A razão de ser do título desta página de reflexão resulta de duas
observações que Dom Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa, evidenciou na
sua homilia da Solenidade do Santíssimo Corpo
e Sangue de Cristo, vulgarmente designada por Corpo de Deus.
Diz o
prelado lisbonense que celebramos o mistério da Divina Eucaristia com muita
gratidão e com grande sentido de responsabilidade.
Por outro
lado, contou a história do frade, que encontrou umas crianças junto a uma praia
e lhes perguntou se se comiam as gaivotas, ao que responderam prontamente que
“não”. Tendo-lhes perguntado porque não as comiam, responderam que sabiam a
peixe. Então, o frade perguntou-lhes se já tinham feito a primeira comunhão, ao
que responderam afirmativamente. E o bom do religioso interpelou-as: “Então vós sabeis a Jesus?”.
***
Obviamente a
Igreja celebra jubilosamente esta Solenidade, relevando o facto da instituição
da Eucaristia, mistério da incomensurável caridade divina, pela qual o Senhor
Jesus Se dá em Corpo e sangue como alimento do viandante por este mundo sob as
espécies de pão e de vinho. De igual modo, constrói e robustece a comunidade
dos crentes tornando-os um só corpo vivificado pelo mesmo Espírito. E o Cardeal
Patriarca, com base nas fórmulas de epíclese (vd Anáfora II), frisa a ação do Espírito Santo sobre as oblatas ou
dons (“Santificai
estes dons, derramando sobre eles o vosso Espírito, de modo que se convertam,
para nós, no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”) e nos crentes para que sejam capazes de edificar a
Igreja (“Humildemente
Vos suplicamos que, participando no Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos,
pelo Espírito Santo, num só corpo”).
Por isso,
celebramos com gratidão pelo dom do Espírito que nos faz percecionar o Corpo e
Sangue de Cristo como Jesus presente entre nós nas espécies de pão e de vinho,
dom gratuito de imensa caridade divina, companheiro e alimento e construtor da
Igreja seu corpo extenso e dinâmico. E, de igual modo, celebramos com a
responsabilidade de fazer com que a nossa vida saiba a Jesus no sentido do
nosso desenvolvimento espiritual tendo em conta a totalidade da nossa pessoa,
no sentido da edificação consolidada da Igreja com o nosso contributo e no
sentido da solidariedade para com os irmãos e irmãos, com prioridade para os
pobres, doentes e demais fragilizados ou mesmo descartados.
Como pano de
fundo para esta gratidão e responsabilidade está necessariamente e fé profunda
e inabalável na presença de Cristo nas sagradas espécies, fé que é preciso
alimentar com a oração contemplante e o exercício do saborear do mistério
eucarístico. Na verdade, Se no corpo mortal do Senhor estava escondida, mas
presente, a divindade, no mistério do pão e vinho feitos Corpo e Sangue de
Cristo, estão escondidas, mas presentes e eficazes a divindade e a humanidade –
em prol de cada crente, sobretudo se fragilizado no corpo e/ou na alma ou
descartado pela sociedade, e em benefício da comunidade eclesial, que tem a
Eucaristia como “centro e cume de toda a vida cristã”, a ponto de, na prática,
a identificar com a própria condição cristã, de modo que ser crente é
participar na Missa com a comunhão sacramental, se possível, de modo que
renunciar a esta participação sem motivo grave significa “não ter fé ou tê-la
de forma ténue e adormecida”, como referiu na sua oportuna homilia Dom Manuel
Linda, Bispo do Porto.
A este propósito, o antístite portuense
sublinhava a “profunda angústia” com que “se assiste à forte desvalorização do
apreço pela missa do domingo”, o que já acontecia “antes da pandemia”, sendo que,
“ao deixar-se a missa, deixam-se as outras dimensões religiosas católicas: a
fé, o estilo de vida crente e a pertença à comunidade ou Igreja”. Por isso, vincou a necessidade de ajudarmos as
pessoas a regressar, uma vez que os cristãos são chamados a receberem a graça dos
sacramentos, a alimentarem-se com a palavra de Deus e a fortalecerem
continuamente a fé e o exercício da caridade. Com efeito, é a força da
Eucaristia que faz com que a Igreja se realize no seu ser, Corpo e de Cristo e
Povo de Deus, e na sua missão de saída ao encontro dos que necessitam da Boa
Nova porque doentes, pobres, cativos, fragilizados, descartados, atormentados
pelos erros ou pelos excessivos cuidados com este mundo.
