sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Do impacto da pandemia na saúde das crianças, adolescentes e jovens

 

Um estudo realizado por uma equipa da Universidade de Coimbra (UC) conclui que a pandemia de covid-19 teve “um significativo impacto negativo na saúde mental dos jovens portugueses, especialmente nos níveis de depressão e de ansiedade”, mas também no aumento da tristeza, medo, raiva e, enfim, descida da felicidade – segundo informação da UC à Lusa.

Este estudo sobre o efeito da pandemia na saúde mental dos jovens integra-se no projeto SMS (“Sucesso, Mente e Saúde”), financiado pelo programa “Portugal Inovação Social” e pelo município da Figueira da Foz, que tem como grande objetivo a promoção da saúde mental e o combate ao estigma social e ao insucesso escolar associados à doença mental.

Trata-se de resultados ainda preliminares, mas indicam que 14% dos adolescentes, com idades compreendidas entre os 13 e os 16 anos e uma média de idades de 14 anos, apresentam “sintomatologia depressiva elevada (acima do percentil 90) durante a pandemia, percentagem superior à encontrada num estudo conduzido pela mesma equipa de investigadores durante a crise financeira portuguesa de 2009-2014, que era de 08%”.

Este estudo longitudinal, liderado por Ana Paula Matos, docente da FPCEUC (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra) com a colaboração de investigadores das universidades Emory, nos Estados Unidos da América, e da Islândia, assinala que o referido aumento de emoções negativas, “como tristeza, medo e raiva, e de sintomas de ansiedade e de uma descida da felicidade”, coloca as raparigas em desvantagem, pois “apresentam níveis de medo, tristeza e raiva significativamente mais elevados do que os rapazes”.

Os investigadores começaram por comparar os níveis de emocionalidade negativa e positiva vivenciados pelos jovens, antes e depois da 1.ª vaga da pandemia, a partir duma amostra constituída por 206 adolescentes a frequentar o 9.º ano de escolaridade (51% raparigas), tendo-se verificado, como se disse, “um aumento significativo da tristeza, do medo e da raiva e uma descida da felicidade”. Posteriormente, na segunda vaga da pandemia em Portugal, em novembro-dezembro de 2020, em que se registou um aumento de casos na população mais jovem, parte da amostra (122 adolescentes) foi reavaliada, vindo a verificar-se “nova subida dos níveis de medo, assim como um aumento significativo de sintomas de ansiedade, comparando os dois momentos da pandemia” (primeira e segunda vagas).

Segundo Ana Paula Matos, docente da FPCEUC e investigadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental, “as raparigas apresentaram níveis significativamente mais elevados do que os rapazes, de medo, tristeza e raiva, quer antes do surto pandémico de covid-19, quer nas duas vagas da pandemia”.

Os especialistas analisaram ainda os fatores de proteção e de risco para o desenvolvimento da depressão, concluindo, segundo Paula Matos, que as competências de autocompaixão e de atenção plena (mindfulness), uma visão mais positiva de si próprio/a e a realização de mais atividades de lazer “são fatores de proteção, isto é, fatores que previnem a depressão” e que, ao invés, “a sintomatologia de ansiedade constitui um fator de risco e um preditor de depressão”.

Ana Paula Matos sustenta que estes resultados “salientam a necessidade de se dotarem os jovens de mecanismos de proteção para a depressão, promovendo competências de autocompaixão e mindfulness e uma perceção mais positiva de si próprio/a”, o que se enquadra no âmbito dos objetivos do projeto SMS, já referido, cujos resultados preliminares indicam uma redução de sintomatologia depressiva e tristeza, bem como um aumento de mecanismos de autorregulação emocional”.

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Já em abril de 2020 Patrícia Branco referia que Boaventura de Sousa Santos instigara a examinar os efeitos da quarentena provocada pela covid-19 em diversos grupos de pessoas vulneráveis ou para quem o isolamento social é muito negativo: mulheres, precários, sem-abrigo, refugiados, idosos, presos. Porém, salientava uma vulnerabilidade que merece especial atenção, a das crianças e dos jovens, pois as relações com os outros grupos apresentados são múltiplas, sendo que dessas relações depende o maior ou menor impacto que a covid-19 poderá ter sobre as crianças e os jovens. Apesar de o número de contágios entre crianças e jovens ser inferior e com efeitos ligeiros em relação ao que acontece noutros contextos epidémicos, as crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos sociais e económicos do confinamento.

É certo que as crianças não são todas iguais, nem os impactos do isolamento se lhes fazem sentir de igual modo, mas o isolamento a que estamos obrigados tem um efeito de amplificador das desigualdades sociais. E ainda não tinha vindo o segundo confinamento, que piorou tudo!

