domingo, 28 de fevereiro de 2021

Há 52 anos, Portugal sentiu o maior sismo desde 1755

 

Na madrugada de 28 de fevereiro de 1969, Portugal Continental foi abalado pelo maior terramoto sentido na Europa depois de 1755 (Lisboa), com a morte de 13 pessoas (duas em consequência direta do abalo e 11 por consequência indireta, algumas acometidas de síncope), vários feridos e queda de casas.

A população ficou assustada e muitas pessoas passaram a noite fora de casa apesar da chuva gelada. Foram 4 minutos de ansiedade – entre as 03:41 e as 03:45 – em que grande parte do país, em pânico, saiu para a rua meio despida ou em pijama. “Uma eternidade em breves segundos: Levará muito tempo a esquecer o pavor da última madrugada de fevereiro” – era um título de 1.ª página no DN do dia seguinte. E daquela madrugada dramática escrevia o JN:

Com a terra tremiam os homens e as mulheres que a povoam. Porque ontem só duas espécies de pessoas não tremeram, de novo os inconscientes e os mentirosos.”.

O epicentro esteve no Oceano Atlântico, 180 Km a sudoeste do Cabo de São Vicente (Vila do Bispo), onde navegava o “Manuel Vicente”, navio misto de cargas e passageiros que fazia a ligação entre Portugal e Angola, vindo depois o comandante da embarcação a descrever o local “como o borbulhar de uma panela de água a ferver”.

O Sul, mormente o Algarve, e a região de Lisboa foram as zonas mais atingidas pelo sismo de 7,9 na escala de Richter (embora com dados variáveis, como se verá a seguir), que se fez sentir também em Espanha e Marrocos. Foi o último grande sismo sentido por cá e o mais importante do século XX. O comunicado do SMN (Serviço Meteorológico Nacional), que antecedeu o IPM (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), emitido a 28 de fevereiro de 1969, referia: 

Foi registado um sismo nas estações sismográficas de Coimbra e Lisboa, com início às 3h41m 41,5s [e] 3h41m 20,2s, respetivamente, e com o epicentro a cerca de 230 km a SW de Lisboa. A magnitude do sismo atribuída é de 7,3 na escala de Richter, tendo sido sentido com intensidade VI-VII da escala Mercalli modificada (MM56) em Lisboa e noutras localidades do continente.”.

O epicentro foi posteriormente determinado como 36.01º N, 10.57º W e foram-lhe atribuídas as magnitudes Ms=7.9 e Mw=8.0 pelos dados da RSI (rede sísmica internacional). Em Lisboa houve forte réplica com início às 5h 28m com intensidade III da escala MM56.

O sismo provocou alarme e pânico na população, corte nas telecomunicações e no fornecimento de energia elétrica; foi sentido até 1 300 km de distância do epicentro, vg em Bordéus e nas Canárias; e teve várias réplicas, tendo a estação sísmica da WWSSN (World Wide Standard Seismographic Network) da Serra do Pilar (Porto) registado 47 réplicas (de 28 de fevereiro a 24 de março).

Também em Marrocos foram reportadas algumas vítimas. Porém, a maior intensidade (VIII) foi observada no Algarve, sendo atribuída a Lisboa uma intensidade VI.  

A nível dos efeitos, sabe-se que foram consideráveis, no Algarve, os estragos nas construções, sobretudo em Vila do Bispo, Bensafrim, Barão de São João, Portimão e Castro Marim, com fendilhação de paredes, chaminés e tetos, deslocamento de telhas, quebra de vidros, etc. Em Bensafrim caíram mais de 20 casas. Em Vila do Bispo e em todas as povoações do concelho, os prejuízos foram avultados, com muitas casas derrubadas e outras muito danificadas. Em Lagos, ficaram danificados muitos edifícios e as rachas obrigaram ao escoramento de alguns. O edifício da Câmara Municipal ficou danificado, com o piso superior fendido e em risco de derrocada. Terão 400 casas sido derrubadas ou arruinadas. Pessoas amedrontadas da zona de Santo Amaro puseram-se a salvo com os seus meios de transporte. Na cidade lamentou-se a perda de uma vida devido a desabamento duma parede da casa degradada onde vivia. Várias réplicas se seguiram, sobressaltando a população.

Em Lisboa caíram muitas chaminés de edifícios e paredes pouco consolidadas, que destruíram veículos estacionados. Parte da cidade ficou sem energia e comunicações telefónicas. Foram reportados 58 feridos ligeiros. Um acelerómetro instalado na Ponte 25 de Abril obteve um registo sísmico completo da vibração da ponte.

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Como é natural, muitas pessoas acotovelavam-se nas ruas, de rosto marcado pelo medo, em trajes reduzidos, muitas tal como se encontravam deitadas, pois debandaram de casa com receio de desabamento, sem se preocuparem em agarrar um agasalho. Tremia-se de frio, a humidade era muita e caía uma chuva miudinha que penetrava os ossos e resfriava todo o corpo. Porém, muitos nem davam conta, mercê da angústia que os invadira. O pânico voltou às 5:28, quando se sentiu uma réplica de pequena intensidade, pois acreditavam que este abalo seria de grande intensidade. E muitos pernoitaram na rua, nos passeios, em bancos de jardim, embrulhados em cobertores.

Muitos diziam que o céu tomara coloração rubra, a lembrar uma aurora boreal, e fez, depois raiar um rápido, mas intenso, clarão. O dia amanheceu com poucas nuvens no céu, com o sol a brilhar, mas com muita destruição: carros foram soterrados por paredes que caíram; os hospitais de São José (parte teve de ser evacuada) e o Curry Cabral também ficaram danificados.

Não havia ainda telemóveis. Fizeram-se filas de gente de roupão e camisa de dormir junto às cabines telefónicas: todos queriam saber dos seus, mas as comunicações não estavam fáceis, com falta de rede, aparelhos destruídos, linhas impedidas. Os muitos que não conseguiam ligação ligavam para o número das avarias (o 13), na Rua da Trindade, em Lisboa, onde estavam de serviço nessa noite 25 telefonistas, que atendiam entre nervos e lágrimas, possibilitando que outras pessoas expandissem as mesmas lágrimas e nervos, o que é humano.

O Hospital de Castro Marim, no Algarve, ficou praticamente destruído. Em Casseia, várias casas vieram abaixo e a igreja, reconstruída após o terramoto de 1755, sofreu danos consideráveis. Em Boliqueime, uma criança foi salva pelos avós, que a retiraram do berço onde estava a sufocar por causa das pedras e entulho. Em Lagos, próximo do quartel, uma família salvou-se por um triz: mal puseram os pés na rua, a casa onde habitava desabou em ficou em ruínas.

A 2 de março o DN mostrava o país a refazer-se da emoção, com Marcello Caetano a visitar o Hospital de São José, que sofrera vários danos, e onde quase mil pessoas já tinham tido alta.

Nos dias seguintes, foi conhecido o testemunho do comandante do “Manuel Vicente”, o navio que navegava no epicentro do sismo e a que se aludiu acima. O comandante Oliveira Manata estava recolhido. Às 1:43 locais, percebeu que o navio se comportava de modo estranho: arfava. Depois, deixou de arfar e começou a vibrar com muita força. O comandante vestiu o roupão e foi ver o que se passava. Pensou que a embarcação tinha perdido a hélice ou que uma das máquinas tivesse gripado e a outra estivesse a arrastar, mas o chefe de máquinas já tinha feito essa verificação. O barco era intensamente abalado. E, segundo o DN, o comandante contou:

O barco vinha a navegar com vaga moderada. Na altura do abalo, a vaga desapareceu e via-se o mar, de um lado e de outro, borbulhar como a água de uma panela a ferver. Logo que parou a vibração, vieram duas vagas grandes; o navio subiu uma, desceu a outra e passou-a também. Depois tudo serenou.”.

Os passageiros, pensando que o navio encalhara, não ficaram muito alarmados, mas vieram para os corredores tal como estavam.

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Hoje, compreende-se melhor a fronteira a sul de Portugal, que separa a placa Euroasiática da Africana. É constituída por uma rede de falhas ativas com grande potencial para gerar sismos e tsunamis. Percebe-se melhor a propagação das ondas sísmicas, a atenuação da energia a partir das falhas, a forma como os solos amplificam ou atenuam a energia das ondas sísmicas e como os edifícios se comportam sob o efeito dessas ondas. Mas ainda há muito para aprender. Por isso, a propósito do cinquentenário do sismo, foi lançado, em 2019, um concurso a nível escolar (para escolas básicas ou secundárias) instando à participação através da resposta a questionário online, com vista a um trabalho de investigação que ajudasse a caraterizar a perigosidade sísmica de Portugal e a prepararmo-nos para sismos futuros.

