terça-feira, 31 de maio de 2016

Dia Mundial sem Tabaco – 2016

Passa hoje, 31 de maio, o Dia Mundial sem Tabaco, criado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), em 1987, como alerta sobre doenças e mortes evitáveis relacionadas com o tabagismo.
E todas as organizações empenhadas na causa da saúde lançam insistentes avisos sobre os malefícios do tabaco. Dizem-nos, por exemplo, que metade dos fumadores morre à conta do vício. Ao todo, são cerca de 6 milhões de óbitos por ano por via do tabagismo. O tabagismo é a principal causa de morte evitável no mundo, respondendo por 63% dos óbitos relacionados com doenças crónicas não transmissíveis, 85% das mortes por doença pulmonar crónica, 30% das mortes por diversos tipos de cancro (pulmão, boca, laringe, faringe, esófago e outros), 25% dos óbitos por doença coronariana e 25% das mortes por doenças cerebrovasculares. E, se nada for feito, o mundo passará a registar mais de 8 milhões de mortes por ano a partir de 2030, sendo que mais de 80% atingirão pessoas que vivem em países de baixa e média renda.
A doença cujo espectro paira sobre a vida das pessoas é o cancro, sendo que o tabaco é a causa número um de cancro em todo o mundo. Há quem diga que a maior parte das mortes resulta dos acidentes cardíacos e vasco-cerebrais. Todavia, o fumador (tanto o ativo como o passivo) é um dos candidatos privilegiados a estas modalidades de acidentes.
A propósito do Dia Mundial sem Tabaco, a OMS defende a adoção, por parte dos países-membros, de embalagens padronizadas de cigarro e correlatos. Ou seja, todas as embalagens desse tipo de produto passarão a ser iguais, segundo um padrão definido que determina a forma, o tamanho, o modo de abertura, a cor e a fonte, mantendo-se apenas o nome da marca. Tudo isto, porque, segundo a OMS, “a epidemia do tabaco é uma das maiores ameaças à saúde pública que o mundo já enfrentou”. Mais: é vício “cada vez mais sem idade, género ou classe social”. De acordo com a OMS, os dados acerca do tabagismo têm tanto de claro como de alarmante. Destacam-se alguns:
- O tabaco, como se referiu já, mata 50% dos fumadores;
- Ao todo, são cerca de 6 milhões as pessoas que morrem anualmente à conta do vício, sendo que 5 milhões de óbitos resultam do uso direto do tabaco;
- Perto de 80% dos mais de mil milhões de fumadores em todo o mundo vivem em países com economias fracas.
- Os jovens dos países mais pobres são mais vulneráveis à propaganda do cigarro.
- É de mais de mil milhões o número das pessoas que fumam.
O tabaco, além de ser a principal causa de cancro a nível mundial, tem implicação no aparecimento da doença de forma indireta, devido ao fumo passivo. Na verdade, o fumo é capaz de causar doenças cardiovasculares e respiratórias graves em adultos e provoca, todos os anos, mais de 600 mil mortes prematuras. Em 2004, dessas mortes prematuras 28% correspondiam a morte de crianças. Todavia, como já foi dito, o cancro está longe de ser a principal consequência do tabaco. Existem outras, que vão da insuficiência renal às doenças infetocontagiosas.
Porém, o consumo de tabaco traz outras consequências, que não diretamente a morte. Assim, no caso das mulheres, do fumar desde cedo pode resultar como consequência o aparecimento precoce da menopausa e fumar durante a gravidez tem um impacto direto no ADN do feto.

Além disso, há que salientar que os efeitos nocivos do vício tabágico não estão apenas relacionados com o cigarro tradicional. São cada vez mais as evidências científicas de que os cigarros eletrónicos têm impacto prejudicial para a saúde, não sendo, muitas vezes, a melhor opção para deixar de fumar de vez, principalmente, porque, não induzindo a falta de hábito, facilmente levam o sujeito a regressar ao cigarro tradicional. Por outro lado, mantêm no utilizador alguns dos malefícios do cigarro nos lábios e língua, como o excesso de calor e mesmo a nicotina e o alcatrão. Por isso, têm de ser encarados como tabaco e não como medicamento que ajuda a deixar de fumar. Os E-cigarettes vão, por isso, passar por rigorosos testes de controlo sanitário. De acordo com a nova diretiva europeia, os cigarros eletrónicos terão de passar por testes de controlo sanitário e ser examinados exaustivamente antes da eventual catalogação como medicamentos que ajudam a deixar de fumar.

