Fernando
Medina, presidente da Câmara de Lisboa (CML), na apresentação dos resultados da auditoria interna que mandou fazer aos
procedimentos adotados em manifestações, e cujas conclusões remeteu ao Ministério
Público (MP), revelou que, desde que a câmara assumiu a
competência de ser informada de protestos, em 2011, houve 180 manifestações
junto a embaixadas, tendo a autarquia enviado
para embaixadas dados pessoais de
manifestantes em 52 protestos que ocorreram entre 2018 e 2021, num total de 58
manifestações ocorridas.
Segundo o
autarca, fez-se o levantamento das manifestações comunicadas à CML, entre 2012
e 2021, tendo sido verificado 7.045 manifestações. Desde que a CML assumiu a
competência que era, no caso das capitais de distrito, dos extintos governos
civis, houve 180 manifestações junto a embaixadas, 122 manifestações antes da
entrada em vigor do RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) e 58 depois. Destas 58, foram considerados como tendo
sido enviados dados pessoais em 52 dos processos.
Medina adiantou
que, graças à auditoria, se identificou alguma documentação em suporte em
papel, relativa a 2012 e anos seguintes, que contém dados pessoais de promotores
de manifestações, mas que serão arquivados, pois já decorreu o prazo legal para
a sua manutenção.
O presidente
da CML – que, primeiro, dera luz verde a um comunicado da câmara a dar conta de
que os procedimentos se estribavam na lei e, depois, fez pública declaração de
sua responsabilidade política pedindo desculpas, pois nada disto devia ter
acontecido – reiterou que “foi uma prática inadequada que não devia ter
acontecido” e acrescentou que “levou a um sentimento de insegurança de pessoas
que já se manifestaram nesse sentido”, como os três ativistas opositores de Putin.
Disse-o em conferência de imprensa, na tarde deste dia 18, em Lisboa,
porfiando:
“A CML valoriza a gravidade daquilo que se
sucedeu. Nunca omitimos, escondemos. E assumimos desde o início duas
responsabilidades: apurámos desde o início o que se tinha passado e porquê;
adotar as medidas para que tal não voltasse a acontecer. O direito à manifestação
deve ser consagrado a todos.”.
A auditoria
abrangeu o período entre 2011 e 2021, apanhando um mandato e meio de António
Costa como presidente da CML, já que foi em 2011 que os governos civis foram
extintos e a competência de receber as comunicações prévias sobre manifestações
transitou para as câmaras municipais. Nenhuma norma da lei, considerada
obsoleta, obriga governos civis ou as câmaras a enviar informações para as
entidades visadas pelos protestos, nem sequer para a PSP, pelo que os governos
civis e as câmaras procediam e procedem conforme o seu entendimento.
Na verdade, o Decreto-Lei
n.º 406/74, de 29 de agosto (com valor de lei, pois foi aprovado em Conselho de Estado, então o órgão
legislativo), estabelece
no seu art.º 2.º que “as pessoas ou
entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles
em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a
antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o
presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não
na capital do distrito” (n.º 1) e que “o aviso deverá ser assinado por três dos
promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou,
tratando-se de associações, pelas respetivas direções” (n.º 2). A entidade que recebe tal aviso deve, supostamente,
articular a informação, na medida do necessário, com as forças de segurança, às
quais incumbe observar o que estipula o n.º 1 do art.º 6.º: “as autoridades poderão, se tal for
indispensável ao bom ordenamento do trânsito de pessoas e de veículos nas vias
públicas, alterar os trajetos programados ou determinar que os desfiles ou
cortejos se façam só por uma das metades das faixas de rodagem”. Tal
alteração “será dada por escrito aos
promotores”, como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo, sendo normal que tal
comunicação seja dada pela entidade que recebeu o aviso de manifestação e não por
outra. E o art.º 14.º estipula que “ das decisões
das autoridades tomadas com violação do disposto neste diploma cabe recurso
para os tribunais ordinários, a interpor no prazo de quinze dias, a contar da
data da decisão impugnada” (n.º 1) e que “o recurso só poderá ser interposto pelos
promotores” (n.º 2).
Não
obstante, governos civis houve que promoveram ou, pelo menos, acolheram a
prática de comunicação dos dados dos promotores de manifestações às forças de
segurança e a embaixadas, prática seguida, após o ano de 2011, por câmaras das
sedes de distrito. Não percebo porque só agora se levanta a questão e apenas na
CML, a não ser por chicana pré-eleitoral da parte de quem, não tendo
alternativa consolidada, se substitui aos interessados na defesa dos direitos
de manifestação inteiramente legítimos. Talvez devessem, antes, promover o
patrocínio jurídico para que os ofendidos pudessem atempadamente recorrer aos
tribunais, até 15 dias após o conhecimento do caso. Diga-se, porém, desde já,
que a comunicação de dados pessoais a entidades estrangeiras sobre oposições
aos respetivos regimes é a todos os títulos incongruente com a propalada defesa
dos direitos fundamentais.