Os alunos deviam encontrar um adulto (avô, tio-avô, vizinho, etc.) que tivesse sentido o sismo e se lembrasse tão bem quanto possível do sismo. Em conjunto com o adulto que sentiu o sismo, o aluno preencheria o questionário e identificaria a escola que frequentava. Devia ser preenchido um inquérito por cada relato disponível, podendo o aluno, por isso, preencher mais que um inquérito, um por cada relato/testemunha. O desafio proporcionou recolha de informação científica importante, deu prémios a quem submeteu mais de 100 respostas e estimulou o diálogo intergeracional. Com efeito, ao interagir com um adulto que tenha vivido o sismo, o aluno escutava relato de vivência dum sismo forte na 1.ª pessoa, o que o estimularia a aprender mais sobre sismologia e a preparar-se para caso de sismo, e ficava a saber como os inquéritos sísmicos contribuem para a determinação dos mapas de intensidade.   

Por outro lado, após o sismo de 1969, a rede sísmica nacional melhorou significativamente.

A sismologia instrumental iniciou-se por cá no início do século XX e sofreu, durante 7 décadas, considerável evolução impulsionada pela ocorrência de sismos: a 23 de abril de 1909, no sismo de Benavente, a rede sísmica tinha só um “pêndulo horizontal de Milne” no Observatório da Universidade de Coimbra; em 1910, o Instituto Geofísico da Universidade de Lisboa (atual IDL) instalou três sismoscópios Agamemnon nas Penhas Douradas, Évora e Lagos e um sismómetro vertical Mainka em Lisboa. Em 1913 e 1914, foram adquiridos 3 sismógrafos Wiechert de três componentes, mas instalados apenas em 1919. Coimbra recebeu equipamentos similares entre 1915 e 1926. Os primeiros resultados de análise de sismos foram publicados pelo atual IDL em 1920, tendo a gestão da rede passado para o SMN (atual IPMA) a partir de 1946, que instalou novos equipamentos sismológicos nos três institutos geofísicos: em Coimbra, um sismógrafo eletrónico de curto período; e, no Porto, um sismógrafo Sprengnether idêntico ao instalado em Lisboa. Em 1963, houve novo progresso com a instalação duma estação WWSSN no Porto.

Em 1975, o SMN instalou uma estação sísmica de curto período em Faro e outra em Manteigas. Com a formação do INMG (Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica) foram instaladas 5 estações sismográficas (Montachique, Moncorvo, Portalegre, Montemor-o-Novo e Monte Figo-Faro), algumas das quais já com capacidade telemétrica analógica. Apesar da melhoria na sua composição, a rede sismográfica do Continente, que funcionou até meados da década de 1990, não mostrou grande eficácia em termos de deteção. Por isso, para ultrapassar o problema na zona Sul, onde há maior sismicidade, em dezembro de 1995 foi instalada no Algarve, no âmbito dum projeto internacional financiado pela UE, uma rede regional que se tornou operacional em janeiro de 1996 e permitiu melhorar a capacidade de deteção e estudo dos eventos sísmicos, em particular no Algarve e na região Atlântica adjacente, tendo estado em operação até dezembro de 2000.

Em termos de rede digital, em 1994, o então Instituto de Meteorologia iniciou um projeto de aquisição e instalação duma rede digital a instalar no Continente e no arquipélago da Madeira (depois, visou instalação similar no arquipélago dos Açores) que ficaria concluído em 1998.

O desenvolvimento seguinte ocorreu no período 2006-2009, com o processo de modernização da rede sísmica nacional, e compreendeu a instalação de 22 estações sísmicas de banda larga, com registo acelerométrico incluído. Este dispositivo tornou possível o registo de todo o tipo de eventos sísmicos, desde o nível do microssismo ao dos movimentos fortes associados aos sismos próximos de maior magnitude e aos dos de magnitude superior a 5 que ocorram em qualquer parte do globo. Estes equipamentos permitem a transferência da informação sísmica em tempo quase real (4-10 segundos de latência) para o centro operacional, onde o sistema de processamento que permite o acompanhamento da atividade sísmica em tempo quase real e a disseminação de informação em tempo útil para atuação dos serviços de proteção civil (ex: avisos rápidos com informação básica da fonte sísmica; estimativas de impacto macrossísmico). Além da componente operacional, a rede contribui para a obtenção de dados de elevada qualidade, essenciais para estudos vários, incluindo a caraterização da perigosidade sísmica.

A melhoria tem agora nova fase, com apoio do POSEUR (Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos) (PORTUGAL 2020), para o melhoramento da rede sísmica do Centro e Sul de Portugal Continental, com modernização de estações sísmicas de banda larga e instalação de novas estações acelerométricas, sendo este desenvolvimento orientado para o alerta precoce de sismos e tsunamis. Paralelamente, outras entidades, que não o ex-IM (atual IPMA), instalaram equipamentos sísmicos para vários fins. O IST (Instituto Superior Técnico) instalou, em várias etapas, a rede acelerométrica de âmbito nacional e a rede digital telemétrica de banda larga no Vale Inferior do Tejo. As Universidades de Lisboa, Évora e Coimbra instalaram e operam estações de banda larga e, com a coordenação entre várias entidades, foi possível integrar no IPMA a informação, em tempo quase real, das várias estações sísmicas a operar em Portugal.

Na componente dos tsunamis, o IPMA assegura, em cooperação com os países do Atlântico Nordeste e Mediterrâneo e sob a coordenação da COI (Comissão Oceanográfica Intergovernamental), a operação do sistema de alerta de tsunamis, tendo inaugurado, em novembro de 2017, o Centro Nacional de Alerta de Tsunamis, simultaneamente Centro Regional de Alerta para os países do Nordeste Atlântico. O Centro de Alerta está orientado para a deteção e monitorização de tsunamis de origem sísmica e tem por base uma sequência de operações que vão desde a obtenção e análise de dados após ocorrência dum terramoto até à emissão de mensagens. O sistema rem três componentes principais: deteção sísmica (assegurada pela rede sísmica de banda larga), deteção e análise do tsunami (assegurada com recurso à rede maregráfica, em Portugal operada pelo Instituto Hidrográfico, Direção Geral do território e pelo IPMA) e envio de mensagens.

As mensagens de alerta são enviadas para os pontos focais designados por cada Estado-membro da COI, sendo particularmente orientadas para o sistema de proteção civil de cada país.

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Este apontamento, respigado de duas longas reportagens plasmadas no DN em fevereiro de 2019, avivou-me a memória do sismo. Estava no Seminário de Lamego, a frequentar o então dito 2.º ano de Filosofia. Acordei de noite com o barulho. Como outros, mantive-me no quarto, embora a pé. No dia seguinte, soube que, enquanto um dos colegas se pôs a comer da merenda que tinha no quarto, alguns saíram para o campo de futebol, por ser terreno aberto.

E notou-se fendilhação sobretudo na plataforma granítica que sustém o robusto edifício do Seminário. Estragos houve na zona, mas sem danos pessoais. A lição da efemeridade da vida!

2021.02.28 – Louro de Carvalho

sábado, 27 de fevereiro de 2021

“Fátima tem de ser a expressão de uma solidária salvação”

 

É asserção perentória do passado dia 12, no podcast #fatimanoseculoXXI de fevereiro, de Eugénio da Fonseca, rosto do voluntariado e da Cáritas Portuguesa ao longo de mais de 20 anos.

Este professor, licenciado em Ciências Religiosas pela Universidade Católica Portuguesa, que tem dedicado a vida ao cuidado do outro, falou da matriz identitária de Fátima, da pastoral que dali emana e dos desafios que a pandemia de covid-19 lança ao Santuário e a toda a Igreja.

Na verdade, como em qualquer instituição de solidariedade, dada a não presença física de peregrinos, escasseiam drasticamente os donativos como a venda de objetos, incluindo livros, e reduzem-se os eventos sociais, académicos e culturais. Não obstante, cresce o número das pessoas que precisam de apoio material e moral: umas, porque perderam os rendimentos provenientes do emprego ou do trabalho por conta própria; e outras, porque as restrições à circulação e, sobretudo, os longos períodos de confinamento lhes dão cabo da saúde física e mental. E o Santuário tem de continuar a sua missão, zelando a promoção da divulgação e interiorização da Mensagem e inventando novas formas de acolhimento e apoio.

