terça-feira, 8 de junho de 2021

Quem mais marcou pensamento europeu até final da II Guerra Mundial

 

Manuela Goucha Soares, a 6 de junho, escreveu no “Expresso online” uma peça jornalística sobre “Kalininegrado, a pequena Rússia vintage no meio da UE”, território, com a capital do mesmo, nome considerado “um enclave russo, fortemente militarizado” UE (entre a Lituânia e a Polónia com corredor para a Bielorrússia), uma “psoríase que incomoda sem matar”, com imenso valor estratégico em tempo de paz – pensamento que atribui ao general Carlos Branco, ex-diretor da Cooperação Regional da NATO. Mais refere que se trata de montra “vintage” que testemunha a passada quase divisão do mundo entre a NATO e o Pacto de Varsóvia, ao lado do local onde Lukashenko mandou desviar um avião europeu para deter o oposicionista Roman Protasevich.

Apesar de a União Soviética se ter desagregado, mantém-se a lógica dos dois blocos a ponto de ser difícil a EMA (Agência Europeia do Medicamento) reconhecer as vacinas russas contra a covid-19 e a Alemanha e outros países da UE, dependentes do gás russo e das vacinas russas, ficarem praticamente impossibilitados de confrontar a Rússia.  

Segundo Alexei Chabounine, jornalista editor-chefe da plataforma “Russian West”, a cidade devia chamar-se Königsberg”, pois, como disse, o nome homenageia Kalinine, “responsável por muita repressão e crimes durante o período estalinista”. E prossegue:

A vida aqui é semelhante à que se faz em Moscovo ou São Petersburgo. Somos menos habitantes, mas mais cosmopolitas. (…) Segundo as autoridades, viajamos 14 vezes mais do que os da maior parte do território russo, exceto os de São Petersburgo, Moscovo e região do Extremo Oriente. (…) No ano passado, mesmo com o coronavírus, tivemos um fluxo inédito de turistas, mais de dois milhões, segundo dados oficiais, sobretudo entre junho e novembro. Este ano os hotéis já estão com uma taxa de 60% de ocupação desde março. Na costa há uma taxa de reservas entre os 80% e os 95%.”.

Porém, em matéria de liberdade de expressão, sublinha:

Não existe nenhum órgão que se oponha completamente ao regime de Putin”.

Por seu turno, Ekaterina Malginova, russa que vive em Portugal desde os 9 anos, em 2015, fez mestrado na Universidade de Coimbra com a tese intitulada “Kalininegrado: que integração para uma região enclave?”, sustentando que Kalininegrado deve ser “uma pequena Europa dentro da Rússia” e “a ponte necessária para maior abertura e compreensão mútuas”, pois a Rússia faz parte da Europa, mas uma Europa diferente, com as suas ‘regras’. E defende que não se pode “deixar que a janela se feche”. Porém, Carlos Branco aduz que a Rússia tem aumentado as tropas no enclave com “intenção de continuar a reforçar o dispositivo militar” e explana:

Segundo a informação disponível, em 2014, existiria um efetivo de cerca de 225 mil soldados na região. Há planos para reforçá-lo ainda este ano.”.

E, em dezembro, a “Reuters” citava o almirante Alexander Nosatov, o responsável pela frota de Moscovo no Báltico, que dizia ter o enclave recebido “30 tanques T-72B3M, uma corveta naval armada com mísseis de cruzeiro e um número não revelado de caças Sukhoi SU-30SM” e que “o rearmamento seria acelerado” em 2021 para obviar ao reforço militar da NATO na região.

Ao referir que, segundo Banco, “os mísseis F300 são motivo de preocupação” para a Lituânia e a Polónia, que têm uma linha de fronteira de 65 quilómetros – corredor de Suwalki – encravada entre a Bielorrússia e Kalininegrado, antiga Königsberg, berço da cultura europeia, onde nasceu, viveu e morreu Immanuel Kant (1724-1804), cita Miguel Real, para quem este foi o filósofo que, “a par de Karl Marx e Friedrich Nietzsche, mais marcou o pensamento filosófico europeu até ao final da II Guerra Mundial”.