Assim, quanto ao isolamento em casa, é de referir que, a par de casas com jardim, logradouro e varanda, há casas pequenas e sobrelotadas, muitas das quais sem condições de habitabilidade e salubridade, o que torna difícil, por exemplo, lavar as mãos com frequência. Há crianças que não têm casa e muitas para quem a covid-19 pode significar ainda a perda do ou dos adultos cuidadores de referência. E é de pensar nas crianças que vivem com as mães na prisão, nas famílias monoparentais e nas crianças cujos cuidadores são as e os avós.

Ficar em casa pode efetivamente evitar o contágio, mas pode, segundo os pediatras, ter efeitos perversos no desenvolvimento, já que a assunção de vitamina D, a prática de exercício ao ar livre e a rotina de sair à rua são fundamentais e, de forma especial, para os autistas. E diga-se que o badalado superior ringesse das crianças pareceu inferior ao dos canídeos, para os quais a legislação previu o passeio higiénico acompanhado do respetivo dono.

Ora, se já nos debatíamos com a excessiva sedentarização das crianças, prisão ao mundo da consola, computador e internet e risco de obesidade, o confinamento não fez mais que agravar estas situações negativas potenciando a antissocialização das crianças e adolescentes.

Em Itália, apesar de o Governo ter esclarecido que às crianças é permitido sair por tempo breve e perto de casa, as reações logo se fizeram sentir, com muitos vizinhos a insultar os pais das crianças que saíam de casa com elas – atitude semelhante à de um fascismo social.

Ficar em casa pode ser ficar em ambiente hostil, pois, tendo aumentado a violência doméstica, aumentaram as possibilidades de estarem envolvidas crianças, para quem diminuíram as formas de se fazerem escutar, com as visitas pelas/os técnicas/os das CPCJ reduzidas ao mínimo, sendo que as escolas, muitas vezes as principais sinalizadoras das situações, fecharam.

O fecho de escolas levou à prossecução do ano escolar através de meios ou ferramentas virtuais. E os efeitos foram mais que muitos: crianças que têm computador, tablet, smartphone, que os sabem manusear ou cujos progenitores as conseguem auxiliar; crianças e progenitores que, tendo os aparelhos, são analfabetos informáticos e têm dificuldades em aceder às plataformas digitais; crianças que convivem com um ou dois progenitores em teletrabalho; e crianças que não têm computador/telemóvel, ou tendo-os, não têm acesso à internet. Ora, estas situações implicavam que, previamente, as escolas estivessem dotadas de instrumentos capazes de providenciar uma didática à distância, e que os professores fossem capazes, num curto espaço de tempo, de preparar aulas e materiais.

O regresso da telescola surgiu, mas sem garantia do acompanhamento das crianças e adolescentes, atreitos à dispersão. E fazer aulas síncronas para crianças do 1.º Ciclo a olhar para o pequeno ecrã sem verem os colegas e com a ligação a ficar intermitente não passa de remendo mal pregado. E descurou-se o papel da escola no nivelamento social, bem como a tendência para a agudização das desigualdades de aprendizagem.

Depois, o fecho das escolas não tem efeitos só em termos da aprendizagem. Há crianças cuja única refeição quente é a servida na escola. É certo que várias centenas de escolas continuam a assegurar as refeições. E, se havia famílias que, antes da pandemia, conseguiam assegurar que nada faltasse em casa, muitos trabalhadores precários ou que trabalhavam no mercado informal de trabalho perderam a sua fonte de rendimento, de que resultaram situações de desespero. E são as crianças que delas dão mais conta, revelando, nas suas ações, formas de resistência.

Enfim, há que pensar nas crianças que perderam os idosos da família sem poderem fazer o luto.

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Entretanto, surgiu em Leiria, no outono de 2016, e vem-se espalhando pelo país o programa “Brincar de Rua” para combater o sedentarismo das crianças, devolvendo-lhes a rua para brincar com a colaboração de guardiões (voluntários que recebem formação) para a brincadeira decorrer em segurança. Porém, em confinamento, edita e-books temáticos, descarregáveis gratuitamente, ajudando pais e filhos.

O “Brincar de Rua”, ora ‘recolhido’, acabou de lançar um e-book sobre o combate à obesidade infantil. De facto, a pandemia veio agravar o que era evidente: as crianças estavam confinadas em casa, entre telhados e paredes. E isso tornou-se mais visível com a pandemia. Agora os adultos (pais/avós) em casa veem como elas passam ali o dia. E, sobretudo, veem que não basta descartá-las para as instituições, mas que têm de pensar no legado a deixar-lhes.

O e-book surge como chamada de alerta para esta realidade, pois estudo recente mostra que no primeiro confinamento as crianças levaram 80% do tempo em atividades sedentárias. E a APCOI (Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil) fala do que o “Brincar de Rua” verificara: quando voltámos à escola, os miúdos pareciam mais gordinhos. E, num estudo com a Universidade de Lisboa sobre a obesidade infantil, concluiu pelo aumento do peso nas crianças.