***
Entre nós, o tabaco continua a fazer mossa na saúde pública. De acordo com o relatório da Direção Geral da Saúde (DGS), ‘Portugal – Prevenção e Controlo do Tabagismo em Números 2015’, fumar foi a primeira causa de morte em Portugal, correspondendo a 11% do total de óbitos registados. O tabaco matou mais de 32 pessoas por dia. Por isso, este ano entrou em vigor uma série de alterações legislativas e regulamentares à gestão da venda do tabaco. Das imagens chocantes à ausência de aromas, passando por maços com menos de 20 cigarros e pela proibição de publicidade, são muitos os aspetos em que o panorama vai mudar. Assim:
As imagens chocantes que, a partir de hoje, vão aparecer nos maços vão tentar dissuadir as pessoas de fumar ou incentivá-las a deixar de o fazer. Mas há outras medidas que visam uma informação melhor aos fumadores sobre os perigos do tabaco. Os fabricantes dispõem de 12 meses para esgotar os stocks, mas, a partir de hoje, o fumador já poderá ser confrontado com mudanças a nível nacional e europeu.
A Comissão Europeia destaca, em comunicado às redações noticiosas, dez novas medidas tomadas em consonância com o Parlamento Europeu:
1. Os maços de tabaco passam a incluir com imagens chocantes de grandes dimensões, frases de alerta e o número da linha de saúde 24 que disponibiliza ajuda para deixar de fumar;
2. Os cigarros e o tabaco de enrolar não poderão, a partir de 2020, ter aromas caraterísticos, como o aroma a mentol ou a baunilha;
3. Em vez de indicarem o teor de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono, as embalagens de cigarros passaram a dizer que “fumo do tabaco contém mais de 70 substâncias causadoras de cancro”, passando os fabricantes e importadores de produtos do tabaco a ser obrigados a apresentar relatórios sobre os ingredientes usados em formato eletrónico;
4. Deixarão de existir maços com menos de 20 cigarros, isto porque se acredita que os maços mais pequenos são apelativos para os jovens com limitado poder de compra, pelo que as embalagens passarão a ter todas o mesmo formato paralelepipédico para que os avisos sejam bem legíveis;
5. É proibido associar marcas de cigarros a determinado estilo de vida na publicidade, fazer ofertas promocionais ou dizer que determinado produto é menos nocivo do que outro, tem melhor biodegradabilidade ou outras vantagens ambientais;
6. Os cigarros eletrónicos vão continuar a ser vendidos, mas vão incluir obrigatoriamente advertências de saúde, uma lista de todos os ingredientes contidos no produto, informações sobre o teor de nicotina do produto e um folheto com instruções de utilização e informações sobre efeitos adversos, grupos de risco, potencial de criação de dependência e toxicidade;
7. Passam os cigarros eletrónicos a ser sujeitos a normas de qualidade e de segurança, como concentrações máximas de nicotina e volumes máximos para cartuchos, reservatórios e recargas líquidas com nicotina;
8. Os fabricantes de cigarros eletrónicos terão de notificar os Estados-Membros de todos os produtos que colocam no mercado e serão investigados “quaisquer indícios de que os cigarros eletrónicos conduzem à dependência da nicotina ou ao consumo do tabaco”;
9. Poderá ser proibida a venda de determinados produtos tabágicos a consumidores doutros países, cabendo a cada país decidir se quer implementar esta medida e, por outro lado, os retalhistas passarão a ser obrigados a registar-se junto das autoridades competentes;
10. Novos elementos (visíveis e invisíveis, como hologramas) facilitarão a apreensão de produtos ilícitos.
***

Havendo que salientar que não existem duas pessoas iguais e que tem cada uma o seu organismo, o seu metabolismo e a sua forma de reagir a agressões externas, contudo, todas as pessoas – umas mais do que outras – estão vulneráveis a agentes cancerígenos.
