O Presidente da Hungria veio
a Portugal para a Cimeira Social da UE e falou, numa conversa à
beira-mar, com Jaime Nogueira Pinto, dito historiador, politólogo, escritor e
empresário, que lhe deu voz na mais recente edição de “Revista E” do Expresso (2021.06.04).
Verifica o interlocutor de
Viktor Orbán que surgiram por toda a Europa movimentos e partidos políticos olhados de soslaio pelos adversários como “infrequentável
amálgama populista”, num “espectro” iliberal e antidemocrático. E considera uma
velha forma de manter o inimigo “como espectro ameaçador” a atitude de o amalgamar
sem lhe divisar as ocultas marcas de subtileza, diversidade, divergência
interna, circunstancialidade e especificidade.
Depois, admitindo parecer este o “espectro” que presentemente “assombra a
Europa”, propõe-se “tentar destrinçá-lo, conhecê-lo e ouvi-lo”, começando por
dizer que se trata de movimentos (e partidos) “com valores e princípios comuns (“nação,
história, família, identidade, independência, liberdade”), a par de “inimigos também comuns” (“globalismo
político e económico, multiculturalismo, correção política e histórica,
controlo de pensamento e expressão”). E, não
sendo internacionalistas, mas valorizando “as raízes culturais e nacionais”, são
“de direita” de modos diferentes.
Diz ter entabulado conversa com Orbán, de 58 anos, um dos representantes
mais significativos desta “direita radical”, que está há no poder 10 anos, sendo
um “populista” que governa e que, ao invés da denominação de “um Belzebu”, com
que o presenteiam, se autodefine como cristão, nacionalista e conservador e
sublinhando que Santo Estêvão, o primeiro rei da Hungria, “era um visionário,
um governante que unia o político ao espiritual”. Assim, os partidos de direita
radical” da Osteuropa, como o Fidesz,
da Hungria, ou o Lei e Justiça, da
Polónia, têm uma forte componente cristã (ali foi perseguida a religião e
reprimidas as liberdades individuais), ao invés
das formações partidárias de Le Pen, de Salvini e de Meloni, marcadas pelo “individualismo
laico e liberal”. Por isso, apesar de terem inimigos comuns, são diferentes as
raízes ideológicas destes dois grupos de movimentos e partidos.
Nogueira Pinto refere que, enquanto esperava pelo interlocutor, se lembrara
de que um dos primeiros atos políticos em que participou foi a manifestação de
solidariedade para com o povo húngaro, em novembro de 1956, aquando da invasão
de Budapeste pelos tanques soviéticos. E diz que Orbán fala com emoção do
grande revés que a Hungria sofreu há 100 anos, com o Tratado de Trianon, após a
I Grande Guerra, tratado que foi o primeiro grande choque para esta milenária nação
que já conhecera outros, como o diktat de Versalhes, a correção
político-geográfica de Wodrow Wilson que, mutilou a Hungria, e, logo a seguir à
guerra, o comunismo, com Béla Kún, vindo da Rússia, quando os vermelhos que
combatiam os brancos na Ucrânia ali entraram para combater os ocupantes. Béla
Kún, que estava na Rússia como prisioneiro de guerra, voltou à Hungria com
apoio bolchevique, instaurou uma ditadura de 4 meses, caiu, fugiu e foi executado
nas Grandes Purgas dos Anos Trinta. Mas o espectro do comunismo não largou o
país, que alinhou, governado pelo regente, Miklós Horthy, com a Alemanha II
Grande Guerra e foi vítima Conferência de Yalta.
Considera Orbán que os
húngaros têm Yalta como o pecado capital dos Ocidentais,
que “abandonaram as nações latino-cristãs da Europa à ocupação duma potência
ateia, anticristã, antieuropeia, anti-humanista”. Por isso, a relação da
Hungria com o Ocidente tem duas faces: pertence ao Ocidente, respeita-o, mas
não esquece o que devia ter feito por ela e não fez.
Entregue o país ao Partido Comunista pelo exército soviético, repetiu-se,
daquela vez com sucesso, o que falhara com Béla Kún. E o comunismo instalou-se
em força, graças às tropas soviéticas e à tolerância do Ocidente. Porém, no
outono de 1956, os húngaros rebelaram-se contra o comunismo e a URSS, levando a
melhor e induzindo os soviéticos a abandonar Budapeste. E isto ficou mais fácil,
pois, à morte de Estaline, Khrushchev denunciara os seus crimes e estava em
curso o degelo. Os húngaros neutralizaram a polícia política e derrubaram estátuas
do “czar vermelho”. Não obstante, foi efémero este momento de esperança apesar
da propaganda da liberdade do Ocidente. E Orbán, que ainda não era nascido, comentou:
“Os americanos e o Ocidente escolheram o dinheiro em vez da liberdade e
dos valores. Preferiram o Canal de Suez, que lhes dava comércio e dinheiro.
