segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

O nosso Estado não funciona… e a missa não é assim tão má

 

A 24 de janeiro, no mês em que, há 40 anos, a União das Instituições Particulares de Solidariedade Social (UISS) elegeu os seus primeiros corpos sociais, foi publicada uma entrevista do Padre José Maia, claretiano (tido como fundador da CNIS – Confederação Nacional das Instituições Particulares de Solidariedade Social), à “Renascença” e à Ecclesia”.

Não deixou de precisar que objetivamente não foi “o fundador da CNIS”, pois, sendo presidente da direção na altura em que se constituiu a CNIS (trata-se de órgãos colegiais), clarifica que “há dois momentos na vida das instituições de solidariedade”. Há 40 anos, um conjunto de instituições do Norte reuniu-se – estiveram nessa reunião também os padres Marinho, Redentorista, e Orlando, pároco de Cedofeita – e pensou em “organizar-se para melhor poder atuar”. E criou-se a União das Instituições de Solidariedade Social (UISS). E o Padre José Maia acabou por entrar “para presidente de uma das direções que foi eleita” (foi o 3.º presidente da UISS) e por lá andou uns anos (1988-2002). Porém, vendo que a dimensão dos problemas era muito grande e o número de instituições muito grande e muito diversificado, entenderam partir para uma confederação. E surgiu a CNIS.

Questionado sobre a importância do setor social para a sociedade neste momento de pandemia, frisa a indiscutibilidade da importância deste setor hoje, aliás como sempre, constituindo a doutrina social da Igreja (DSI), toda ela, “um monumento às preocupações sociais da Igreja”, pois são tantas as reflexões, bem como os “escritos dos Papas e de muita outra gente”.

Reconhece que se foi registando, por parte das autoridades, uma evolução relativamente à importância das IPPSS em Portugal e admite que “hoje esse reconhecimento é cabal”. De 30 a 40 chegaram a 4 mil, o que significa “um movimento muito grande”. Lembra-se de ter falado com o então Ministro Silva Peneda, “que esteve sempre atento a esta realidade”, e de lhe ter pedido “um assento no conselho económico e social”, no que foi atendido. Assim, a UISS e, depois, a CNIS, que lhe sucedeu, passou a ter assento ali “onde se fazem as políticas sociais no país”. E sublinha que “eram tempos difíceis”, pois “a maior parte dos trabalhadores e responsáveis da segurança julgavam-se os donos da massa”, dando “a impressão de que nos faziam um grande favor, quando nos pagavam parte do muito que nos deviam”, pelo que “houve muita necessidade de bater o pé, e batê-lo forte”.

Considera que “a constituição da CNIS foi o passo necessário para que as instituições tivessem dimensão mais ampla e ganhassem maior influência”, porque “a união faz a força”. Observa que a CNIS é também importante porque, já na altura, no quadro do pacote financeiro para apoiar parte dos apoios financeiros, “o Estado nunca pagou, nem antes nem agora, a totalidade do serviço que era feito”. Por outro lado, era necessário ter a “consciência de instituição representativa”, que fortalecesse “a representação nacional” e desse, “ao nível de cada distrito”, a organização “das uniões distritais para que houvesse um crescimento”. E, crendo que é a força das bases que dá força a quem as representa, gosta de que as coisas cresçam de baixo para cima.

Sendo-lhe lembrado que a CNIS chegou, há cerca de 25 anos, ao pacto de Solidariedade, mas que o setor continua a reclamar mais apoio e a pedir a revisão dos acordos de cooperação, no âmbito das respostas sociais, releva que “o pacto foi decisivo” e que fora negociado e falado e autorizado pelo engenheiro Guterres, com quem a CNIS teve longas reuniões e que chegou a ir a Fátima, a uma dessas reuniões. E a CNIS entendeu que era necessário, pela dimensão e forma de agir de todas as instituições, “um instrumento jurídico com muito mais força”. E o pacto de cooperação veio concretizar uma realidade, pois, em Portugal, o Estado não podia fazer o que era feito. E Guterres entendeu. Logo, fez-se o pacto, “que não é nenhum favor”, “concertaram-se políticas, fizeram-se estudos, em que ficou declarado que o Estado pagaria uma percentagem” do que era devido e as instituições, famílias e comunidades suportariam o resto.

Sobre o facto de tal percentagem ficar aquém das necessidades das instituições, diz que as respostas de então não eram as de hoje. Começaram com centros de dia, uma resposta mais barata; passou-se ao apoio domiciliário; e, depois, criaram-se os lares, uma resposta já com muito mais custos; e chegou-se aos cuidados continuados. Ou seja, a natureza e a complexidade e dimensão das respostas exigem mais apoio financeiro.  

E à objeção de que se trata de instituições particulares, não tendo o Estado que ajudar, contrapõe que “o Estado tem de cumprir os compromissos que estabelece”. E, estabelecida a lógica do pagamento até 75%, é necessário satisfazer os encargos das instituições, sendo os maiores os atinentes aos trabalhadores. E a CNIS tem “a noção de que muitos trabalhadores recebem salários muito aquém daquilo que seria justo pagar-lhes”. Ora, como diz o Padre Maia, temos que “defender quem faz o trabalho social, juntamente com o voluntariado”.