O santuário tem de permanecer como sinal peculiar da fé simples e humilde dos crentes, que aqui encontram a dimensão basilar da sua existência que acredita e experimentam de maneira profunda a proximidade de Deus, a ternura da Virgem Maria e a companhia de alguns Santos, uma experiência de verdadeira espiritualidade a valorizar cada vez mais. Ao mesmo tempo, exprime “uma oportunidade insubstituível para a evangelização neste nosso tempo” e constitui um verdadeiro refúgio para os crentes se redescobrirem a si mesmos e reencontrarem a força necessária para a conversão. Cria oportunidades de os fiéis receberem apoio ao seu caminho ordinário na paróquia e na comunidade cristã – osmose entre o peregrino no Santuário e a vida de todos os dias que é “valiosa ajuda para a pastoral, porque permite revigorar o compromisso de evangelização mediante um testemunho mais convicto”.

E o Santuário continua, pelos meios ao seu alcance, a ser o lugar sagrado onde a proclamação da Palavra de Deus, a celebração dos Sacramentos, em particular da Reconciliação e da Eucaristia, e o testemunho da caridade exprimem o compromisso da Igreja para com a evangelização, caraterizando-se como “lugar genuíno de evangelização, onde a partir do primeiro anúncio até à celebração dos mistérios sagrados se torna manifesto o poder da ação com a qual a misericórdia de Deus age na vida das pessoas”. E continua a guiar as pessoas, pelos meios telemáticos, com a “pedagogia de evangelização” rumo a um compromisso cada vez mais responsável na formação cristã e no testemunho de caridade e sempre atento espiritualmente a doentes, a pessoas com deficiências e, sobretudo, aos pobres, marginalizados, refugiados e migrantes, atendendo a quem se lhe dirige mesmo em tempo de emergência (cf Sanctuarium in Ecclesia, preâmbulo).

Diz Eugénio da Fonseca, à luz destas ideias do Papa Francisco, que o Santuário “cuida da salvação espiritual” da pessoa, mas também cuida da salvação da pessoa “como um todo”, porque a mensagem de que se faz anunciador aponta para uma “solidariedade salvífica”. E releva que é intencional a apropriação da expressão “Fátima tem de ser a expressão de uma solidária salvação” pedida de empréstimo a Dom Nuno Almeida, Bispo auxiliar de Braga, que a proferiu numa Peregrinação Internacional Aniversária.

E o ex-presidente da Cáritas lembra, reportando-se ao dinamismo do Santuário por todos os homens e pelo homem todo, lembra:

Desse grande altar do mundo têm emanado grandes apelos para que na pastoral das comunidades, aonde regressam os peregrinos depois de estarem em Fátima, possam ser desenvolvidos gestos concretos”.

E esclarece que a asserção “Fátima tem de ser a expressão de uma solidária salvação” é uma expressão identitária de Fátima e que, “quando se fala em salvação, a perspetiva é de que seja do homem todo e de todos os homens”, nos planos “espiritual e material”.

Confessa-se testemunha, enquanto presidente da Cáritas, “das ajudas e das causas que o Santuário abraçou como suas” dentro e fora do país. E, sublinhando as diferentes dimensões da pastoral da Instituição, seja litúrgica, catequética ou social, imagina o que é a ação de bem-fazer do Santuário. E reforça a nota referindo:

O que me parece é que essa ação, assim como a luz que se mete em cima dos telhados para que se glorifiquem as obras e se louve a Deus, também através de Maria, deveria ser mais explicitada, porque sei que são muitas e variadas as ações concretas que o Santuário desenvolve e que não são do conhecimento público”.

Também concordo, já que esta ação solidaria do Santuário de Fátima não é assaz conhecida. Bem ao contrário, muita da gente responsável pela formação da opinião pública remete Fátima para o “pagamento de promessas”, para a religiosidade e para a acumulação de capitais.   

Por isso, Eugénio da Fonseca elege, em sintonia com o Papa, como desafio para o segundo século de Fátima uma “nova dinâmica da pastoral social” e uma afirmação do Santuário a partir de três linhas de ação: o “acolhimento”, que deve ser cuidado, nomeadamente no quadro da celebração do sacramento da Reconciliação;  na reposição do “sentido da peregrinação”; e despertando o desejo do caminho e estimulando ao “diálogo inter-religioso”.

Nestes termos, considera bem que, neste tempo de pandemia, o Santuário tenha proposto “uma peregrinação espiritual”, mas, porque “o ser humano precisa de se pôr a caminho”, insiste em que, mal termine a pandemia, “há que retomar ações para levar os peregrinos a Fátima, ações que nos possam fazer refletir sobre o sentido da vida e da nossa existência”. E sublinha uma dimensão específica reservando-lhe “um papel-chave” do Santuário:

O Santuário de Fátima tem tido esta capacidade de ser um lugar de encontro de várias religiões. A seguir a esta pandemia estou certo de que a necessidade deste diálogo vai ser ainda mais premente. Creio que as religiões vão ter um papel fundamental na nova ordem mundial, no diálogo entre países e nações.”.

Por outro lado, assume que “é fundamental criar uma dinâmica de pastoral social”, despertando uma “consciência de comunidade no sentido mais alargado”. E explana destacando esta “profecia” de Fátima, que é “sempre atual”:

O Santuário tem um grande desafio pela frente: ser esperança no tempo presente e ter a capacidade, através da narrativa que brota dos diferentes altares de Fátima, de afirmar a presença de um Deus que nos ama e que nos há de salvar, a cada um de nós e a nós todos”.

Eugénio da Fonseca fala dos protagonistas de Fátima – os Santos Pastorinhos – e da sua “simplicidade, que nos faz parecer mesmo irmãos, de facto”, do “cuidado e da disponibilidade com que partilhavam o pouco que tinham” e do modo como rezavam. “A oração é uma das maiores formas de partilha, e eles tiveram essa graça do dom do Céu, aonde iam buscar a sua força”, refere exemplificando com o tempo em que estiveram detidos e convocaram os que, como eles, estavam privados de liberdade para rezarem e converterem os corações. E adianta:

A perfeição total está-nos garantida na bem-aventurança eterna, mas temos sempre esta possibilidade de conversão e, sobretudo, de acreditar que o ser humano tem potencial para se redimir, e que essa redenção é-nos dada pela graça de Deus através de cada um de nós”.

E, frisando que “não é uma inevitabilidade o mundo viver em plena desgraça, em caminhos que põem obstáculos à salvação de muitos, vinca:

O que importa é que cada um de nós,  com a nossa palavra e exemplo, seja capaz de ser redentor, à imagem de Cristo. Isto faz-se amando e amando o próximo como os Pastorinhos amavam.”.

E, falando da virtualidade da pandemia e da posição da Igreja, que se tem feito próxima ao jeito do bom samaritano, referido na “Fratelli Tutti”, a nova Encíclica do Papa Francisco, observa:

A História encontra-se numa encruzilhada e nós somos convocados a refletir sobre a necessidade de uma mudança de rumo. O que eu vejo nesta pandemia muitas vezes é uma clara tensão entre o campo político e o da ciência e, francamente, acho que agora estamos no tempo da ciência. É tempo de deixar a ciência falar e não tirar dividendos políticos. E deixe-me dizer-lhe aqui que a Igreja tem tido uma atitude muito correta não enveredando por um campo muito providencialista, mas indo ao encontro das necessidades reais das pessoas.”.

Da nova encíclica diz que que lhe reforçou a esperança da mudança social que o Papa pede”. E enaltece o conceito de “amizade social” que o Santo Padre evoca, pois, na sua ótica, “a amizade social é um termo mais rico do que a cidadania, pois esta amizade é uma etapa de um processo amoroso que todos temos dentro de nós e que somos chamados a desenvolver em ordem a prepararmos esse encontro com Deus”. Por isso, sente que “a Igreja é convidada a falar da amizade social que nos incita a um comportamento: sermos vizinhos uns dos outros”, pois, como diz, “o individualismo para o qual fomos levados por um sistema económico que valoriza o ter, com menosprezo do ser, pode ser combatido por esta proximidade, por esta vizinhança”.

Tomando o ditado da sabedoria popular de que “não se deve pregar a estômagos vazios”, frisa que “o pobre não é pobre porque quer; precisamos de parar de dizer que a pobreza é uma fatalidade” lamenta que muitas vezes estigmatizemos o pobre “quando deveríamos estigmatizar a pobreza”, pois “amar o pobre para que ele compreenda que somos irmãos, porque somos filhos do mesmo Pai, não é uma tarefa fácil, mas tem de ser uma prioridade da Igreja”.

