domingo, 6 de junho de 2021

Está fora de si e esperam-No do lado de fora

 

A passagem do Evangelho de Marcos (Mc 3,20-35) proclamada na Liturgia do X domingo do Tempo Comum no Ano B insere-se no quadro das controvérsias de Jesus com as instituições do mundo judaico, sendo o trecho em causa dominado pelo contraste entre a rejeição e a aceitação de Jesus como mestre e agente de ações miraculosas: dum lado, o grupo dos doze apóstolos (cf Mc 3,13-19) e todos os que aceitam e fazem a vontade do Pai (cf Mc 3,33-35); do outro, a dificuldade da família de Jesus (cf Mc 3,21), dos escribas (cf Mc 3,22) e, mais à frente, dos habitantes de Nazaré (cf Mc 6,1-6) em aceitarem o ministério de Jesus.

Assim, Marcos aborda aqui a difícil temática da identidade e origem de Jesus. O início do texto (Mc 3,21) apresenta-nos a atitude da família de Jesus, de ir ao seu encontro por ter ouvido dizer (diziam: “élegon” – imperfeito do plural com sujeito nulo de sentido indeterminado) que Ele “está fora de si” (“exéstê”). E a família de Jesus volta à ribalta no v. 31: vêm e esperam-No de pé (“érkhontai… kaì stêkontes”), do lado de fora (“éxô”) mandaram até junto Dele quem O chamasse (“apésteilan prós autòn kaloûntes autón”).

Entretanto, encontramos ensanduichada, nesta narrativa, a controvérsia com os escribas (cf Mc 3,22-30) sobre a origem do poder de Jesus para expulsar demónios: os escribas querem passar a ideia da familiaridade de Jesus com Belzebu, o príncipe dos demónios, e Jesus demonstra, com a parábola do reino dividido (Mc 3,23-25), que não pode ser do reino de Belzebu-Satanás ou ter com ele qualquer familiaridade, pois reino dividido não pode levar a melhor contra o inimigo (Mc 3,26-27). E, reagindo ao boato mentiroso (“diziam ‘tem um espírito impuro’.” – v. 30: “élegon: pneûma anátharton ékhei”), a controvérsia termina com a afirmação solene de Jesus:

Tudo será perdoado aos filhos dos homens, os pecados e as blasfémias que tiverem proferido; mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo jamais terá perdão; é réu de pecado eterno” (Mc 3,28-29).

Não podemos esquecer que, tal como refere o cerimonial do Batismo, os catecúmenos, antes de se tornarem neófitos pelo ato batismal, são convidados a renunciar “a Satanás, que é o autor do mal e o pai da mentira” (quem dizia que Jesus tinha um espírito impuro estava a ser porta-voz de Satanás); por outro lado, contradizer a verdade conhecida como tal é, segundo a doutrina, um pecado contra o Espírito Santo. Enfim, Jesus declara que todos “os pecados e blasfémias” serão perdoados, mas quem blasfemar contra o Espírito não obterá perdão, pois blasfemar contra o Espírito Santo é negar a verdadeira identidade divina de Jesus, ficando o blasfemo associado aos demónios. Isto está em linha com a pregação apostólica, por exemplo de Paulo, que assegura categoricamente:

Pela ação do Espírito Santo, ninguém pode dizer ‘Jesus é anátema’ (“anátema Iêsoûs”) e ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ (“Kýrios Iêsoûs”), a não ser pela ação do Espírito Santo (“eî en pneúmati hagíôi”).” (1Cor 12,3).

Posto isto, a narrativa retoma o relato da intervenção dos familiares de Jesus. Com efeito, alguém entra na casa onde ensinava e avisa-O de que a mãe e os irmãos estão lá fora à sua procura. E Ele faz pedagogicamente a pergunta sobre quem é a sua família. E responde voltando-se para os que estavam dentro com Ele, não para os que estão lá fora, sem Ele. Assim, o trecho termina com a afirmação de Jesus sobre quem é a sua família, refundando os laços familiares. Não são os vínculos de sangue que nos irmanam com Jesus, mas a escuta da Palavra com vista à realização da vontade de Deus em nós e por nós: “Eis minha Mãe e meus irmãos (“íde hê mêtêr mou kaì hoi adelphoí mou”): quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe(“hòs gàr poêsêi tò thélêma toû Theoû, hoûtos adelphós mou kaì adelphê mou kaì mêtêr estín”: Mc 3,35). A atitude fundamental de Jesus é a obediência à vontade de Deus, seu Pai; é isso que define a sua identidade. Para fazer parte da família de Jesus, é essencial ter a mesma atitude que Ele tem diante da vontade de Deus. Supostamente Ele estava fora de Si, mas os da sua família têm de estar com Ele e não do lado de fora. É com Ele, seguindo-O, que se cumpre a vontade do Pai. A mensagem do trecho evangélico revela, assim, a identidade de Jesus a dois níveis: a total ligação a Deus e à sua vontade, a ponto de considerar sua família quem estiver nessa mesma onda atitudinal; e a total separação e diferenciação do Demónio-Satanás. Aliás a sua missão é, nos termos da parábola (cf Mc 3,27), entrar em casa do “homem forte”, o demónio, “amarrá-lo”, impedindo-o de continuar a sua ação, e “roubar-lhe os bens”, isto é, retirar da alçada do seu poder todos os que fez sua propriedade.