Depois de o
“Observador” e o “Expresso” terem revelado o caso Russiagate,
foram sendo avançadas outras informações. Em 2019, a CML também comunicou
detalhes de manifestação pró-Palestina à embaixada de Israel. E as
representações diplomáticas da China e da Venezuela também foram informadas de
manifestações.
Como
consequências, regista-se, a nível político, a censura social generalizada, a
exigência do pedido e demissão do autarca lisboeta por parte do dito candidato
mais forte da oposição, as palavras de desconforto do Presidente da República
sobre a gravidade do caso e a remessa do caso para mero procedimento
administrativo por parte de António Costa, mas com a promessa de alteração da
lei; e, a nível administrativo e organizativo, a próxima exoneração do
responsável pela proteção de dados da autarquia, o envio das conclusões da auditoria
interna para o Ministério Público (MP), a extinção do gabinete de apoio
à presidência, a delegação na Polícia Municipal das competências sobre a
informação de manifestações e a promoção duma análise externa da robustez e
criticidade do sistema de proteção de dados da Câmara.
A Polícia
Municipal limitará a partilha de informação
sobre os promotores de qualquer evento, não apenas manifestações, à PSP e ao
Ministério da Administração Interna. A “extinção do gabinete de apoio à
presidência” por onde passavam os procedimentos referentes aos avisos de
manifestações, dará lugar à criação da Divisão de Expediente. Passará a existir
uma relação mais próxima com a Amnistia Internacional e a “CML contactará
individualmente com cada cidadão, prestando o apoio necessário à realização
desta avaliação, restabelecendo a confiança de todos na efetivação em segurança
dos mais amplos direitos assegurados pela Constituição”.
E Fernando Medina também solicitou à
secretária-geral do Sistema de Segurança Interna a realização de avaliação de
segurança a todos os cidadãos – que assim o pretendam – cujos dados foram enviados
a embaixadas estrangeiras, explicitando:
“A
Câmara de Lisboa contactará cada cidadão, prestando o apoio necessário à
realização desta avaliação, restabelecendo a confiança de todos na efetivação,
em segurança, dos mais amplos direitos assegurados pela Constituição da
República Portuguesa”.
O presidente da CML recordou que o dossiê
das manifestações passou do governo civil para autarquia em 2011 e que, em
2013, o município, então liderado por António Costa, mandou alterar
procedimentos que acabaram por ser reiteradamente desrespeitado pelos serviços.
Fernando Medina, no cargo desde 2015,
afirmou que, após a consulta do acervo do extinto Governo Civil de Lisboa, foi
possível concluir que a prática quanto ao envio de dados sobre manifestações
não foi a mesma ao longo tempo. Contudo, em diferentes situações, o Governo
Civil de Lisboa (que até
2011 recebia as intenções de realização de manifestações, uma competência
transferida para os municípios) fez essa comunicação a entidades externas, inclusive a embaixadas.
Em alguns casos foi transmitido o
nome do promotor, mas noutras seguiu mesmo uma cópia na íntegra do aviso
recebido, que podia conter mais dados sobre a pessoa em causa, explicou.
Com a passagem da competência para o
município, foi iniciado um procedimento para lidar com a comunicação de
manifestações e a autarquia “seguiu de
perto aquilo que vinha sendo feito na matéria ao nível dos governos civis”,
tratada, no âmbito da legislação em vigor, no contexto do expediente
administrativo. E, em 2013, o então presidente da autarquia, António Costa,
atual Primeiro-Ministro, emitiu um despacho (ainda em vigor, já que é o último sobre o tema) para alterar a prática, dando “ordem
de mudança de procedimento no sentido de só serem enviados dados à Polícia de
Segurança Pública e ao Ministério da Administração Interna”. Contudo, segundo
Medina, tal despacho foi alvo de “reiterados incumprimentos” ao longo dos anos,
ou seja, ocorreu “uma prática
relativamente homogénea, mesmo quando houve instrução do presidente da câmara
para alteração desse procedimento”.
Em 2018, entrou em vigor o novo RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de
Dados), mas, no “esforço
substancial de adaptação” do município, o procedimento de tramitação de avisos
de manifestações “não sofreu adaptações”.
O autarca lisboeta afirmou que, mesmo
“não levantando problemas críticos em muitos casos, foi uma prática inadequada,
que não devia ter acontecido, que levou um conjunto de sentimentos de
insegurança de pessoas que já expressaram publicamente esse sentimento e que se
exigem que se tomem medidas”.