Isto que dizer que os sinais foram acentuados pela pandemia, mas já se evidenciavam pela nossa tendência de mundo ocidental de privilegiar o estudo, focando-nos demasiado nas atividades intelectuais, sem equacionarmos como deve ser o verdadeiro impacto dos ecrãs na vida dos miúdos, “sobretudo pelo que não dão”.

Os ecrãs dão estímulos que não se coadunam com as necessidades da criança, pois a sua experiência tem de ser essencialmente sensorial e motora, de investimento corporal. E só a partir da puberdade é que as coisas mais intelectuais começam a ganhar espaço significativo.

Assim, pôr a criança de 2 anos a pegar num tablet, a de 5 anos a passar horas à frente dum ecrã ou a 10 anos a passar 300 minutos à frente dum ecrã por dia, é construir o edifício do ser pelo telhado e com riscos. Porém, isto só se consegue com empatia e sabendo lidar com as birras.

Além do aludido e-book, há vários já planeados, sendo o próximo sobre os ecrãs. A estrutura é: o que a ciência diz sobre o tema; e como podemos pensar proativamente para combater e prevenir este problema. São dirigidos aos pais e podem ser descarregados gratuitamente no site do “Brincar de Rua”. Começou-se pelo sedentarismo e obesidade infantil por se tratar do problema cuja consequência será mais silenciosa. A criança obesa pode começar a desenvolver sintomas patológicos graves. Um corpo obeso vai-se deteriorando e vai gerando patologias que se podem alojar, não de forma imediata, mas a médio e longo prazo. Assim, antes da covid, já a OMS falava da pandemia do sedentarismo e obesidade infantil.

Os responsáveis pelo “Brincar de Rua” dizem que, de momento, o programa suporta os custos com ganhos que teve antes da pandemia e com o prémio da UEFA Foundation for Children, de 2020. A UEFA reconheceu-os como entidade promotora da atividade física e bem-estar das crianças. O prémio de 50 mil euros fez ganhar uma bolsa de oxigénio, pois terminou no final de novembro o financiamento no âmbito do programa Portugal Inovação Social.

A pandemia veio reforçar o sentido de missão do Brincar de Rua, como sucedeu com outros projetos que privilegiam o modo como os pais têm de pensar o crescimento dos filhos, não deixando à escola a responsabilidade da educação dos miúdos e pensar que isto amanhã se resolve. Com efeito, não é de crer que as crianças que hoje comem mal manhã passarão a comer melhor, como, se uma criança não ganha hábitos de andar de bicicleta, correr lá fora, observar a natureza, e de a respeitar, dificilmente se tornará ativa e preocupada com o mundo que tem à sua volta. Por isso, infância não pode rimar com inatividade, indoor, afastamento social. E, se é importante dizer às crianças que agora não é o tempo de estarmos juntos, isso não pode querer dizer que deixemos de nos preocupar com os nossos vizinhos, com quem está à nossa volta, com quem se dirige a nós na rua. Ora, isto exige e espera uma verdadeira mudança, um verdadeiro movimento de transformação social.

Aquando do regresso à escola, alguns grupos quiseram voltar à rua, mas, como as regras mudavam a cada semana e eram diferentes de concelho para concelho, passou a haver instabilidade e insegurança nas pessoas. Por isso, a organização focou-se no que poderia fazer para melhorar a vida dos miúdos neste tempo de pandemia.

Entretanto, critica o facto de em Portugal se gostar muito da cultura de infantilizar as pessoas e as culpabilizar. Assim, ‘portaram-se mal no Natal e agora vão ficar todos de castigo”. E até se inventam novidades absurdas como “sair de casa com responsabilidade”.

Na verdade, é de acalentar a esperança de a pandemia ficar mais controlada para que as crianças possam voltar a brincar na rua e se encontrarem com os seus vizinhos, com os seus amigos. Temos que perceber que, por muita tecnologia e muitos avanços em muitas áreas, continuamos a ser animais que vivem num ecossistema, de que não se podem distanciar por muito que a tecnologia tenha transformado a nossa vida e nos tenha permitido criar ambientes artificiais que – de uma forma às vezes bem conseguida – reproduzem aquilo que é a vida natural.

Contam que, há dias, se fez a primeira apresentação internacional do “Brincar de Rua” muito sui generis a um grupo de miúdos do Canadá que também estão em confinamento. Como vão arrancar as AEC (atividades de enriquecimento curricular) à distância, acharam engraçado fazer esse intercâmbio com miúdos de outros países. O professor falava-lhes da varanda e eles viam pelo Google Earth o Castelo de Leiria. Porém, confessa que nada substitui o que é a experiência real.

Pela insuficiente experiência real da sociedade e da natureza, aprenderemos as lições que a pandemia nos pôde proporcionar, articulando a preservação com a humanização? 

2021.02.26 – Louro de Carvalho

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