Mantendo o Padre Maia a sua ligação ao setor social, foi questionado sobre as suas maiores dificuldades. E respondeu começando por dizer algo “fora da caixa” e, depois, falou a sério:

Nós temos é de encostar o Estado à parede. Eu não gosto de pedir. Encostar o Estado à parede. Por estes dias foi publicado: a União Europeia tem programas de ajuda social aos países como Portugal. Este ano concretamente, o Estado só foi capaz de utilizar 33 por cento das ajudas a que o país que tem direito. Os outros não foram requisitados. Não faz sentido.”.

Reconhece que já não tem representação para encostar o Estado, mas aponta:

O Estado como Estado, essa gente toda que está em centros distritais… não faz sentido a andar a pedir por esmola, casa a casa; cobertores e coisas, quando o Estado não foi capaz de trazer para Portugal apoios que a União Europeia tem para o país.”. 

E dá para concluir que “o nosso Estado não funciona”. É muito bom a mandar, a fazer regras, mas “devia empenhar-se muito mais na resposta à ajuda aos mais necessitados”, pois não se admite que “se ande a pedir por esmolas, aquilo que é devido por justiça social”. E Maia vinca:

Nós temos uma lei de bases da segurança social com vários subsistemas e essa lei é da responsabilidade do Estado e da Segurança Social. (…) A Segurança Social é decididamente uma das áreas mais mal servidas no nosso país. (…) Nós poderíamos ter muito melhores serviços sociais. Mas isto que acontece este ano acontece todos os anos. Fica tanta, tanta coisa por trazer para o país que podia vir.”.

Confrontado com a possibilidade de, no combate à pandemia, o setor social, nomeadamente as misericórdias sobretudo na área da saúde, ajudar a aliviar a pressão sobre o SNS, mas embatendo isso com a reserva ideológica, o Padre Maia lamenta que “neste momento a parte da ideologia ande tão alumiada”. Diz que sempre houve ideologias e acusa a ideologia de ter acabado com a educação privada (o que não é bem assim – discute-se é se o Estado deve pagar o ensino provado opcional), estando em causa agora a saúde.

Confessa que, não tendo partido, tem “amigos em todos os partidos políticos”, mas o seu partido “é o humanismo cristão, que é o Evangelho”. Porém, declara que “nem nós fazemos um favor ao Estado, quando ajudamos – é o nosso dever ético –, nem o Estado nos dá nenhuma esmola quando nos faz chegar os pagamentos contratualizados”. Assim, sustenta que, neste momento, “quem tiver camas e respostas em consciência ética é obrigado a pô-las ao serviço da comunidade”, não por ideologia, mas por ética. Verificando que “já há casos de igrejas que se ofereceram ao Estado, para que ele possa usar tudo o que for preciso”, sublinha que “a tragédia com que o país está confrontado não se compadece com essas coisas ridículas, tacanhas, ideológicas”. E exclama:

Ai de nós se vemos alguém morrer ao nosso lado e não ajudamos. Eu não vou à ideologia, seja o setor privado, social, Igrejas…”.

Opina que o passo a dar é que todos nós “estejamos devidamente motivados” e atentos a que a ideologia não inquine uma parte importante do problema, e que quem tem possibilidade dê. Releva que o Papa gritou ao mundo e foi entendido. O presidente americano Joe Biden, quando tomou posse, referenciou o Papa e a sua encíclica que proclama “somos todos irmãos”. Por isso, Maia prefere “a motivação de natureza ética” à barata politização de tudo.

Quanto à suposta predominância da vertente assistencial da ação social da Igreja Católica, admite a falta da suficiente consciência cívica para uma maior intervenção nas causas dos problemas socioeconómicos e para questionar o próprio poder político. Não obstante, faz ressaltar que, no âmbito da tríplice dimensão da Igreja – profética, litúrgica e sócio-caritativa –, se inscreve a obrigação de cada comunidade, em nome da sua fé, prestar ajuda àqueles que fazem parte da comunidade e são pobres, doentes ou estão em outras situações de carência, o que vai sendo feito e, muitas vezes, com muita generosidade. Porém, quando é necessário alargar o horizonte das respostas, há que estabelecer pontes e parcerias. E foi por isso, diz, que se fez colaboração com o Estado: “disponibilizamos recursos, voluntariado, para, com meios do Estado, se alargar o âmbito da atuação”.

Considera que se tem feito o anúncio de Evangelho, mas, no seu entender, não se faz a denúncia suficiente. E explicita:

Há muita coisa a denunciar em Portugal, porque atenta contra a justiça social. E essa denúncia tem de ser feita, por todos os cristãos. A Igreja somos todos, não é só bispos, cardeais ou o Papa. Há aqui uma dimensão de denúncia, que a Igreja terá de fazer, de muitas situações, de certos hábitos, certas práticas, mesmo de quem nos governa. Há aquela frase conhecida, “eles comem tudo e não deixam nada”, isso hoje está a acontecer…”.