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Por sua vez, o Padre Carlos Cabecinhas, reitor do Santuário de Fátima, na missa dominical do dia 21, em referência ao tempo quaresmal, evocou o “tempo de conversão que nos é oferecido como oportunidade para pôr em ordem a nossa vida, para dar lugar ao que realmente importa, para darmos a Deus o lugar que só a Ele compete no nosso coração”.

Sublinhou que foi no deserto que Deus fez a aliança com o Povo e ali “multiplicou os prodígios em favor dos seus eleitos, saciando a sua sede e fome, guiando os seus passos e dirigindo-lhes a Sua palavra de vida”. Por isso, como observou, “conversão” é “a palavra que melhor sintetiza o sentido da Quaresma porque este é, por excelência, o tempo dela, o tempo para recordar a nossa condição batismal e a constante necessidade de confrontarmos a nossa vida com Cristo e com as Suas palavras de vida”. Mais disse que “a Quaresma é a nossa ida para o deserto, à imitação de Cristo”, e explicitou que é o momento para “dar mais tempo à oração e reavivar a nossa relação com Deus, tantas vezes prejudicada pelo ritmo do nosso dia a dia, tantas vezes afetada pela nossa crónica falta de tempo”.

A pari, o sacerdote alertou para o facto de a Quaresma ser também “o momento oportuno para avaliar a vida à luz de Deus”, e vermos, “à luz da Palavra de Deus, de que forma cuidamos das nossas relações uns com os outros”, ou seja, o momento “para avaliarmos as nossas atitudes e opções, as nossas prioridades e escolhas”. E vincou que, na situação excecional que o mundo agora vive, se torna “ainda mais necessário e urgente este discernimento sobre a nossa vida, esta avaliação das prioridades, este desejo de dar a Deus o lugar que lhe deve pertencer na nossa vida, esta vontade de maior atenção aos outros, sejam aqueles com quem partilhamos o dia a dia, sejam aqueles com quem nos cruzamos”.

Por isso, “a conversão é necessária e urgente”, e para este caminho de conversão “a Igreja não nos propõe atos grandiosos”, mas “meios simples e ao nosso alcance” como a “a oração mais intensa e a escuta mais frequente da Palavra de Deus, as práticas penitenciais, como sinal do nosso desejo de conversão e a atenção aos outros e às suas necessidades”.

E, reportando-se à especificidade deste Santuário, disse que a mensagem de Fátima, “com o seu veemente apelo à conversão, conduz a uma vivência séria e intensa deste tempo quaresmal” – na linha dos santos Pastorinhos que primavam pela oração, renúncia e atenção aos mais pobres – apresentando-nos “uma verdadeira pedagogia para o itinerário de conversão que nos é proposto no tempo quaresmal”.

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Neste tempo de pandemia, face à impossibilidade de os peregrinos se deslocarem fisicamente à Cova da Iria para participar nas celebrações, que se manterão sem assembleia presencial, o Santuário de Fátima oferece durante a Quaresma uma proposta de Via-Sacra a exibir ainda todas as sextas-feiras, às 16 horas. E transmite diariamente três missas – às 11h00, 12h30 e 15h00 – e dois momentos de oração do Terço – às 18h30 e 21h30 –, a partir da Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, numa parceria com a TV Canção Nova Portugal. Estas cinco celebrações podem ser seguidas em www.fatima.pt, através do facebook e canal youtube do Santuário, bem como do MEOKanal, posição 707070.

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E assim vai o Santuário em tempo de confinamento…

2021.02.27 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Do impacto da pandemia na saúde das crianças, adolescentes e jovens

 

Um estudo realizado por uma equipa da Universidade de Coimbra (UC) conclui que a pandemia de covid-19 teve “um significativo impacto negativo na saúde mental dos jovens portugueses, especialmente nos níveis de depressão e de ansiedade”, mas também no aumento da tristeza, medo, raiva e, enfim, descida da felicidade – segundo informação da UC à Lusa.

Este estudo sobre o efeito da pandemia na saúde mental dos jovens integra-se no projeto SMS (“Sucesso, Mente e Saúde”), financiado pelo programa “Portugal Inovação Social” e pelo município da Figueira da Foz, que tem como grande objetivo a promoção da saúde mental e o combate ao estigma social e ao insucesso escolar associados à doença mental.

Trata-se de resultados ainda preliminares, mas indicam que 14% dos adolescentes, com idades compreendidas entre os 13 e os 16 anos e uma média de idades de 14 anos, apresentam “sintomatologia depressiva elevada (acima do percentil 90) durante a pandemia, percentagem superior à encontrada num estudo conduzido pela mesma equipa de investigadores durante a crise financeira portuguesa de 2009-2014, que era de 08%”.

Este estudo longitudinal, liderado por Ana Paula Matos, docente da FPCEUC (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra) com a colaboração de investigadores das universidades Emory, nos Estados Unidos da América, e da Islândia, assinala que o referido aumento de emoções negativas, “como tristeza, medo e raiva, e de sintomas de ansiedade e de uma descida da felicidade”, coloca as raparigas em desvantagem, pois “apresentam níveis de medo, tristeza e raiva significativamente mais elevados do que os rapazes”.

Os investigadores começaram por comparar os níveis de emocionalidade negativa e positiva vivenciados pelos jovens, antes e depois da 1.ª vaga da pandemia, a partir duma amostra constituída por 206 adolescentes a frequentar o 9.º ano de escolaridade (51% raparigas), tendo-se verificado, como se disse, “um aumento significativo da tristeza, do medo e da raiva e uma descida da felicidade”. Posteriormente, na segunda vaga da pandemia em Portugal, em novembro-dezembro de 2020, em que se registou um aumento de casos na população mais jovem, parte da amostra (122 adolescentes) foi reavaliada, vindo a verificar-se “nova subida dos níveis de medo, assim como um aumento significativo de sintomas de ansiedade, comparando os dois momentos da pandemia” (primeira e segunda vagas).

Segundo Ana Paula Matos, docente da FPCEUC e investigadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental, “as raparigas apresentaram níveis significativamente mais elevados do que os rapazes, de medo, tristeza e raiva, quer antes do surto pandémico de covid-19, quer nas duas vagas da pandemia”.

Os especialistas analisaram ainda os fatores de proteção e de risco para o desenvolvimento da depressão, concluindo, segundo Paula Matos, que as competências de autocompaixão e de atenção plena (mindfulness), uma visão mais positiva de si próprio/a e a realização de mais atividades de lazer “são fatores de proteção, isto é, fatores que previnem a depressão” e que, ao invés, “a sintomatologia de ansiedade constitui um fator de risco e um preditor de depressão”.

Ana Paula Matos sustenta que estes resultados “salientam a necessidade de se dotarem os jovens de mecanismos de proteção para a depressão, promovendo competências de autocompaixão e mindfulness e uma perceção mais positiva de si próprio/a”, o que se enquadra no âmbito dos objetivos do projeto SMS, já referido, cujos resultados preliminares indicam uma redução de sintomatologia depressiva e tristeza, bem como um aumento de mecanismos de autorregulação emocional”.

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Já em abril de 2020 Patrícia Branco referia que Boaventura de Sousa Santos instigara a examinar os efeitos da quarentena provocada pela covid-19 em diversos grupos de pessoas vulneráveis ou para quem o isolamento social é muito negativo: mulheres, precários, sem-abrigo, refugiados, idosos, presos. Porém, salientava uma vulnerabilidade que merece especial atenção, a das crianças e dos jovens, pois as relações com os outros grupos apresentados são múltiplas, sendo que dessas relações depende o maior ou menor impacto que a covid-19 poderá ter sobre as crianças e os jovens. Apesar de o número de contágios entre crianças e jovens ser inferior e com efeitos ligeiros em relação ao que acontece noutros contextos epidémicos, as crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos sociais e económicos do confinamento.

É certo que as crianças não são todas iguais, nem os impactos do isolamento se lhes fazem sentir de igual modo, mas o isolamento a que estamos obrigados tem um efeito de amplificador das desigualdades sociais. E ainda não tinha vindo o segundo confinamento, que piorou tudo!

Assim, quanto ao isolamento em casa, é de referir que, a par de casas com jardim, logradouro e varanda, há casas pequenas e sobrelotadas, muitas das quais sem condições de habitabilidade e salubridade, o que torna difícil, por exemplo, lavar as mãos com frequência. Há crianças que não têm casa e muitas para quem a covid-19 pode significar ainda a perda do ou dos adultos cuidadores de referência. E é de pensar nas crianças que vivem com as mães na prisão, nas famílias monoparentais e nas crianças cujos cuidadores são as e os avós.