Dom António Couto vê esta passagem evangélica como que organizada em três cenas: a primeira (Mc 3,20-21) mostra Jesus em casa, em Cafarnaum procurado por todos e sem tempo para comer, pelo que os familiares saem para tomar conta dele, pois se dizia:está fora de si”; a segunda (Mc 3,22-30) mostra os escribas de Jerusalém a verem o que se passa com Jesus e a concluírem que expulsa os demónios por estar possuído por Belzebu, o que leva o Mestre a desmenti-los com a parábola do reino dividido e a falar do perdão e do que não o tem; e a terceira (Mc 3,31-35) mostra Jesus a indicar quem são os seus verdadeiros familiares: não os que estão “fora de pé”, mas os que estão “dentro e sentados à sua volta”.

Depois, chama a atenção para o caso de, circulando a voz de que um homem enlouquecera, competia aos familiares serem os primeiros a intervir e tomar conta dele, (cf Dt 13,2-12; Zc 13,2-5).

Quanto à acusação dos escribas, o prelado lamecense sublinha que não pode “ser o mal a lutar e vencer o mal”, que “só pode ser vencido pelo bem”. E enfatiza:

Só a cegueira de corações empedernidos pode recusar evidência tão evidente: de facto, quem estiver postado do lado do mal, não se porá a combater o mal, pois uma tal atitude equivaleria a destruir-se a si mesmo. Confundir a fonte do bem, operado por Jesus, com a fonte do mal, é não querer reconhecer a ação de Deus, e reconhecer o mal como único poder, único deus.”.

E, no atinente ao dito final de Jesus, o prelado académico conclui que Jesus “põe em contraponto a ‘casa’ nova e a ‘casa’ antiga. E explica:

A casa antiga permanece vinculada ao velho livro anagráfico, que nos prende à terra, e não nos deixa ver o céu. Que nos enreda em laços familiares antigos ligados à casa antiga, e não nos deixa ver tantos novos irmãos e irmãs, pais e mães, filhos e filhas, que Deus nos dá. A família antiga, assente na terra e no sangue, fica fora e de pé. A família nova, assente no céu e na graça, fica dentro e sentada a escutar a Palavra de Jesus, para aprender a fazer a vontade de Deus.”.

***

Obviamente que incumbe às pessoas assumir a responsabilidade pelas suas atitudes e atos, não alijando para outrem (homem, mulher ou diabo) a autoria das próprias ações. Com efeito, muitos gostam de se deixar seduzir e enganar pelas mentiras, insídias e propostas do diabo ou de quem se torna seu adepto, sequaz, agente e porta-voz. Não é por acaso que, após a tentação, se torna particularmente central e interpelante a pergunta que Deus fez e faz no quotidiano a cada um de nós e que abre a narrativa da prestação de contas a Deus da parte do homem pelos atos maus que pratica ou pelos atos bons que não quis praticar (vd Gn 3,9-15).

Deus, por um lado, quer que o homem assuma as suas responsabilidades, mas, por outro, mostra que se mantém interessado e solícito pela sorte de cada pessoa, não a querendo ver fora da via traçada pelo Senhor. Não é lícito ao homem esconder-se do olhar de Deus invocando o medo.      

A presente narrativa do Génesis que espelha o que nós tendemos a ser e que devemos tomar como lição de Deus, desmonta e invalida todas as nossas vãs estratégias de defesa; e faz-nos ver como nós nos escondemos de Deus e de nós mesmos, confundimos tudo atribuindo dos nossos atos e omissões a autorias indevidas e, sobretudo, atirando facilmente as nossas culpas para cima dos outros. Enfim, fugindo de Deus e de nós, somos fáceis a acusar os outros, velada ou abertamente e, subsequentemente, escondemos Deus e o seu dom, que é amor, perdão e alegria.

Mais tarde, aparece Jesus a excluir os “fora”, o espírito inquinado do mundo, e a criar um “novo dentro”, o da família dos filhos de Deus com o Filho, o mundo da fraternidade – nele incluindo a ovelha perdida que veio procurar e cuja procura não O cansa.

Em todo o caso, é lapidar a sentença proferida sobre a serpente:

Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Ela há de atingir-te na cabeça e tu a atingirás no calcanhar.”.