Para eles, foi mais importante do que lutar por princípios e valores. Por isso,
quando nós, húngaros, os ouvimos agora falar da defesa dos valores europeus...
Calma aí que nós ainda temos memória.”.
A Revolução de 56 foi um “sursum
corda” pela liberdade, mas com preço alto. A subsequente repressão azou a
fuga do país de 200 mil húngaros, a prisão e execução de milhares. Mas os
comunistas húngaros perceberam que não podiam fazer o que tinham feito nos anos
50, porque não queriam acabar pendurados nas árvores, mortos pelo povo insurreto. E, 33 anos
depois, foi na Hungria que começou o fim da Cortina de Ferro. A ideia de abrir
a fronteira com a Áustria, para o Páneurópai Piknik (o
“piquenique europeu”), em agosto
de 1989, surgiu do encontro entre Otão de Habsburgo, descendente dos
imperadores de Viena, e o ministro húngaro Imre Pozsgay, comunista que chamou
“insurreição popular” à revolução de 1956. E a abertura da fronteira coincidiu
com a “Doutrina Sinatra”, de Gorbatchov.
Sobre a tríade João Paulo II-Reagan-Thatcher, Orbán não hesitou em vincar:
“O Papa foi o mais importante. E o Solidariedade, na Polónia, que foi
capaz de sobreviver, mesmo sob a repressão. Num regime totalitário, o facto de
um movimento anticomunista conseguir sobreviver é sinal de que o regime está
mais fraco.”.
E, na Hungria, as coisas também estavam a mudar desde meados dos anos 80. Os radicalmente anticomunistas sabiam
que a mudança tinha de ser radical. E o verão de 89 constituiu o ponto de viragem.
Em 88 ou 89 era claro que, se os comunistas quisessem restaurar o poder na
Hungria, teriam de prender pelo menos 100.000 pessoas. Só já a violência
poderia fazer parar o processo, mas o poder já não era suficiente. E Orbán
evoca Helmut Kohl, que evitou que Gorbatchov
invadisse a Hungria. E aponta que a França e a Inglaterra não ficaram “muito
satisfeitas com a reunificação da Alemanha”, mas os húngaros procuravam tornar
a mudança irreversível. Ora, se a Alemanha fosse unificada nada voltaria a ser
como dantes: “era o caminho para a liberdade”.
Em 1989, foi o início da vida política de Orbán, com 26 anos, no Fidesz, movimento
cívico anticomunista, discursando na trasladação do corpo de Imre Nagy,
enforcado pelo governo comunista de Kadar, 2 anos após a rebelião de Budapeste (Moscovo não
perdoava). E contou:
“Decidi ficar na política quando percebi que as perguntas que então se
punham eram mais importantes do que qualquer outra coisa na minha vida: Como
criar um sistema constitucional? Como criar uma nova Constituição, um novo
Parlamento? E resolvemos transformar o nosso movimento em partido. (…) O único
partido da Europa Central que tinha um limite de idade: ninguém com mais de 35
anos podia entrar, só jovens anticomunistas radicais, sem compromissos. De
todos os outros partidos anticomunistas da antiga Cortina de Ferro fomos os
únicos a entrar para o Parlamento.”.
Dos valores e princípios que defendiam depois
do colapso do regime comunista, diz:
“Tudo girava em torno da liberdade. Livrarmo-nos das tropas soviéticas,
livrarmo-nos do regime comunista, a liberdade era o único valor. A pergunta
‘que tipo de vida queremos depois da liberdade’ não estava ainda no horizonte.
A nação sim, porque, contra os russos, era óbvio que a nação era importante.
Religião, claro, somos húngaros, somos cristãos, mas não estava, nessa altura,
no centro da nossa atividade política. Nem sequer a família.”.
Diz-se iliberal, porque a seu ver, na
política atual, “são os liberais que são contra a liberdade”, pois, de partidários
do pluralismo, passaram a querer “agora ter a hegemonia da opinião”.