Segundo a OMS, os agentes cancerígenos estão divididos em 4 grupos (sendo o segundo divido em dois subgrupos), consoante a gravidade: grupo 1 – cancerígeno para humanos; grupo 2A – provavelmente cancerígeno para humanos; grupo 2B – possivelmente cancerígeno para humanos; grupo 3 – não classificável; e grupo 4 – provavelmente não cancerígeno.
E é dentro do grupo 1 que estão os maiores inimigos da saúde, entre os quais se destaca o tabaco, e que são, segundo a BBC:
O tabaco (metade dos fumadores morre devido ao vício e o cigarro é de longe o maior cancerígeno do mundo moderno); o fumo passivo (mais de 600 mil pessoas morrem em cada ano devido ao fumo passivo, sendo que 28% dos óbitos são crianças); a poluição do ar (por muito adequado que seja o estilo de vida – com uma alimentação equilibrada e prática de exercício físico – a poluição do ar é altamente cancerígena, estando 1,6 mil cidades a ser vigiadas pela OMS); a exposição a raios ultravioleta (não é só no verão que é preciso ter cautela: o melanoma maligno é a principal consequência da exposição excessiva e sem proteção ao sol e é dos tipos de cancro mais fatais); o fumo dos carros a diesel (desde os anos 80 que este fumo consta no Grupo 1 dos agentes cancerígenos, pois os elevados níveis de nitroarenos afetam diretamente a saúde); os químicos formaldeídos (usados no  fabrico de resinas e presente em produtos como o solvente de cola, químico que pode ainda ser encontrado na forma líquida, o formol – a inalação pode ser fatal e dar azo ao cancro no nariz, na faringe ou à leucemia); as pílulas contracetivas – hormonas progesterona e estrogénio para reposição hormonal – cujo risco aumenta quando há uso de hormonas combinadas, sendo que as mulheres na menopausa que tomam progesterona e estrogénio correm um maior risco de sofrer de cancro da mama; o álcool (aqui, o que conta é quantidade – quanto mais, pior, e o abuso pode ser fatal); a carne processada (um aumento no consumo de 50 gramas por dia de carne processada representa em 18% a mais as probabilidades de desenvolver cancro colo-retal); e a exposição a gás radónico (gás radioativo incolor, inodoro mas altamente prejudicial à saúde, podendo originar cancro no pulmão).
***
Eis alguns dos avisos em Dia Mundial sem Tabaco, a que resiste o interesse empresarial e do Estado. Quantas empresas não fechariam portas, com o subsequente surto de desemprego! Quanto não perderia o Estado (em imposto sobre o tabaco e em IVA) se todos abandonassem o fumo! Mas vale a pena cessar e mandar parar o vício. E o grande requisito é a força de vontade.

2016.05.31 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Na esteira do jubileu dos diáconos

A propósito do jubileu dos diáconos, que decorreu em Roma, de 27 a 29 de maio e cujo encerramento ficou marcado pela celebração eucarística presidida por Francisco na Praça de São Pedro, ocorre-me uma reflexão com algumas referências à homilia papal.
O diaconado, sem a esgotar, é expressão peculiar da diaconia (serviço) na Igreja com vista à eucaristia (ação de graças celebrativa) e à koinonía (comunhão). Assim, o diácono, clérigo inserido no 1.º grau da hierarquia de ordem, enquadra-se, antes de mais, no âmbito do serviço a Cristo e à comunidade e não tanto na carreira eclesiástica e, menos ainda, na onda do prestígio social.
O diaconado de transição para o sacerdócio só difere do diaconado permanente pela sua pressuposta curta durabilidade em exercício com vista à ordenação presbiteral e, na Igreja Católica de rito latino, pela exigência do celibato. O diaconado permanente pode ser conferido a homens já matrimoniados com idade madura e sob consentimento da esposa. Porém, casados ou celibatários, não podem os diáconos contrair matrimónio depois da ordenação diaconal.