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Com a devida vénia, é difícil e temerário dizer quem mais influenciou o pensamento europeu. Indubitavelmente, Kant foi um grande filósofo, que nunca saiu da sua terra.

Dos pais luteranos recebeu uma severa educação religiosa. Na escola local estudou latim e línguas clássicas. Em 1740, com 16 anos, Kant ingressou na Universidade de Königsberg, como estudante de Teologia. Foi aluno do filósofo Martin Knutzen, aprofundou o estudo da filosofia racionalista de Leibniz e de Christian Wolff e mostrou grande interesse pela matemática e pela física. Em 1744 publicou um trabalho sobre questões relativas às forças cinéticas.

Em 1746, após a morte do pai, trabalhou como precetor, o que lhe permitiu entrar em contacto com a sociedade de Königsberg e ganhar prestígio intelectual.  Mesmo fora da universidade não parou de estudar e dedicou-se à publicação da sua primeira obra filosófica, “Pensamento Sobre o Verdadeiro Valor das Forças Vivas(1749).

Em 1754, retornou à universidade e, após concluir os estudos universitários, foi nomeado docente-livre. Lecionou, primeiro, Ciências Naturais e, depois, Filosofia Moral, Lógica e Metafísica. Publicou diversas obras na área de Ciências Naturais e Física. E, em 1770, ocupou a cátedra de Lógica e Metafísica na Universidade, cargo que exerceu até ao fim da vida.

O seu pensamento filosófico desenvolveu-se em três períodos: inicialmente, sofreu a influência da filosofia de Leibniz e de Christian Wolff e da física de Newton, como evidencia o trabalho “História Geral da Natureza e Teoria do Céu”; depois, gradativamente, deixou-se influenciar pela ética e pela filosofia empírica dos ingleses, sobretudo de David Hume, pela influência de quem, segundo o próprio Kant, “despertou do sono dogmático”, passando a adotar uma postura crítica ante a estreita correlação entre conhecimento e realidade, como espelhou em “Sonhos de um Visionário(1766); e, por fim, desenvolveu a sua própria “Filosofia Crítica”, que começou, em 1770, com a aula inaugural como professor de Filosofia, intitulada “Sobre a Forma e Os Princípios do Mundo Sensível e Inteligente”, conhecida como “Dissertação”, estabelecendo as bases sobre as quais se desenvolveria sua obra filosófica.

O sistema filosófico Kantiano foi concebido como uma síntese e superação das duas grandes correntes da filosofia da época: o racionalismo, que enfatizava a preponderância da razão como forma de conhecer a realidade, e o empirismo, que dava primazia à experiência.

Com Kant surge o “Racionalismo Crítico” ou “Criticismo”: sistema que procura determinar os limites da razão humana. Sua filosofia foi sintetizada em suas três obras principais: “Crítica da Razão Pura”, “Crítica da Razão Prática” e “Crítica do Juízo”.

Com a publicação de “Crítica da Razão Pura(1781), fundamentou o conhecimento humano e fixou os seus limites. Face à questão “Qual é o verdadeiro valor dos nossos conhecimentos?”, colocou a razão num tribunal para julgar o que pode ser conhecido legitimamente e que tipo de conhecimento não tem fundamento, na mira de superar a dicotomia racionalismo-empirismo. Condena os empiristas (defensores de que tudo o que conhecemos vem dos sentidos) e não concorda com os racionalistas (julgam que tudo que pensamos vem de nós), sustentando que o conhecimento deve constar de juízos universais, do mesmo modo que deriva da experiência sensível. Para sustentar essa contradição, Kant explica que o conhecimento é constituído de matéria e forma: “a matéria dos nossos conhecimentos são as próprias coisas e a forma somos nós mesmos”. O seu sistema filosófico  é conhecido como “Idealismo Transcendental”, que significa o que é anterior a toda experiência, pelo que chama transcendental “todo o conhecimento que trata, não tanto dos objetos, como, de modo geral, dos nossos conceitos a priori dos objetos”. E forma as bases da teoria do conhecimento como disciplina filosófica (obra sistemática que influencia a filosofia posterior).