À asserção do presidente da CML de
que a autarquia “seguiu de perto” a prática dos governos civis no atinente à
comunicação de dados de organizadores de manifestações, o último governador
civil de Lisboa, António Galamba, garante que “não há nada no passado do
Governo Civil que justifique qualquer ação atual” da
câmara municipal.
Todavia, o presidente do município
explicava que, após consulta ao acervo do extinto Governo Civil de Lisboa, que
geria estes procedimentos, se concluiu que a prática relativa ao envio de dados
sobre manifestações variou ao longo tempo, mas que, em algumas situações, foi
seguida a mesma prática deste organismo. É caso para questionar como é que o
ora oponente a Medina tem um conhecimento tão fresco da matéria que era tratada
rotineiramente.
Galamba refere que a informação
divulgada por Medina confirma que o procedimento do Governo Civil, em 2011, era
diferente: não eram enviadas moradas, nem contactos telefónicos. Não obstante,
eram enviados os dados essenciais de identificação, digo eu. E repare-se no
seguinte para se perceber o cerne do problema: No período em que exerceu o
cargo, de 2009 a 2011, a informação que o Governo Civil de Lisboa enviava às
entidades, inclusive embaixadas, porque “têm uma proteção legal especial
em Portugal” (sublinho), indicava “quem era o promotor, só com a denominação, e a informação do dia
em que ia acontecer o evento e o período horário em que ele aconteceria, nada
mais”.
E Galamba alega que, nessa altura, o RGPD não estava em vigor, esquecendo que
já estava em vigor a Constituição e as leis e que o RGPD é um “novo” regulamento.
Em síntese, a auditoria preliminar
concluiu que, desde 2012, foram comunicadas à CML 7.045 manifestações e
foram “remetidas 180 comunicações de realização de manifestação junto de
embaixadas, 122 anteriores à entrada em vigor do RGPD e 58 após. Depois da
entrada em vigor do RGPD, ou seja, para o período de maio de 2018 a maio de
2021, foram considerados como tendo sido enviados dados pessoais em 52 dos
processos”.
A autarquia fará agora uma auditoria
alargada, que não se sabe quando estará disponível, para apurar outros dados. Entretanto,
é de reter que Medina frisou a assunção das
responsabilidades pela câmara no sentido de apurar a verdade e adotar medidas
para que tal não volte a acontecer. Sublinhou que o “direito à manifestação é
um direito consagrado na Constituição” e que “todos devem manifestar-se de
forma livre sem medo”. E disse que, em termos genéricos, se procedeu de acordo
com o que vinha sendo feito pelos governos civis e que a prática quanto às
manifestações não foi a mesma ao longo do tempo. Por exemplo, em 2012 era
enviado o nome do primeiro proponente, anteriormente era o aviso da
manifestação. Em 2013, passaram a
ser enviados dados à PSP e ao Ministério da Administração Interna. A partir de
2018, a entrada em vigor do regulamento de proteção de dados obrigava a outros
procedimentos, que não foram seguidos no essencial.
***
Esta questão levou o PSD e o CDS a apresentar e a ver aprovados na
Assembleia da República requerimentos para ouvir sobre o caso o presidente da
autarquia, o socialista Fernando Medina, e o ministro dos Negócios
Estrangeiros, Augusto Santos Silva.
A divulgação da partilha por parte da autarquia de dados dos
organizadores do protesto contra o regime de Moscovo a propósito da detenção do
ativista Alexei Navalny, em janeiro, levou também o SIS (Serviço de
Informações e Segurança) a uma avaliação de ameaça a estas pessoas. Dependendo
da conclusão, o SIS pode solicitar à PSP que acione medidas de proteção pessoal
adequadas para estes cidadãos – um russo e dois com dupla nacionalidade
portuguesa e russa.
Recorde-se que a primeira intervenção pública pessoal de Fernando
Medina sobre o tema ocorreu a 10 de junho e foi para pedir desculpa pelo “erro lamentável da Câmara Municipal de Lisboa”,
dito “um procedimento que não podia, nem
devia ter sido aplicado em casos como este, nos quais pode ser identificado
risco para os manifestantes”.
***
Dê por onde der, o caso, que é múltiplo, configura uma prática
denotadora do servilismo da diplomacia portuguesa a interesses de estrangeiros (“têm uma proteção legal especial em Portugal”), sejam os de EUA, URSS, Angola,
Israel, China, sejam os de Espanha, França, Itália, Brasil, Rússia, etc. Não é
nisto que é brilhante a nossa diplomacia!
Teve o país tantos presidentes de câmara, tantos governadores civis, tantos
ministros dos Negócios Estrangeiros, tantos ministros da Administração Interna,
tantos primeiros-ministros… E havia de sobrar para Medina, Galamba, Santos
Silva, Cabrita (vá lá… deste não falam agora), Costa!
2021.06.18
– Louro de Carvalho
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