Dizem-se os lutadores “por
uma sociedade iliberal”, ou seja, por “uma sociedade baseada na liberdade
contra os liberais”, e não cedem em aspetos julgados basilares,
como o casamento enquanto “união entre um homem e uma mulher”. E Orbán vai mais
longe ao vincar:
“Os democratas-cristãos devem ser hoje claramente antiliberais. Veja a
nossa posição quanto à imigração, quanto à família, a nossa insistência na
cultura nacional... E nos vastos territórios ex-soviéticos, no Leste ou Centro
da Europa, o que está consagrado nas Constituições é que o casamento é a ‘união
entre um homem e uma mulher’. (…) A família é uma união sagrada que não podemos
mudar a nosso bel-prazer. (…) Independentemente de a sociedade ser ou não
maioritariamente crente. A Hungria é mais laica que a Polónia, mas a esse
respeito não há sequer discussão. Nem na Hungria nem em nenhum dos outros
países centro-europeus.”.
Sobre a importância da identidade nacional e a Europa, é perentório:
“Não acreditamos nem confiamos em nenhum tipo de homogeneidade europeia.
E não havendo homogeneidade, há nações. E havendo nações, precisamos de
soberania nacional. Portanto, a boa forma de cooperação europeia é uma
cooperação de nações. Não achamos prudente ter uma supernação
institucionalizada a alto nível nem achamos que devamos construí-la, porque não
é natural. Mas precisamos de instituições para gerir os assuntos europeus.
Assim, não se trata de querer ou não uma União Europeia, mas de saber que tipo
de União Europeia queremos.”.
De guerras culturais e papel da academia e media (não eleitos) na formação das mentalidades, diz:
“A culpa é dos democratas-cristãos. Porque negligenciámos a importância
das universidades, da educação e dos media. Mas a geração de 68, os comunistas
e a esquerda, entendeu a sua importância, na senda de Gramsci (…), as
estratégias de aproximação do poder e a hegemonia social. A esquerda
percebeu-as e usou-as e nós deixámos.”.
Face à economia, que parece ter estagnado nos tempos em que socialismo
dominava muitos Estados, Orbán, que diz ter equilibrado a economia com o resto
da agenda política, fala da medida justa e da economia como valor, segundo a
sua ótica:
“O que as novas gerações pensam que é importante na vida depende de nós.
Se lhes ensinarmos que o dinheiro, o sucesso e a economia são importantes mas
que são só uma face da moeda, estamos bem. (…) Se formos capazes de educar os
nossos filhos nesse equilíbrio, estamos bem. (….) Tem de se ter sucesso na gestão da
economia. Se fizermos isso preservando os valores importantes, estamos no bom
caminho. Na Hungria, economicamente, temos tido muito sucesso.”.
Como a dívida não chega a 80% do PNB (antes da crise era de 67%), tem gizado políticas familiares inovadoras, como as
mães com mais de 4 filhos deixarem de pagar impostos até ao fim da vida, na
convicção de que “a família é onde os filhos podem ser
educados e donde partem para o mercado de trabalho”, pois considera a família importante
como valor e pelo impacto positivo que tem na economia, vindo, no caso de não
haver filhos, a nação a declinar e a depender do trabalho dos imigrantes. Recorda que foi chamado
Belzebu quando disse precisar de crianças húngaras “para podermos deixar o
país, não a imigrantes”, mas aos nossos netos”.
Observa que, precisando de
vacinas na pandemia, “viessem
elas de onde viessem”, deixou claro no Conselho Europeu que nisso não ia seguir
os regulamentos da UE. E explicou:
“Quando o vírus chegou, tive uma experiência chocante: não havia
ventiladores suficientes. Quando veio a segunda vaga e ficou claro que a vacina
estava para aparecer, orientei os empresários e o Ministro dos Negócios
Estrangeiros para que entrassem em negociações com todos os fornecedores,
porque ia acontecer com as vacinas o que tinha acontecido com os ventiladores.
Por isso, logo em novembro, fechámos acordos com os chineses e com os russos.”.
Vê que, após do fim da URSS e da internacional comunista, surgiu uma nova
internacional da esquerda “muito
forte”. Não sabe como funciona, mas que prima pela interajuda e visão comum
sobre o futuro pela qual trabalham. Mais diz que “hoje os esquerdistas são
globalistas”, pois “as empresas querem gerar lucros cada vez maiores”, pelo que
é melhor não terem obstáculos. E “tornar o mundo global é muito bom para o
negócio”, que é, na sua ótica, o que a esquerda está a fazer “destruindo as
nossas comunidades tradicionais”.
Questionado se não deviam as direitas fazer isso, colaborando perante inimigos
comuns, vinca:
“A cooperação para a direita é mais difícil do que para a esquerda,
porque somos nacionalistas. Mas, se quisermos sobreviver, é a única maneira.