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Porém, a grandeza e influência de Kant não ofuscam as de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (Estugarda, 27 de agosto de 1770 – Berlim, 14 de novembro de 1831), que percorreu a Alemanha e chegou a partes da atual Suíça, cuja obra “Fenomenologia do Espírito” é tida como um marco na filosofia mundial e na filosofia alemã. Hegel integra-se no Idealismo Alemão, movimento filosófico marcado por intensas discussões filosóficas entre pensadores de cultura alemã do final do século XVIII e início do XIX, em torno da publicação da “Crítica da Razão Pura”, de Kant. Hegel, ainda no seminário de Tübingen, escreveu, com os dois colegas Friedrich Schelling  e Friedrich Hölderlin, o que chamaram de “O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão”. Depois, desenvolveu um sistema filosófico que denominou “Idealismo Absoluto”, filosofia capaz de compreender discursivamente o absoluto (atingir um saber do absoluto, cuja possibilidade fora, de modo geral, negada pela crítica de Kant à metafísica dogmática). Apesar de notavelmente crítica do Iluminismo, a filosofia hegeliana é tida por muitos como (para usar a expressão de Habermas) a “filosofia da modernidade por excelência”. E muitos consideram que Hegel representa o ápice do Idealismo Alemão.

Hegel influenciou grande número de autores: Strauss, Bauer, Feuerbach, Stirner, Marx, Dilthey, Bradley, Dewey, Kojève, Hyppolite, Heidegger, Hans Küng, Fukuyama, Żiżek. E era fascinado pelas obras de Spinoza, Kant e Rousseau, bem como pelo ideário da Revolução Francesa.

Hegel, que recebeu influência de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Spinoza e Kant, descreve a sua conceção filosófica, no prefácio à “Fenomenologia do Espírito”:

Segundo a minha conceção – que só deve ser justificada pela apresentação do próprio sistema –, tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro, não só como substância, mas também, precisamente, como sujeito. Ao mesmo tempo, deve-se observar que a substancialidade inclui em si não só o universal ou a imediatez do próprio saber, mas também aquela imediatez que é o ser, ou a imediatez para o saber. (...) A substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou (…) que é na verdade efetivo, mas só na medida em que é o movimento do ‘pôr-se a si mesmo’, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro. Como sujeito, é a negatividade pura e simples e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ‘ser Outro’, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o ‘vir a ser de si mesmo’, o círculo que pressupõe o seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim.” (Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. (2002). Fenomenologia do Espírito. [S.l.: s.n.].

As obras de Hegel têm fama de difíceis graças à amplitude dos temas que pretendem abarcar. Hegel introduziu um sistema para entender a história da filosofia e o mundo, a “dialética”: uma progressão na qual cada movimento sucessivo surge como solução das contradições inerentes ao movimento anterior. Por exemplo, a Revolução Francesa constitui, para Hegel, pela primeira vez, a introdução da verdadeira liberdade nas sociedades ocidentais. Entretanto, por via da sua novidade absoluta, é absolutamente radical: por um lado, o aumento abrupto da violência – que fez falta para realizar a revolução – não pode deixar de ser o que é; e, por outro, consumiu o seu oponente. A revolução, por conseguinte, já não tem mais para onde volver-se além do seu próprio resultado: a liberdade conquistada com tantas penúrias é consumida por um brutal Reinado de Terror. A história, não obstante, progride aprendendo com os seus erros: só depois desta experiência e por ela, pode se postular a existência dum Estado constitucional de cidadãos livres, que consagra o poder organizador (supostamente) benévolo do governo racional e os ideais revolucionários da liberdade e da igualdade. “A liberdade reside no pensamento” – diz Hegel.