***
A reflexão sobre o diaconado deve partir do texto bíblico de Mateus, que transcreve as palavras da missão de Jesus: “...o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20, 28). Daí inferimos que o ministério diaconal é tipicamente o decorrente da vocação ao serviço, em conformação com o exemplo de Jesus, o Mestre e Servo. É em Cristo, servo do Pai e dos homens, que o diácono se fortalece no seu ministério pastoral. Jesus é o modelo perfeito do “servo” de que fala a Escritura, Aquele que Se esvaziou de Si mesmo de forma radical, para assumir “a condição de servo” (Fl 2,7) e dedicar-Se em pleno às coisas do Pai (Lc 2,49), qual Filho predileto em quem o Pai Se compraz (Mt 17,5). Não veio efetivamente para ser servido, “mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mt 20,28), lavou os pés aos discípulos e obedeceu ao desígnio misterioso do Pai “até à morte e morte de cruz” (Fl 2,8). Por isso, o Pai O exaltou e Lhe deu um nome que O fez Senhor do céu e da terra (cf Fl 2,9-11). Ora, para compreendermos o sentido do ministério diaconal, temos de olhar sempre para as atitudes concretas de Jesus, o servo do Pai e o exemplo dos cristãos.
Também Francisco centra a sua reflexão diaconal na expressão “servo de Cristo” (Gl 1,10), com a qual Paulo, que no início da carta aos Gálatas se apresentara como apóstolo por vontade do Senhor Jesus (cf Gl 1,1), define o seu estatuto apostólico. Por outro lado, o Papa assegura que os termos, apóstolo e servo, andam juntos, não podendo separar-se, mas funcionando como as duas faces duma mesma medalha ou duma mesma moeda: “quem anuncia Jesus é chamado a servir, e quem serve anuncia Jesus”. E fundamenta as suas declarações no exemplo modelar de Cristo:
“O primeiro que nos mostrou isto mesmo foi o Senhor: Ele, a Palavra do Pai, Ele que nos trouxe a boa-nova (cf Is 61,1), Ele que em Si mesmo é a boa-nova (cf Lc 4,18), fez-Se nosso servo (Fl 2, 7), ‘não veio para ser servido, mas para servir’ (Mc 10,45). ‘Fez-Se diácono de todos’, como escreveu um Padre da Igreja (S. Policarpo, Ad Philippenses V, 2).
Ora, como Cristo fez, assim são chamados a fazer os seus anunciadores, os seus pregoeiros “cheios de misericórdia e de zelo, caminhando segundo a caridade do Senhor, que Se fez servo de todos” (ib). Porque o discípulo não é mais do que o Mestre, não pode seguir um caminho diferente do caminho do Mestre. Mais: este Mestre é ele próprio o caminho. E ingressar neste caminho implica imitá-Lo, tal como fez Paulo, que almejou tornar-se servo.
Jesus, o Servo e o Senhor, é também Aquele que chama a ser como Ele, porque só no serviço, o ser humano descobre a dignidade própria e a dos outros. Chama a servir como Ele serviu: quando as relações interpessoais se inspiram no serviço recíproco, cria-se o mundo novo, em que se desenvolve uma autêntica cultura vocacional, realiza-se a palavra, Onde estou eu, aí também estará meu servo” (Jo 12,26) e ressoará sempre o apelo do Senhor: “Se alguém quer servir-me, siga-me” (Jo 12,26). Portanto, não há lugar a medo de acolher Cristo. Encontrar-se-ão dificuldades, mas encontrar-se-á a felicidade por servir e a capacidade de testemunho daquela alegria que o mundo não pode dar, qual chama viva do amor infinito e eterno.
A vocação do diácono permanente é a vocação do serviço. Por isso, ele é simultaneamente pai e esposo, exerce uma profissão civil e consagra-se à comunidade eclesial pelo sacramento da Ordem. É uma vocação que abrange três aspetos ou grandes dimensões: familiar, profissional e eclesial. Embora constituam desafios próprios, não deixam de contribuir positivamente para a realização da vocação diaconal. Administrar tais desafios e colocá-los ao serviço da missão configura a tarefa de cada dia. Requer-se maturidade para atribuir a cada função o peso certo no momento exato. A harmonização dos possíveis conflitos exige uma escala de valores ditada pela vivência dos sacramentos do Matrimónio e da Ordem e pela responsabilidade profissional. Não se privilegia uma das dimensões em detrimento das outras, mas, ao dar prioridade momentânea a uma delas, buscar-se-á o equilíbrio. Sem tal harmonia não existe plena realização vocacional.