Repare-se que atingir na cabeça (centro comandante da vida) é golpe mortal, ao passo que tentar atingir no calcanhar (peça corporal considerada no mundo antigo sem vida, por isso insignificante) é desferir golpe inútil. E veio Jesus, o Messias, com a missão de estoirar com o demónio e suas artes. Veio por Maria e continua pela Igreja, que tem em Cristo a sua cabeça e em Maria o seu protótipo e membro proeminente. 

***

Também Paulo (2Cor 4,13-5,1), baseado na fé na Ressurreição de Cristo e impulsionado a falar (“laléô”) por força do Evangelho, garante que Deus não nos abandona apesar do que em nós é de “fora” (corporal) se ir arruinando até ao desmantelamento. Deus vela por nós e salva-nos da ruína.

“Esta tenda, que é a nossa morada terrestre”, passível de ser destruída, contrasta com a habitação eterna, que é obra de Deus” e que para nós está preparada. Para que ninguém fique do lado de fora, os discípulos aprendem, os apóstolos apregoam, os missionários levam ao largo e ao longe e os irmãos vivenciam. Vale, pois, a pena aguentar as tribulações do presente se estivermos revestidos da total confiança e esperança na eternidade em comunhão com Deus (cf Rm 8,31-39; Fl 3,7-14), que a ressurreição de Cristo nos garante. Na verdade, a fé na Ressurreição do Senhor e a esperança da nossa ressurreição levam-nos à comunhão em dois planos: o espírito de união com Cristo; e a comunhão com os cristãos. Paulo já deixara claro que as tribulações no desempenho do ministério apostólico eram sinal da sua visível união à morte de Jesus (cf 2Cor 4,8-12). E agora espelha a esperança de se unir a Ele na glória da ressurreição (cf 2Cor 4,14: “sabendo que Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há de ressuscitar com o Senhor Jesus” – ‘eidótes hóti ho egeíras tòn Kýrion Iêsoûn kaì hêmâs syn Iêsoûn egérei – “e nos levará convosco para junto d’Ele” – ‘kaì parastêsai syn hymîn’). Portanto, a união existencial com Jesus é essencial na vida e na pregação do apóstolo. E essa comunhão visível com Jesus abre-se à comunhão com os que creem em Cristo, pelo que Paulo espera estar unido a Jesus com os destinatários da carta (cf 2Cor 4,14: “convosco”, “syn hymîn”) e, se sofre tribulações, fá-lo em prol dos cristãos, concitando a ações de graças, tanto quanto possível de todos, tendo em vista a maior glória de Deus, ou seja, para que “uma graça mais abundante multiplique as ações de graças de um maior número de cristãos
para glória de Deus
(“hína hê kháris pleonásasa dià tôn pleoónôm tên eukharistían perisseúsê eis tên dóxan toû Theoû”: 2Cor 4,15).

***

Em suma, Jesus estará fora de si, não por obra de Belzebu, mas porque todo apostado na concretização da vontade do Pai, contrariando e ultrapassando o espírito do mundo, porque, tal como referem os padres espirituais, louco pelas pessoas e sedento delas, procurando-as uma por uma para que nunca esteja nenhuma de fora nem fique para trás. Para tanto, sujeitou-se a ficar de fora em tantas ocasiões. Nasceu fora de Nazaré; teve de sair para fora de Belém por via da perseguição herodiana; viveu parte da infância fora do seu país (no Egito); esteve fora, solidário com os que estavam fora da sociedade, como os pobres, as mulheres, as crianças, os cegos, os surdos, os surdos-mudos, os coxos, os leprosos, os publicanos, os endemoninhados, os/as estrangeiros/as e mesmo acolhedor de prostitutas e da adúltera; só teve sucesso a sua pregação fora da sua terra; viveu e pregou fora dos cânones políticos e religiosos do judaísmo; propôs o culto em espírito e verdade mesmo fora do Templo; esteve fora da tranquilidade normal, triturado pelo insulto, escárnio e sofrimento físico; foi deitado para fora do convívio por parte daqueles que prometeram segui-Lo, mas O abandonaram, tendo-O traído um deles e tendo-O negado outro, cumprindo o que diz Salmo 69,9 (“Tornei-me estranho para os meus irmãos, um estrangeiro para os filhos da minha mãe); foi julgado fora das regras vigentes na sua Pátria e no Império Romano e foi crucificado fora da cidade, contado entre os malfeitores.

Porém, saltou para fora do sepulcro, ressuscitado, para mostrar que a sua vida dada em redenção pela humanidade faz germinar em todos nós a vida eterna, a vida em abundância. Por isso, Ele subiu aos céus, mas encarregou os discípulos, a todos nós, de levar a Boa Nova para fora das fronteiras de Israel, a todo o mundo, e fora do limite temporal duma época, mas todos os dias até ao fim dos séculos. Ele venceu o mundo e com Ele venceremos!

2021.06.06 – Louro de Carvalho

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