Ficar em casa pode efetivamente evitar o contágio, mas pode, segundo os pediatras, ter efeitos perversos no desenvolvimento, já que a assunção de vitamina D, a prática de exercício ao ar livre e a rotina de sair à rua são fundamentais e, de forma especial, para os autistas. E diga-se que o badalado superior ringesse das crianças pareceu inferior ao dos canídeos, para os quais a legislação previu o passeio higiénico acompanhado do respetivo dono.

Ora, se já nos debatíamos com a excessiva sedentarização das crianças, prisão ao mundo da consola, computador e internet e risco de obesidade, o confinamento não fez mais que agravar estas situações negativas potenciando a antissocialização das crianças e adolescentes.

Em Itália, apesar de o Governo ter esclarecido que às crianças é permitido sair por tempo breve e perto de casa, as reações logo se fizeram sentir, com muitos vizinhos a insultar os pais das crianças que saíam de casa com elas – atitude semelhante à de um fascismo social.

Ficar em casa pode ser ficar em ambiente hostil, pois, tendo aumentado a violência doméstica, aumentaram as possibilidades de estarem envolvidas crianças, para quem diminuíram as formas de se fazerem escutar, com as visitas pelas/os técnicas/os das CPCJ reduzidas ao mínimo, sendo que as escolas, muitas vezes as principais sinalizadoras das situações, fecharam.

O fecho de escolas levou à prossecução do ano escolar através de meios ou ferramentas virtuais. E os efeitos foram mais que muitos: crianças que têm computador, tablet, smartphone, que os sabem manusear ou cujos progenitores as conseguem auxiliar; crianças e progenitores que, tendo os aparelhos, são analfabetos informáticos e têm dificuldades em aceder às plataformas digitais; crianças que convivem com um ou dois progenitores em teletrabalho; e crianças que não têm computador/telemóvel, ou tendo-os, não têm acesso à internet. Ora, estas situações implicavam que, previamente, as escolas estivessem dotadas de instrumentos capazes de providenciar uma didática à distância, e que os professores fossem capazes, num curto espaço de tempo, de preparar aulas e materiais.

O regresso da telescola surgiu, mas sem garantia do acompanhamento das crianças e adolescentes, atreitos à dispersão. E fazer aulas síncronas para crianças do 1.º Ciclo a olhar para o pequeno ecrã sem verem os colegas e com a ligação a ficar intermitente não passa de remendo mal pregado. E descurou-se o papel da escola no nivelamento social, bem como a tendência para a agudização das desigualdades de aprendizagem.

Depois, o fecho das escolas não tem efeitos só em termos da aprendizagem. Há crianças cuja única refeição quente é a servida na escola. É certo que várias centenas de escolas continuam a assegurar as refeições. E, se havia famílias que, antes da pandemia, conseguiam assegurar que nada faltasse em casa, muitos trabalhadores precários ou que trabalhavam no mercado informal de trabalho perderam a sua fonte de rendimento, de que resultaram situações de desespero. E são as crianças que delas dão mais conta, revelando, nas suas ações, formas de resistência.

Enfim, há que pensar nas crianças que perderam os idosos da família sem poderem fazer o luto.

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Entretanto, surgiu em Leiria, no outono de 2016, e vem-se espalhando pelo país o programa “Brincar de Rua” para combater o sedentarismo das crianças, devolvendo-lhes a rua para brincar com a colaboração de guardiões (voluntários que recebem formação) para a brincadeira decorrer em segurança. Porém, em confinamento, edita e-books temáticos, descarregáveis gratuitamente, ajudando pais e filhos.

O “Brincar de Rua”, ora ‘recolhido’, acabou de lançar um e-book sobre o combate à obesidade infantil. De facto, a pandemia veio agravar o que era evidente: as crianças estavam confinadas em casa, entre telhados e paredes. E isso tornou-se mais visível com a pandemia. Agora os adultos (pais/avós) em casa veem como elas passam ali o dia. E, sobretudo, veem que não basta descartá-las para as instituições, mas que têm de pensar no legado a deixar-lhes.

O e-book surge como chamada de alerta para esta realidade, pois estudo recente mostra que no primeiro confinamento as crianças levaram 80% do tempo em atividades sedentárias. E a APCOI (Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil) fala do que o “Brincar de Rua” verificara: quando voltámos à escola, os miúdos pareciam mais gordinhos. E, num estudo com a Universidade de Lisboa sobre a obesidade infantil, concluiu pelo aumento do peso nas crianças.

Isto que dizer que os sinais foram acentuados pela pandemia, mas já se evidenciavam pela nossa tendência de mundo ocidental de privilegiar o estudo, focando-nos demasiado nas atividades intelectuais, sem equacionarmos como deve ser o verdadeiro impacto dos ecrãs na vida dos miúdos, “sobretudo pelo que não dão”.

Os ecrãs dão estímulos que não se coadunam com as necessidades da criança, pois a sua experiência tem de ser essencialmente sensorial e motora, de investimento corporal. E só a partir da puberdade é que as coisas mais intelectuais começam a ganhar espaço significativo.

Assim, pôr a criança de 2 anos a pegar num tablet, a de 5 anos a passar horas à frente dum ecrã ou a 10 anos a passar 300 minutos à frente dum ecrã por dia, é construir o edifício do ser pelo telhado e com riscos. Porém, isto só se consegue com empatia e sabendo lidar com as birras.

Além do aludido e-book, há vários já planeados, sendo o próximo sobre os ecrãs. A estrutura é: o que a ciência diz sobre o tema; e como podemos pensar proativamente para combater e prevenir este problema. São dirigidos aos pais e podem ser descarregados gratuitamente no site do “Brincar de Rua”. Começou-se pelo sedentarismo e obesidade infantil por se tratar do problema cuja consequência será mais silenciosa. A criança obesa pode começar a desenvolver sintomas patológicos graves. Um corpo obeso vai-se deteriorando e vai gerando patologias que se podem alojar, não de forma imediata, mas a médio e longo prazo. Assim, antes da covid, já a OMS falava da pandemia do sedentarismo e obesidade infantil.

Os responsáveis pelo “Brincar de Rua” dizem que, de momento, o programa suporta os custos com ganhos que teve antes da pandemia e com o prémio da UEFA Foundation for Children, de 2020. A UEFA reconheceu-os como entidade promotora da atividade física e bem-estar das crianças. O prémio de 50 mil euros fez ganhar uma bolsa de oxigénio, pois terminou no final de novembro o financiamento no âmbito do programa Portugal Inovação Social.

A pandemia veio reforçar o sentido de missão do Brincar de Rua, como sucedeu com outros projetos que privilegiam o modo como os pais têm de pensar o crescimento dos filhos, não deixando à escola a responsabilidade da educação dos miúdos e pensar que isto amanhã se resolve. Com efeito, não é de crer que as crianças que hoje comem mal manhã passarão a comer melhor, como, se uma criança não ganha hábitos de andar de bicicleta, correr lá fora, observar a natureza, e de a respeitar, dificilmente se tornará ativa e preocupada com o mundo que tem à sua volta. Por isso, infância não pode rimar com inatividade, indoor, afastamento social. E, se é importante dizer às crianças que agora não é o tempo de estarmos juntos, isso não pode querer dizer que deixemos de nos preocupar com os nossos vizinhos, com quem está à nossa volta, com quem se dirige a nós na rua. Ora, isto exige e espera uma verdadeira mudança, um verdadeiro movimento de transformação social.

Aquando do regresso à escola, alguns grupos quiseram voltar à rua, mas, como as regras mudavam a cada semana e eram diferentes de concelho para concelho, passou a haver instabilidade e insegurança nas pessoas. Por isso, a organização focou-se no que poderia fazer para melhorar a vida dos miúdos neste tempo de pandemia.

Entretanto, critica o facto de em Portugal se gostar muito da cultura de infantilizar as pessoas e as culpabilizar. Assim, ‘portaram-se mal no Natal e agora vão ficar todos de castigo”. E até se inventam novidades absurdas como “sair de casa com responsabilidade”.

Na verdade, é de acalentar a esperança de a pandemia ficar mais controlada para que as crianças possam voltar a brincar na rua e se encontrarem com os seus vizinhos, com os seus amigos. Temos que perceber que, por muita tecnologia e muitos avanços em muitas áreas, continuamos a ser animais que vivem num ecossistema, de que não se podem distanciar por muito que a tecnologia tenha transformado a nossa vida e nos tenha permitido criar ambientes artificiais que – de uma forma às vezes bem conseguida – reproduzem aquilo que é a vida natural.