Nas explicações correntes do hegelianismo, a dialética  aparece fragmentada, por comodidade, em três momentos, chamados: tese  (por exemplo, a revolução)antítese (o terror subsequente) e síntese (o estado constitucional de cidadãos livres). Porém, Hegel não usou esta classificação, que fora criada anteriormente, por Fichte, para explicar a relação entre o indivíduo e o mundo. Os estudiosos não reconhecem, regra geral, a validade desta classificação, embora tenha valor pedagógico.

O historicismo cresceu significativamente na filosofia de Hegel. Tal como outros expoentes do historicismo, considerava que o estudo da História era o método adequado para abordar o estudo da ciência da sociedade, já que revelaria algumas tendências do desenvolvimento histórico. Na sua filosofia, a história não só oferece a chave para a compreensão da sociedade e das mudanças sociais, como também é considerada tribunal de justiça do mundo.

A filosofia de Hegel afirma que tudo quanto é real é racional; e, por corolário, tudo quanto é racional é real. O fim da história é a parusia do espírito; e o desenvolvimento histórico pode ser equiparado ao desenvolvimento dum organismo (os componentes têm funções definidas e, enquanto trabalham, afetam o restante). Hegel acredita numa norma divina, fulcrada no princípio de que em tudo (é panteísta) se encontra a volição de Deus, que é conduzir o homem para a liberdade. Justifica a desgraça histórica assim: todo o sangue e a dor, a pobreza e as guerras, constituem “o preço” necessário para alcançar a liberdade da humanidade. Hegel valeu-se deste sistema para explicar toda a história da filosofia, da ciência, da arte, da política e da religião.

No entanto, muitos críticos modernos assinalam que Hegel parece ignorar as realidades da história para as encaixar no seu molde dialético. O pressuposto de que o pensamento dos povos orientais era necessariamente imperfeito e pré-filosófico levou-o a negar a existência de uma verdadeira filosofia na Índia, por exemplo. Assim, Karl Popper, um dos críticos de Hegel, em “A sociedade aberta e seus inimigos, opina que o sistema hegeliano constitui uma justificação vagamente dissimulada do governo de Frederico Guilherme III e da ideia hegeliana de que o objetivo ulterior da história é alcançar um Estado que se aproxima do da Prússia do decénio de 1831. E Arthur Schopenhauer desprezou Hegel pelo seu historicismo e classificou a sua obra como pseudofilosofia. Porém, a visão de Hegel como apologista do poder estatal e precursor do totalitarismo do século XX foi desmontada por Herbert Marcuse em “Razão e revolução: Hegel e o surgimento da teoria social, aduzindo que Hegel não foi apologista nem do Estado nem da forma de autoridade, vigentes na Prússia no predito decénio. Eles é que existiram, sendo que, para Hegel, o Estado deve ser racional. E Arnaldo António Pereira (que foi meu professor) vincava que foi com Hegel que passamos da história-crónica à história-ciência.

A filosofia da história de Hegel está marcada pela “astúcia da razão” e “escárnio da história”. A história guia os homens que creem conduzir-se per se, como indivíduos e sociedades, punindo as suas pretensões, de modo que a história-mundo, ao troçar deles, produz resultados contrários aos pretendidos pelos seus autores, a despeito de, nos períodos finais, a história se reordenar e, em cacho, retroceder sobre si e, convertida com o seu sarcasmo paradoxal, em mecanismo de criptografia, cria ela mesma, sem querer, realidades e símbolos ocultos ao mundo e acessíveis só aos cognoscentes, ou seja, àqueles que querem conhecer.

***

A filosofia hoje, aliás como as ciências, prossegue com base na acumulação do conhecimento produzido ao longo da história e o lampejo influente de excelentes luzeiros de referência não ofusca o de outros de igual mérito e préstimo. O mundo avança com o contributo de todos. É bom não pôr Kant contra Hegel e vice-versa (e sequazes), mas ver o mérito de uns e de outros.

2021.06.08 – Louro de Carvalho

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