Temos de nos juntar, de encontrar um denominador comum, porque somos todos tão
diferentes…”.
Sustenta que o denominador comum da “internacional dos nacionalismos” é “não aceitar nenhum tipo de império” e
pugnar por “Estado nacional, soberania, comunidades naturais”.
Em termos geopolíticos, Orbán pensa que “há
uma grande diferença entre a forma chinesa e a forma liberal americana” (e até a europeia) “de fazer política externa”.
A forma liberal parte duma superioridade moral. Os chineses nunca dizem como
nos devemos comportar e o que é certo ou errado moralmente, “mas zelam sempre e
só pelos seus interesses” e investem na formação, na ciência e na técnica. A
China não terá um sistema de liberdade política individual e estará marcada
pela enorme dimensão territorial e mole populacional.
Refere que os povos da Europa Central e Oriental, especialmente os bálticos
e os polacos, têm uma sensibilidade à Rússia diferente da húngara, já que,
antes ou depois do comunismo, os russos só vieram para lá (até Paris,
em 1814, e até Berlim, em 1945) atrás dos
que os tinham invadido.
Além disso, os húngaros mantêm
distância da Rússia, porque, sendo cristãos do Ocidente, talvez não entendam a
importância dos ortodoxos. Tendo os bizantinos defendido a Europa do Islão, a Igreja
Ortodoxa, geograficamente situada entre os cristãos ocidentais e os muçulmanos,
tem um papel muito importante neste equilíbrio. E os russos, porque são
cristãos-ortodoxos, são muito civilizados. Assim, para Orbán, sem ler
Soljenitsin, não se pode entender a Rússia, nação “com uma grande diversidade” “uma
nação de soldados”, em que “a liberdade individual nunca será tão importante
como a unidade do país”. E, perante a Rússia, o Presidente húngaro defende:
“Os europeus devem ser fortes e claros nas garantias de segurança e
cooperantes na economia. (…) Mas estamos a fazer exatamente o oposto,
recorrendo aos boicotes, uma política económica primária. O que a UE está a
fazer em relação à Rússia é muito pouco inteligente.”.
A propósito da Alemanha, diz que “existem
três poderes próximos dos húngaros: os alemães, os turcos e os russos”. E
aponta:
“A arte da política externa na Europa Central é encontrar um equilíbrio
e geri-lo. Mas neste momento a Alemanha é uma fonte de incerteza. (…) Nos últimos
16 anos, os democratas-cristãos, que tiveram de governar em coligação,
desistiram de aspetos fundamentais da democracia cristã. Agora preparam-se para
cooperar com os Verdes. E é isso que gera alguma incerteza.”.
E, sobre as relações Portugal-Hungria, Miklós Horthy, o almirante sem
esquadra, regente dum reino sem rei, que morreu no Estoril, e o treinador Béla
Guttmann, do Benfica, Orbán comenta:
“Os húngaros têm uma simpatia natural por Portugal. Até porque existem
muito poucos países que nunca fizeram mal à Hungria, e Portugal pertence a esse
pequeno clube. Há ainda uma outra coisa: quando um português encontra um
estrangeiro tem sempre uma atitude positiva, sem pré-julgamentos. Depois, logo
vê, mas o ponto de partida é positivo.”.
***
Penso que é útil refletir como e porque têm surgido surgem
partidos da direita radical. É óbvio que isto não surge de improviso ou da
parte de amadores. E tudo serve para levarem a água ao seu moinho. Se uns
apostam mais na componente laicista e libertária nos costumes, em posição à
tentativa de disseminação dos regimes teocráticos, outros fazem questão de
privilegiar a componente democrata-cristã, recordados das perseguições
infligidas à religião e na intenção de combater os excessos e desvios do
liberalismo, o laicismo exacerbado e o aperto das malhas sociais e políticas congeminadas
nos regimes totalitários. Estribados na falência dos regimes moderados e do
Estado Social, são contra o federalismo de Estados e querem o reforço da
soberania e da nação. Porém, mesmo os ditos cristãos delineiam políticas pouco cristãs
e mesmo anti-humanitárias, como o racismo, a xenofobia e a exclusão dos
imigrantes e refugiados.
E os métodos para atingirem o poder não diferem
substancialmente dos métodos dos outros: a pressão, a construção de narrativas adequadas...
E os efeitos são os mesmos dos das ditaduras.
2021.06.04 –
Louro de Carvalho
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