Contam que, há dias, se fez a primeira apresentação internacional do “Brincar de Rua” muito sui generis a um grupo de miúdos do Canadá que também estão em confinamento. Como vão arrancar as AEC (atividades de enriquecimento curricular) à distância, acharam engraçado fazer esse intercâmbio com miúdos de outros países. O professor falava-lhes da varanda e eles viam pelo Google Earth o Castelo de Leiria. Porém, confessa que nada substitui o que é a experiência real.

Pela insuficiente experiência real da sociedade e da natureza, aprenderemos as lições que a pandemia nos pôde proporcionar, articulando a preservação com a humanização? 

2021.02.26 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

“Cáritas 65 Anos: O Amor que Transforma”

 

De 28 de fevereiro a 7 de março a 7 de março, decorrerá a Semana Nacional da Cáritas promovida pela rede nacional Cáritas com o tema “Cáritas 65 Anos: O Amor que Transforma”, procurando evidenciar a ação desta organização cristã no combate à pobreza e exclusão social, dando corpo a uma das importantes missões da Igreja, a pastoral da fraternidade afetiva e efetiva corporizada na partilha de bens, como dimensão concomitante e consequente da missão evangelizadora e da missão santificadora.

Na verdade, as Igrejas e as demais pessoas de boa vontade sabem que “o amor é possível e necessário para pensar a sociedade”.

Cada diocese dispõe da sua Cáritas com autonomia jurídica e canónica e obviamente com especificidades próprias, devendo estabelecer as suas prioridades e agir em função delas. Não obstante, as 20 Cáritas diocesanas, unidas na Cáritas Portuguesa, constituem a rede nacional e, trabalhando em rede, ganham força para o trabalho eficiente e eficaz nos inúmeros grupos locais que atuam em proximidade nas paróquias e outras comunidades, ajustam os seus projetos e atividades ao tom definido a nível nacional, têm os olhos e os ouvidos na totalidade do território e lançam mão da colaboração de profissionais e de um conjunto alargado de voluntários para atuarem – cada uma por si e apoiada pela rede – coerentemente em função das mas variadas necessidades do muitos e muitas que a elas se dirigem.

É de referir que a Diocese das Forças Armadas e das Forças de Segurança, que também desenvolve as campanhas no âmbito da Pastoral Social, tem um conjunto de recomendações concretas no capítulo da solidariedade e tem em formação a sua Cáritas diocesana. Com efeito, no seu Plano Pastoral para 2019-2022, está inscrita como uma das ações concretas “Intensificar a organização da Caritas Diocesana Castrense”.    

Assim, a “Cáritas Portuguesa constitui-se como serviço para a animação da Ação Social da Igreja em Portugal”. A sua visão eclesial sintetiza-se nas seguintes palavras do Papa Francisco:

quérigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.”. 

A sua missão estriba-se neste segmento discursivo tão caro ao Papa Bento XVI:

Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de atividade de assistência social que se poderia, mesmo, deixar aos outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência.    

E os seus valores seguem a linha da misericórdia e solidariedade do Papa Francisco contra o lodaçal da indiferença:

(…) que os lugares onde a Igreja se manifesta, particularmente as nossas paróquias e as nossas comunidades, se tornem ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença!

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Vivida em contexto de Pandemia, a Semana Cáritas, uma das suas muitas iniciativas, reveste-se este ano dum peso especial, quando a covid-19 deixou muitas famílias em situações difíceis, tendo aumentado em muito larga medida o número de pessoas e famílias que batem às portas desta organização eclesial, aliás como sucede com toda as organizações sociais e solidárias que, graças a Deus, enxameiam o país.

Contudo, a pandemia que faz engrossar o número dos carenciados e até novos pobres, também dificulta o trabalho e a consecução dos objetivos das organizações de solidariedade, que mal o tempo lhes resta para o investimento em projetos de estruturação do combate consolidado à pobreza, pois a emergência vem absorvendo tempo, energias e recursos. E essa dimensão estruturante não pode ser esquecida nem mesmo secundarizada, por constituir o alicerce radical da implementação da justiça e da fraternidade.    

Por isso, durante esta semana, as diferentes Cáritas Diocesanas que compõem a rede nacional Cáritas, promovem o envolvimento público e de animação local, sendo tradicionalmente o Peditório Nacional de rua uma das principais atividades deste horizonte temporal, habitualmente mobiliza para as ruas mais de 4 mil voluntários em todo o país. Porém, face às dificuldades que a pandemia impôs e pelo segundo ano consecutivo, o peditório não se realiza nos formatos usuais. Assim, a Cáritas adota uma estratégia digital, com a realização de um peditório nacional online, com o objetivo de angariar verbas para reforço da capacidade da rede Cáritas na resposta aos atendimentos sociais e no desenvolvimento e implementação de projetos sociais locais, adaptando-se às circunstâncias em que vivemos e não olvidando a sua principal missão: a solidariedade e a erradicação da pobreza.

Por outro lado, a rede dá conta de que, em 2020, atribuiu apoio financeiro direto à população de cerca 1.5 milhões de euros, ao qual se somam os apoios em produtos alimentares e bens essenciais, bem como outras respostas sociais de emergência. Desde abril de 2020 a fevereiro de 2021, através da implementação do programa nacional “Vamos Inverter a Curva da Pobreza em Portugal”, respondeu diretamente a cerca de 10 mil pessoas que viram o seu rendimento afetado pela covid-19, apoio que corresponde a cerca de 10% do total de apoios da rede nacional.

À redução significativa de rendimentos pela perda de posto de trabalho ou por rendimentos insuficientes (salário ou reforma) – as principais razões que motivam o apoio da Cáritas, a rede tem respondido com o pagamento de rendas de habitação, despesas de saúde e medicamentos e despesas de eletricidade.

Não é sem razão que o Presidente da República, em mensagem enviada a propósito da Semana Nacional, saudou o trabalho da Cáritas ao longo dos seus 65 anos, sem esquecer o seu papel no combate à pobreza agudizada pela pandemia:

A Cáritas quer olhar para o futuro, e pede-nos que partilhemos o apoio às suas causas do futuro. A semana de 28 de fevereiro a 7 março, neste ano, tem um modelo diferente, um modelo da pandemia, um modelo digital, mas um modelo que não afasta aquilo que é a Cáritas, solidariedade, generosidade, mas proximidade. A rede Cáritas tem estado na linha da frente do combate aos efeitos sociais da pandemia e mobilizado, de forma discreta, meios para que ninguém fique sem resposta.”.

Por seu turno, Dom José Traquina, Bispo de Santarém, Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, também lembrou o trabalho da rede Cáritas sublinhando a sua missão no despertar da solidariedade no concreto:

A missão da Cáritas – o amor que transforma – é despertar para esta solidariedade no concreto, comprometidos que estamos na transformação do mundo em que vivemos para que seja, cada vez mais, uma terra de irmãos. Para que juntos vivamos verdadeiramente numa só família humana.”.

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Esta Semana Nacional vem na sequência do itinerário de vivência quaresmal que, pela primeira vez, a Cáritas Portuguesa oferece, atendendo às caraterísticas atitudinais próprias desta quadra litúrgica que culmina com a Páscoa: a oração; a autodisciplina simbolizada e concretizada no jejum ou renúncia a bens materiais ou de conforto; e a esmola, entendida, não no sentido de nos livrarmos do carenciado, mas no da partilha vivencial. Nestes termos, o itinerário quaresmal da Cáritas é, como dizem os responsáveis, “um caminho estruturado em quatro pilares – orar, fazer, partilhar e conhecer” – com o grande objetivo de “proporcionar uma vivência quaresmal transversal que, no contexto de confinamento, promova a vivência da quaresma no contexto comunitário, mas também individual ou familiar”. Assim, coloca desafios concretos para cada dia da quaresma, que vão da oração individual pelos doentes e pelos jovens, a iniciativas concretas de partilha quaresmal ou gestos de solidariedade e amizade, como, por exemplo, um telefonema para uma pessoa amiga ou um familiar. E esta iniciativa enquadra a Semana Nacional que, este ano, se desenvolve em torno do tema “Cáritas, o amor que transforma”. 

