdotes devem fazer para na celebração termos o Corpo e Sangue de Cristo sob as espécies de pão e de vinho, sendo que em qualquer delas estão o Cristo todo. Se é obrigatório consagrar pão e vinho e metodicamente distinguimos corpo e sangue, é porque eles são o corpo entregue por Jesus ao Pai em sacrifício por nós e sangue derramado por nós; e a celebração é a garantia da presentificação do único sacrifício de Cristo em todos os tempos e lugares. Depois, evoca-se em subtexto a aliança antiga, para dizer que ela cessou, pois a vítima corporal imolada é Cristo – e não um cordeiro, cabrito ou vitelo – e o sangue derramado sobre o altar do sacrifício e sobre o povo, a selar a aliança, é o sangue de Cristo – e não o de outrem. Por isso, Ele disse: ‘Este é o meu sangue da aliança derramado em favor de muitos’. É esta a aliança em absoluto, não há outra. As antigas eram figuras e pedagogas para esta, que em Lucas é designada por “Nova Aliança” (“kainê diathêkê”) e cujo selo é o sangue de Cristo.

E Jesus falou proferindo as palavras hoje utilizadas para a consagração, que incluem a assunção da Eucaristia, além de sacrifício do Calvário, ora incruento, a refeição, pois os comensais comem e bebem, não qualquer comida ou bebida, mas o Corpo e Cangue de Cristo.

Há nisto uma particularidade como referia Dom Manuel Clemente: ao invés do que sucede com os alimentos que tomamos habitualmente, que se desfazem em nós, somos nós que nos transformamos em Cristo e no seu corpo eclesial, pois, como diz Paulo, “para mim viver é Cristo(Fl 1,21) e formamos, no mesmo Espírito, um só corpo (cf Ef 1,4). Por isso, devemos ter o sabor de Cristo na vida pessoal, na relação com os outros e no modo com o encaramos o mundo. Mas a Eucaristia, mais que o passado, é presente e presente perpétuo: tomai, comei, bebei – agora e sempre. E é também futuro, ou seja, antecipação dos últimos tempos. Com efeito, Jesus, falando de Si próprio e do cálice que entregou aos discípulos, disse: “Não mais beberei do fruto da videira, até àquele dia em que o hei de beber, novo, no reino de Deus”.  

Assim, a síntese da Eucaristia está na antífona do Magnificat de Vésperas II da Solenidade:

Ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a sua Paixão, em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória”.    

À luz da Palavra de Cristo, fica mais justa e percetível a leitura das passagens relativas à Aliança firmada ente Deus e o seu Povo mediante Moisés, como se vê no livro do Êxodo.

Se escutarmos a voz do Senhor e guardarmos a sua aliança, seremos para Ele um reino de sacerdotes e uma nação santa” (cf Ex 19,5-6) – é o que propõe o próprio Deus, através de Moisés, ao povo de Israel, que chegou ao sopé do Sinai e ali acampou (Ex 19,1-2). A promessa de Deus de implica uma condição: escutar a voz de Deus e guardar a sua aliança. E Israel, considerando atentamente tal proposta, responde unânime e firmemente: “Tudo o que o Senhor falou, nós o faremos(Ex 19,8). E, mais tarde, reitera reforçando e proclamando por duas vezes: “Faremos todas as Palavras que o Senhor falou(Ex 24,3.7).

O livro do Êxodo patenteia a realização da promessa de Deus, pondo-nos diante dos olhos os jovens (cf Ex 24,3) e os anciãos (cf Ex 24,9-11) a oficiar no culto. É a totalidade do povo de Israel, todo ele sacerdotal e santo. Depois, sela-se a aliança entre Deus e o seu povo. O sangue dos novilhos imolados é recolhido em bacias, sendo metade destinada a aspergir o altar, que simboliza Deus (cf Ex 24,6) e a outra metade a aspergir o povo de Israel (cf Ex 24,8). Assim, Deus e o povo de Israel participam do mesmo sangue, ou seja, integram a mesma família. Vinca-se a fidelidade e a familiaridade que se estabelece entre Deus e o seu povo, entre Deus e nós.

E tudo isto assenta naquele falar  criador de Deus e no falar anuente e compromissor do povo, que diz que “sim” à Palavra de Deus. É um diálogo criador dum sacerdócio comum de todos os e as que juram fidelidade ao Senhor, mas sem dispensar a mediação de Moisés.

Com Jesus e a Aliança que Deus por meio de Jesus – e já não de Moisés – firmou connosco, este povo sacerdotal e esta nação santa não se circunscrevem à estreiteza das fronteiras geográficas ou culturais de Israel, mas estendem-se a todas as nações, geografias e culturas e por todo o sempre, com o impulso do grande e único mediador.

Por isso, a Carta aos Hebreus (cf Heb 9,11-15) nos apresenta Jesus Cristo como o sumo sacerdote dos bens futuros, pois não derramou o sangue de animais, mas o seu próprio Sangue, pelo que nos alcançou a vida eterna e nós, purificados das obras mortas, servimos ao Deus vivo. E Cristo é o mediador de uma nova aliança, para que, intervindo a sua morte para remissão das transgressões cometidas sob a primeira aliança, os chamados recebam a herança prometida.

Neste sentido, devemos ser gratos a Deus pelo dom e responsáveis pela sorte nossa e dos nossos irmãos e irmãs que integram a família de Deus. Entretanto, cantamos com a Liturgia o Salmo 116, que dá asas à liberdade e a alegria confiante de vermos segura nas mãos de Deus a nossa vida e reacendida em nós a chama que não se extingue. Se nos perguntarmos “Como restituirei ao Senhor por todos os seus benefícios que me deu?”, teremos a ajuda do Salmo para responder: “Elevarei o cálice da salvação e invocarei o Nome do Senhor”. E ainda: “Cumprirei os meus votos ao Senhor diante de todo o seu povo”. Com efeito, não somos capazes de retribuir ao Senhor, mas podemos e devemos agradecer o dom e testemunhar a sua grandeza e amor.

2021.06.03 – Louro de Carvalho

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