***
O trecho
evangélico que nos é dado saborear na Liturgia da Palavra da Solenidade no Ano
B (Mc 14,12-16.22-26) mostra-nos como Jesus diz onde e como preparar a
Ceia: nada de improviso, nada à sorte ou desordenado, mas em local apropriado
com tudo o que é necessário, sem excessos e superfluidades. Com efeito, a
instituição da Eucaristia acontece num ambiente de refeição, banquete de
íntimos, que falam, expõem as suas ideias, convicções, sentimentos e
expectativas e se alimentam. Assim, podemos e devemos fazer os preparativos,
mas só na parte do que depende de nós. Já o Pão e o Vinho, feitos Corpo e
Sangue de Cristo, só os podemos receber d’Ele. Essa receção torna-nos
cocelebrantes da Eucaristia e, nessa condição, conjugamos o verbo “eukharistéô” no passado, no presente e
no futuro, pensando, sentindo, dizendo, querendo e fazendo bem e o bem. E o
melhor bem que se pode fazer é, antes de mais, na linha da união com Deus e com
os irmãos, fazer o que Jesus fez e manda fazer:
“Enquanto eles comiam, tomou um pão (“labôn árton”) e,
pronunciando a bênção, partiu-o (“eulogêsas
éclasen”) e deu-lho e disse (“kaì édôken autoîs kaì eîpen”): ‘Tomai, este é o meu corpo’ (“lábete, toûtó estin tò sômá mou ”). Tomando, então, um cálice e dando graças
(“kaì labôn potêrion eukharistêsas”),
deu-lho (“édôken autoîs”) e todos
beberam dele (“kaì épion ex autoû
pántes”). E disse-lhes (“kaì eîpen autoîs”): ‘Este é o meu sangue da aliança (“toûtó estin tò haîmá mou tês diathêkês”), derramado em favor de muitos’ (“tò
enkhynnómenon hyper pollôn”). (Mc 14,22-24).
Ora,
Jesus pegou num pão e no cálice, deu graças, partiu o pão, deu o cálice com
vinho e falou. Isto é o que os sacerdotes devem fazer para na celebração termos
o Corpo e Sangue de Cristo sob as espécies de pão e de vinho, sendo que em
qualquer delas estão o Cristo todo. Se é obrigatório consagrar pão e vinho e
metodicamente distinguimos corpo e sangue, é porque eles são o corpo entregue
por Jesus ao Pai em sacrifício por nós e sangue derramado por nós; e a
celebração é a garantia da presentificação do único sacrifício de Cristo em
todos os tempos e lugares. Depois, evoca-se em subtexto a aliança antiga, para
dizer que ela cessou, pois a vítima corporal imolada é Cristo – e não um
cordeiro, cabrito ou vitelo – e o sangue derramado sobre o altar do sacrifício
e sobre o povo, a selar a aliança, é o sangue de Cristo – e não o de outrem. Por
isso, Ele disse: ‘Este é o meu sangue da aliança
derramado em favor de muitos’. É esta a aliança em absoluto, não há outra. As
antigas eram figuras e pedagogas para esta, que em Lucas é designada por “Nova
Aliança” (“kainê diathêkê”) e cujo selo é o sangue
de Cristo.
E
Jesus falou proferindo as palavras hoje utilizadas para a consagração, que incluem
a assunção da Eucaristia, além de sacrifício do Calvário, ora incruento, a
refeição, pois os comensais comem e bebem, não qualquer comida ou bebida, mas o
Corpo e Cangue de Cristo.
Há
nisto uma particularidade como referia Dom Manuel Clemente: ao invés do que
sucede com os alimentos que tomamos habitualmente, que se desfazem em nós,
somos nós que nos transformamos em Cristo e no seu corpo eclesial, pois, como
diz Paulo, “para mim viver é Cristo” (Fl 1,21) e formamos, no mesmo Espírito,
um só corpo (cf
Ef 1,4). Por
isso, devemos ter o sabor de Cristo na vida pessoal, na relação com os outros e
no modo com o encaramos o mundo. Mas a Eucaristia, mais que o passado, é
presente e presente perpétuo: tomai,
comei, bebei – agora e sempre. E é também futuro, ou seja, antecipação dos
últimos tempos. Com efeito, Jesus, falando de Si próprio e do cálice que
entregou aos discípulos, disse: “Não mais beberei do fruto da videira, até àquele dia
em que o hei de beber, novo, no reino de Deus”.