Durante esta semana, as diferentes Cáritas diocesanas que compõem a rede nacional Cáritas promoveram um momento de envolvimento público e de animação local. A nível nacional o destaque vai para o peditório público, este ano a realizar em formato onlineÉ um momento que a Cáritas privilegia pela angariação de verbas, que se destinam à ação local de todas as Cáritas diocesanas, e por constituir uma oportunidade de contacto direto com a população, com os e as que apoiam a missão da Cáritas e, também, em muitas situações, com os e as que são beneficiários/as da ação da Cáritas. E é um caminho de transformação interior na relação com o mundo e com os outros que também tem na sua realização um gesto de partilha. Com efeito, todos os materiais estão disponíveis grátis em www.caritas.pt/calendario – sendo possível receber em casa versão impressa por quem o desejar – https://caritas.pt/calendario-digital/ (1€ com portes incluídos, quantidade mínima 10 unidades).

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Em jeito de partilha e de coração agradecido, o susodito Bispo de Santarém refere que “temos conversado”, nestes tempos difíceis, sobretudo por meios telemáticos, acerca de sofrimentos, medos e aflições, ouvido lamentos e encontrado pessoas desanimadas, pois muitos ficaram doentes e alguns morreram. Mas, ao mesmo tempo, salienta a multíplice onda “de solidariedade na dor, de um grande empenho no reinventar a proximidade e o cuidado com os mais frágeis”, que a pandemia fez emergir. Por isso, sente-se confortado no agradecimento a Deus pelos “diversos dons que têm frutificado no coração e nos gestos de tantas pessoas das nossas comunidades que se têm mantido atentas aos pobres e aos doentes para os socorrerem nas suas necessidades”, bem como no agradecimento a “todos os que constituem os Grupos de ação sócio-caritativa ou as Cáritas Paroquiais, os que trabalham nas Cáritas Diocesanas e na Cáritas Portuguesa”. E, citando o Papa Francisco, n.º 94 da Fratelli tutti, conclama:

O amor ao outro, por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos.”.

E, convicto de que, ao celebrarmos os 65 anos da Cáritas em Portugal, urge proclamar “o amor que transforma”, que “só o amor transforma”, mas que “transforma os corações e transforma a realidade em que vivemos”, agarra o mordente alerta de Francisco (Fratelli tutti, n.º 35):

Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam ‘os outros’, mas apenas um ‘nós’. Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a Humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.”.

Enfim, a missão da Cáritas – o amor que transforma – é, na reformulação sugerida pelo prelado escalabitano, despertar para esta solidariedade no concreto, comprometidos que estamos na transformação do mundo em que vivemos para que seja, cada vez mais, uma terra de irmãos. Para que juntos vivamos verdadeiramente numa só família humana.”.

Assim seja!

2021.02.25 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Disparate – um partido de âmbito nacional de ideologia municipalista

 

Manuel Cordeiro, presidente da Câmara Municipal de São João da Pesqueira, agendou para o próximo dia 27, pela manhã, no Museu do Vinho, um encontro de emergência dos 17 autarcas independentes, estando já garantida a presença de Rui Moreira (Porto) e de Isaltino Morais (Oeiras) e podendo participar os outros por videoconferência, com vista a debelar os óbices criados pelas recentes alterações à lei eleitoral autárquica e concertar uma estratégia comum para driblar o PS e PSD, caso estes partidos não recuem na Assembleia da República (AR).

O encontro cujo anfitrião é o eleito em 2017 pelo movimento ‘Pela Nossa Terra’ juntará os 17 autarcas eleitos por Grupos de Cidadão Eleitores (GCE) e o líder da AMAI (Associação Nacional de Movimentos Autárquicos Independentes), Aurélio Ferreira. 

Manuel Cordeiro, a cumprir o seu primeiro mandato, após ter falhado a eleição em 2013, e que conta ir de novo a votos no final do ano com o mesmo lema, dizia ao Expresso que ainda não sabia quantos irão estar presentes, mas que participará por Zoom quem não se puder deslocar.

Todos estão interessados em discutir as novas regras de candidatura às próximas autárquicas, tida como “um atropelo constitucional” e uma tentativa de “cortar as pernas” aos independentes. Consideram estarem em causa os obstáculos criados pelas recentes alterações à lei eleitoral autárquica sob proposta pelo PSD na primavera de 2020 e aprovada pelo ‘centrão’ no pino do verão, que inibem as candidaturas de partirem para o terreno nas autárquicas deste ano com o mesmo nome, sigla e símbolo a todos os órgãos autárquicos de um mesmo concelho, o que que, segundo afirmam, “fragiliza os GCE em benefício das candidaturas partidárias”.

Com efeito, enquanto os partidos concorrem à câmara municipal (CM), à assembleia municipal (AM) e às assembleias de freguesia (AF) com as cores, símbolos e siglas de sempre, um GCE terá de se candidatar com uma denominação, sigla e símbolo comum à CM, à AM e denominações, siglas e símbolos diferentes a cada uma das AF. Ora, ter de encontrar, por hipótese, uma dezena ou uma dúzia de alternativas é demais e discriminatório. E a questão da recolha de assinaturas em listas separadas a todos os órgãos, além de pesada e discriminatória, é vista como “um constrangimento suplementar em tempo de confinamento” e um “um risco sanitário”.

Além de debater estas questões, o líder da AMAI e o autarca de São João da Pesqueira admitem que seja analisada a desproporção de enquadramento fiscal entre partidos e GCE, que “têm os custos de campanha onerados em 23% de IVA”. Após terem reunido por Zoom no início de fevereiro, agora trata-se de concertar posições, sendo um dos pontos comuns da agenda a reversão da legislação autárquica recente, alteração que Manuel Cordeiro diz ter sido introduzida com o argumento do PSD de clarificação, mas cujo resultado é o inverso.

Outro dos agravos burocráticos é o de o juiz dos tribunais cíveis de comarcas terem de pedir a autentificação notarial de pelo menos uma amostra das assinaturas das listas de proponentes, quando até agora podiam pedir a autentificação de algumas. E, tendo o presidente da AMAI questionado a CME (Comissão Nacional de Eleições) sobre quantas assinaturas serão consideradas como amostra, foi-lhe respondido que não há mínimo nem máximo, podendo até o juiz pedir a autentificação notarial de todas, o que lhe parece absurdo, dado o prazo de 72 horas que os tribunais têm para avalizar milhares de assinaturas.

Embora guarde prudência quanto à via a seguir, Cordeiro advoga que a solução, se os partidos não reverterem a lei, leve à criação dum partido de âmbito nacional de ideologia municipalista.

O autarca de São João da Pesqueira diz que é algo a evitar “por subverter o sentido que levou à nossa participação política através de movimentos de cidadania, sem bandeira partidária”, pelo que solicita aos partidos que “não obriguem os GCE a terem de deitar mão a este recurso de conveniência”. E Aurélio Ferreira, que também prefere que os independentes “sigam em frente sem recurso a um partido barriga de aluguer”, deixa o aviso:

Podem contar com todo o apoio da AMAI, se os partidos continuarem a olhar para os independentes como alvos a abater”.

Por sua vez, Rui Moreira também não descarta recandidatar-se à Câmara Municipal do Porto por um novo partido político, “se necessário for”. E a associação ‘Porto, o Nosso Movimento’ louvou o envio, por parte da Provedora de Justiça para o Tribunal Constitucional, do pedido de fiscalização de constitucionalidade das alterações à Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, aprovadas pelo PSD e PS. Maria Lúcia Amaral, com base nos artigos 48.º, n.º 1, e 239, n.º 4, da CRP, considerou que algumas das alterações representam uma “violação dos direitos dos cidadãos de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país”, direito previsto na Constituição (CRP). Os autarcas independentes e o líder da AMAI, que entendiam que tais alterações violam claramente o art.º 113.º, n.º 3 b), da CRP e o art.º 40.º da lei eleitoral para as eleições autárquicas, no âmbito da igualdade de oportunidades (o que, a meu ver, não colhe pelas razões que aduzi em tempos), agora subscrevem a argumentação da Provedora, sublinhando que o legislador “não pode restringir um direito fundamental de participação política”.

Para a associação cívica afeta a Rui Moreira, o agravamento das desigualdades de tratamento entre partidos e GCE servirá “para fomentar o fenómeno de constituição, não necessariamente desejada, de partidos políticos”, por esta se revelar “a única solução viável” para a apresentação de candidaturas simultâneas a todos os órgãos autárquicos.

Aduzindo os independentes que “os partidos são o sal da democracia”, avisam que “o excesso de sal não faz bem a ninguém”.