Em relação ao tratamento dos idosos, particularmente os institucionalizados, na pós-pandemia, refere que “a situação das pessoas idosas deve merecer-nos uma grande reflexão”, o que já se devia ter feito. Com efeito, a pandemia deixa algumas lições. E, sendo graças à ciência que se dão mais anos à vida e hoje viver até aos 100, 90, é normal, sustenta que “dar anos à vida tem sido importante”, mas que “não estamos a ser capazes é de dar vida aos anos”, isto é, “de fazer que pessoas mais idosas tenham oportunidades, tenham também uma sociedade organizada”. E defende que é terrível “a reforma ser obrigatória”, pelo que a sociedade “terá de encontrar outras formas de que as pessoas com mais anos possam não apenas contar com mais anos na sua vida, mas poder contar com mais vida nos seus anos”. Um debate que é necessário fazer.

No quadro do processo de vacinação contra a covid, realça que é preciso valorizar o que está bem e dirige um preito aos cientistas. Sabendo que “Jesus, na altura, fazia milagres”, pois, “como Filho de Deus, tinha esse poder de sarar”, diz que “Ele hoje faz milagres, através da Ciência” e que “a humanidade está a ser abençoada, porque Deus tem pessoas que são as suas mediadoras e a Ciência tem feito esse grande milagre das vacinas”. Contudo, brada que “é preciso que os homens façam tudo o que depende deles”, dizendo que “não queria ter a responsabilidade que os Governos têm, é muito difícil”.

A 24 de janeiro, ainda não se registavam os abusos conexos com a ministração indevida de vacinas em virtude do chico-espertismo típico de alguns portugueses… O que dirá a isso agora?

Sobre a decisão dos bispos de suspenderem a celebração do culto com a participação de povo, observa que ou se tem o sentido comum ou não se tem e considera que nós, os crentes, “temos sentido comum e alguma preparação”. Pensa que a Igreja quis ela mesma dar um sinal de que “é bom ter esta precaução e criar todas as condições para que se evitem aglomerações de pessoas”.

Diz que “anda muita gente incomodada com as Missas”, mas muitos “nem sabem o que é uma Missa”. E fala dum homem que não ia à Missa, mas tem acompanhado a mulher em casa e, admirado, disse: ‘Mas a Missa é isto? Afinal não é tão mau.’. E conclui:

Nós não precisamos que nos digam aquilo que nós entendemos como normal fazer”.

***

Já a 30 de março de 2020, a Ecclesia destacava que comunidade paroquial de Nossa Senhora da Areosa, na Diocese do Porto – comunidade fundada com o Padre Maia em março de 1980, com pedaços de 4 freguesias – estava a “ir ter com o povo” com um projeto de “telecatequese” e a transmissão de celebrações da Palavra online com o contributo dos  grupos,  procurando “que ninguém se sinta abandonado”. Com efeito, como dizia então o Padre Maia, vigário paroquial, pareceu importante ao pároco e a ele que nunca poderiam abandonar o rebanho, pelo que era conveniente passar às celebrações online e divulgar as muitas passagens da Bíblia.

O sacerdote explicava que era “altura de ir ter com povo, ir ter à casa das pessoas” e destacava a preocupação com a comunidade da catequese, abrangendo 540 crianças, para se manterem recordadas da sua comunidade. Ele fazia um guião em cada semana para acompanhar a celebração da Palavra online e os catequistas foram incansáveis. Como há a telescola, a paróquia tem a telecatequese, com imensos pais a acompanhar as crianças em suas casas.

Com a ajuda de paroquianos conhecedores da área das novas tecnologias, as celebrações da Palavra, a cada domingo, eram transmitidas online, com participação das crianças, de adultos e do grupo de jovens que deixa a sua marca no fim da celebração. Têm a escola de música com 320 alunos e, com essa possibilidade, o cântico final era da sua responsabilidade.

O sacerdote apontava a proximidade da paróquia com o Hospital de São João e reconhecia que a experiência estava a atingir os objetivos: “que o povo, crianças e pais não se sentissem abandonados”.

Segundo o sacerdote, as celebrações eram transmitidas da capela do Santíssimo, um espaço mais pequeno, mas na Semana Santa seriam na Igreja para que o “povo veja e recorde a sua Igreja” e as iniciativas dos dias da semana são da responsabilidade dos vários grupos. 

Além das transmissões online, a paróquia da Nossa Senhora da Areosa, em parceria com as juntas de freguesia de Campanhã e Paranhos, colocou à disposição uma linha telefónica para acompanhar quem está só e para ajudar quem precisa. Já tinham o movimento ‘sentinelas de rua’ que servia para atender pessoas em solidão. Com a crise, surgiu a linha telefónica para ajudar nesta fase de isolamento.

É de crer que neste confinamento geral a experiência se tenha reeditado em nome do sentido comum e do serviço evangélico às pessoas.

E é de sublinhar que ainda há padres e muitos outros cristãos como o Padre José Maia.

2021.02.07 – Louro de Carvalho

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