Assim,
a síntese da Eucaristia está na antífona do Magnificat
de Vésperas II da Solenidade:
“Ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a sua Paixão,
em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória”.
À
luz da Palavra de Cristo, fica mais justa e percetível a leitura das passagens relativas
à Aliança firmada ente Deus e o seu Povo mediante Moisés, como se vê no livro
do Êxodo.
Se escutarmos a voz do Senhor e guardarmos a sua aliança, seremos para Ele
um reino de sacerdotes e uma nação santa” (cf Ex 19,5-6) – é o que propõe o próprio Deus, através
de Moisés, ao povo de Israel, que chegou ao sopé do Sinai e ali acampou (Ex 19,1-2). A promessa de Deus de implica uma condição: escutar a voz de Deus e
guardar a sua aliança. E Israel, considerando atentamente tal proposta, responde
unânime e firmemente: “Tudo o que o
Senhor falou, nós o faremos”
(Ex 19,8). E, mais tarde, reitera reforçando e proclamando por duas vezes: “Faremos todas as Palavras que o Senhor falou”
(Ex 24,3.7).
O livro do Êxodo patenteia a realização da promessa de Deus, pondo-nos
diante dos olhos os jovens (cf Ex 24,3) e os anciãos (cf Ex 24,9-11) a oficiar no culto. É a totalidade do povo de Israel, todo ele sacerdotal
e santo. Depois, sela-se a aliança entre Deus e o seu povo. O sangue dos
novilhos imolados é recolhido em bacias, sendo metade destinada a aspergir o
altar, que simboliza Deus (cf Ex 24,6) e a outra metade a aspergir o povo de
Israel (cf Ex 24,8). Assim, Deus e o povo de Israel participam do mesmo sangue, ou seja,
integram a mesma família. Vinca-se a fidelidade e a familiaridade que se
estabelece entre Deus e o seu povo, entre Deus e nós.
E tudo isto assenta naquele falar
criador de Deus e no falar anuente
e compromissor do povo, que diz que “sim” à Palavra de Deus. É um diálogo
criador dum sacerdócio comum de todos os e as que juram fidelidade ao Senhor, mas
sem dispensar a mediação de Moisés.
Com Jesus e a Aliança que Deus por meio de Jesus – e já não de Moisés – firmou
connosco, este povo sacerdotal e esta nação santa não se circunscrevem à
estreiteza das fronteiras geográficas ou culturais de Israel, mas estendem-se a
todas as nações, geografias e culturas e por todo o sempre, com o impulso do
grande e único mediador.
Por isso, a Carta aos Hebreus (cf Heb 9,11-15) nos apresenta Jesus Cristo como o sumo
sacerdote dos bens futuros, pois não derramou o sangue de animais, mas o seu
próprio Sangue, pelo que nos alcançou a vida eterna e nós, purificados das
obras mortas, servimos ao Deus vivo. E Cristo é o mediador de uma nova aliança,
para que, intervindo a sua morte para remissão das transgressões cometidas sob
a primeira aliança, os chamados recebam a herança prometida.
Neste sentido, devemos ser gratos a Deus pelo dom e responsáveis pela sorte
nossa e dos nossos irmãos e irmãs que integram a família de Deus. Entretanto,
cantamos com a Liturgia o Salmo 116, que dá asas à liberdade e a alegria
confiante de vermos segura nas mãos de Deus a nossa vida e reacendida em nós a
chama que não se extingue. Se nos perguntarmos “Como restituirei ao Senhor por todos os seus benefícios que me deu?”,
teremos a ajuda do Salmo para responder: “Elevarei
o cálice da salvação e invocarei o Nome do Senhor”. E ainda: “Cumprirei os meus votos ao Senhor diante de
todo o seu povo”. Com efeito, não somos capazes de retribuir ao Senhor, mas
podemos e devemos agradecer o dom e testemunhar a sua grandeza e amor.
2021.06.03 – Louro de Carvalho
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