Porém, Rui Moreira como Manuel Cordeiro deviam saber que não é possível, no ordenamento jurídico-constitucional português, a existência de partidos de âmbito regional, muito menos de âmbito municipalista. Efetivamente, a CRP no seu art.º 51.º, n.º 4, estabelece:

“Não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objetivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional”.    

Por seu turno, o art.º 9.º da Lei dos Partidos Políticos (Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril) estabelece o “caráter nacional” dos partidos políticos transcrevendo o mencionado preceito constitucional. 

Do caderno de reivindicações do ‘Porto, o Nosso Movimento’ constam a possibilidade de recolher assinaturas “digitalmente” devido à crise pandémica e denominação, sigla e símbolo comuns das candidaturas independentes no mesmo concelho. E os independentes advertem os deputados que, “se, finalmente, vão reverter a Lei, então façam-no no cumprimento cabal do espírito da Revisão Constitucional de 1997, chamando os cidadãos à participação política e incentivando-os ao exercício da cidadania”.

***

Hugo Carneiro, deputado do PSD, acusa expressamente Rui Moreira de tentar “abandalhar” as regras da próxima corrida autárquica, ao tentar fazer passar o GCE como um movimento único qual partido regional, proibido pela Constituição. E diz que a AR pode melhorar as leis, mas, tal como Rui Rio, não se compromete já com correções à lei para as eleições autárquicas.

Refere ao Expresso que a lei  continha uma inelegibilidade especial relacionada com candidatos a autarquias com negócios com esta, mas com pouca aplicação prática, por ser pouco clara e ser insuficiente para salvaguardar o interesse público. A tal norma sucedeu uma inelegibilidade que abrange “os membros dos corpos sociais, os gerentes e os sócios de indústria ou de capital de sociedades comerciais ou civis, bem como os profissionais liberais em prática isolados ou em sociedade irregular que prestem serviços ou tenham contrato com a autarquia não integralmente cumpridos ou de execução continuada, salvo se os mesmos cessarem até ao momento da entrega da candidatura” (vd atual art.º 7.º/2 c). Abrange, pois, uma multiplicidade de situações que não estavam previstas, estabelece-as de modo claro e estipula que têm obrigatoriamente de cessar até ao momento da propositura da candidatura de uma ou mais pessoas por ela abrangidas. Não se inibindo o direito à candidatura, impõe-se a separação entre o momento antes e depois da candidatura, em nome do interesse público e da eliminação de conflitos de interesses.

Por outro lado, como a Constituição e a lei separam claramente e regulam diferentemente os partidos p e as coligações de partidos políticos dos GCE, o deputado anota que os partidos políticos ou as coligações obedecem a registos legais, desde logo no Tribunal Constitucional (TC), ao qual incumbe o registo dos GCE. E, porque os partidos e as coligações têm consagração constitucional, são fiscalizados pelo TC e pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticas, estando sujeitos a escrutínio público e perenidade diferentes dos GCE, que emergem, segundo o deputado, “como forma de participação dos eleitores na gestão dos interesses locais das suas comunidades, fixando a lei certos requisitos para que essas comunidades sejam identificadas” (v. g: recenseamento dos seus proponentes). E isso não foi alterado em 2020, não havendo tratamento desigual, mas o tratamento diferenciado das situações em razão das suas especificidades, uma cambiante do princípio constitucional da igualdade.

Hugo Carneiro responde à dificuldade de os eleitores identificarem no boletim de voto os GCE por concorrerem com designações diferentes por cada AF:

À luz da lei eleitoral, os GCE podem fazer constar no boletim de voto também o nome do primeiro candidato a essa autarquia, ao contrário dos partidos ou das coligações de partidos”.

E explora aspetos do tratamento diferente em conformidade com as respetivas especificidades, mas reconhecendo a diversidade de vias para a participação democrática dos cidadãos em geral. Assim os GCE podem ter lucro de campanha, não sujeito a escrutínio ou fiscalização após a entrega das contas de campanha e terminada a eleição, ao passo que os partidos e coligações não podem ter lucro de campanha. Considerando que os partidos apostam na gestão e promoção de interesses gerais/coletivos ou locais e que os GCE apostam na gestão e promoção dos interesses das suas comunidades locais, o deputado não vê “preferência por uns ou por outros, na oferta de caminhos para a participação dos cidadãos, mas formas diferentes a que cada um se pode ajustar consoante as suas preferências, convicções ou ideologias”. Porém adverte que um GCE é autónomo, pois a Constituição e a lei não reconhecem o conceito de movimento, por similar a partido político local, constituído contra legem e sem qualquer escrutínio/fiscalização publico.

Todavia, Hugo Carneiro entende que a lei tem suficiente maleabilidade em relação aos GCE, dando-lhes várias soluções, consoante a opção de cada um. Não podem ter denominação apenas constituída pelo nome duma pessoa singular, mas podem associar o nome e expressões ou slogans. Assim, o nome ou abreviatura do nome do 1.º candidato a uma autarquia pode constar na denominação do GCE a que pertence, mas não pode um GCE fazer constar o nome de alguém que não é candidato desse GCE. Só não será assim se os proponentes do GCE candidato à CM e o GCE candidato à AM tiverem os mesmos proponentes, porque se vê que se trata do mesmo GCE e o ente público em causa é o mesmo, o município. Aí, os GCE podem optar por denominações diferentes, semelhantes ou iguais ou denominações que contenham também parte do nome duma pessoa singular até ao limite de seis palavras.

E o deputado acusa o autarca do Porto de, ao confundir GCE como se tratasse de um só sob a égide de um “movimento”, pretender a constituição contra legem de um partido político. Ora, a lei já exigia, antes de 2020, que os proponentes têm de ser recenseados na área da autarquia a que se candidatam. Se alguns cidadãos são recenseados numa freguesia, não o são noutra. Assim, a constituição de dois GCE dá para concluir que são distintos, pelo que não se podem apresentar como se fossem um só. E o art.º 239.º, n.º 4, da CRP estabelece:

As candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei

Daí resulta que a CRP não admite coligação de GCE, mas só de partidos. Ora, no dizer do deputado, é abandalhamento misturar conceitos e utilizar argumentos sem cobertura legal.

Também o deputado aponta a Moreira a confusão no espaço público sobre as regras formais para as candidaturas de GCE, pois refere que precisa de 7000 assinaturas para se candidatar à CM, quando o número é variável e tem como limite para as CM do Porto e Lisboa 4000 assinaturas. Além disso, não há nenhuma exigência de reconhecimento notarial de assinaturas, o que até é expressamente proibido por lei (vd art.º 10.º). E o deputado interroga-se sobre o que leva a inventar no debate público regras que não existem e chama a atenção para um ponto relevante:  

A democracia coloca ao dispor dos seus cidadãos inúmeros instrumentos de participação: constituição de partidos ou coligações, os GCE, os referendos, as petições, a participação nas Assembleias Municipais ou de Freguesia em certos pontos das ordens de trabalho, etc.”.

Por fim, considera legítima a decisão da Provedora de Justiça de requerer a fiscalização da constitucionalidade da lei – está dentro dos sues poderes –, mas adverte que é ao TC que incumbe avaliar a inconstitucionalidade ou não da nova lei eleitoral e que a AR continua a ser autónoma em relação às iniciativas da provedora, ou seja, “mantém os seus poderes constitucionais em matéria de produção de leis”. Por isso, “pode fazer novas leis, alterar as existentes ou revogar outras anteriores”. E tanto a Provedora de Justiça, como o TC e a AR estão na rota dos seus poderes constitucionais, com plena autonomia e, no caso dos dois órgãos de soberania, com independência, não se condicionando mutuamente. 

Porque é genuíno e límpido o esclarecimento de Hugo Carneiro, segui-o nas suas linhas essenciais, mostrando quanta demagogia perpassa por alguma da propalada independência, embora não deixe de pensar que algumas alterações à lei devem ser revertidas, como o demonstrei noutra ocasião. 

Em suma, um só GCE candidatando-se a todos os municípios e freguesias de uma região, ou ao município e freguesias de um concelho, seria um partido regional ou concelhio informal, o que a CRP e a lei não admitem. Admitir a sua formação levaria à não sujeição ao escrutínio a que estão sujeitos os partidos legalmente registados no TC. E, a par de qualquer lei em vigor, a AR pode sempre melhorar as leis existentes, inclusivamente esta lei eleitoral dos órgãos autárquicos.

Trabalhe-se mais pelas populações e discutam-se menos as zangas de comadres!

2021.02.24 – Louro de Carvalho