Para servir em diaconia é preciso assumir a vida do “servo Jesus” onde se espelha a história de cada vocação, a história do Criador para com o ser humano, história que passa pelo chamamento a servir e culmina na descoberta do nome novo pensado por Deus para cada um. Sendo assim, a pessoa chamada ao ministério diaconal alcança a sua identidade na orientação para a realização de si mesma, o que a torna livre e feliz. Com efeito, a vocação do diácono permanente é, sempre e por natureza, vocação ao serviço generoso a Deus e ao próximo. A diaconia (diakonía) é um verdadeiro e próprio itinerário pastoral.
***
A este respeito, o Papa Francisco assegura que, “se evangelizar é a missão dada a cada cristão no Batismo, servir é o estilo pelo qual viver a missão numa linha de serviço é o único modo de ser discípulo de Jesus”. E “é sua testemunha quem faz como Ele: quem serve os irmãos e as irmãs, sem se cansar de Cristo humilde, sem se cansar da vida cristã que é vida de serviço”.
O primeiro passo para nos tornarmos “servos bons e fiéis” (cf Mt 25,21) é sentirmo-nos instados a viver na disponibilidade. O servo aprende, a cada momento, a desprender-se da tendência a dispor de tudo para si e de dispor de si mesmo como quer. De facto, quem serve – diz o Papa – “não é um guardião cioso do seu tempo, antes renuncia a ser senhor do seu próprio dia” e “sabe que o tempo que vive não lhe pertence, mas é um dom que recebe de Deus a fim de, por sua vez, o oferecer: só assim produzirá verdadeiramente fruto”. Mas atenção: o servidor não é um escravo daquilo que fixa a agenda; ao invés, está disponível para o não programado, “pronto para o irmão e aberto ao imprevisto, que nunca falta, sendo tantas vezes a surpresa diária de Deus”. Neste sentido, porque “o servo não se cinge aos horários”, Francisco repele a existência dum horário nas paróquias, questionando se, fechada a porta, “não há padre, nem diácono, nem leigo que receba as pessoas…”. Por isso, pede aos diáconos que deixem “cair os horários”, que tenham “a coragem de pôr de lado os horários”, pois, “vivendo na disponibilidade”, o seu serviço “será livre de qualquer interesse próprio e evangelicamente fecundo”.
***
Também o Evangelho do IX domingo do tempo comum (Lc 7,1-10) fala de serviço, mostrando-nos dois servos: o servo do centurião, curado por Jesus, e o próprio centurião, ao serviço do Imperador. Surpreendem as palavras com que manda recado a Jesus para não vir a sua casa, “Não Te incomodes, Senhor, pois não sou digno de que entres sob o meu teto” (v. 6) e “nem me julguei digno de ir ter contigo” (v. 7); e, ainda, “também eu tenho os meus superiores a quem devo obediência e soldados sob as minhas ordens” (v. 8). São palavras bem diferentes das que tendencialmente dizemos em nossas orações. Jesus admira a grande humildade, a mansidão do centurião. E – conclui o Papa – a mansidão é uma das virtudes dos diáconos.
Em nome do serviço, o diácono é manso e assume o estilo de servo e não cai na veleidade de simular de padre. O centurião, confrontado com o problema que o atingia, fazendo valer a sua autoridade, poderia ter feito alarido para ser ouvido. Pelo contrário, faz-se pequeno, discreto, manso. Comporta-se segundo o estilo de Jesus, que é “manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Na verdade, o Deus Amor leva o seu amor até ao ponto de nos servir: é paciente, benévolo, sempre disponível e bem disposto, sofre com os nossos erros e procura o caminho da ajuda a tornarmo-nos melhores. Manso e humilde devem ser os adjetivos caraterizadores do serviço cristão, que é imitar Deus servindo os outros: acolhendo-os com amor paciente, sem nos cansarmos de os compreender, fazendo com que se sintam bem-vindos a casa, à comunidade eclesial, onde o maior não é quem manda, mas quem serve (cf Lc 22,26). Na mansidão de serviço, em que nunca deve haver ralhos, os diáconos amadurecerão a vocação pessoal de ministros da caridade em comunhão, que disponibilizam em prol da comunidade.
Contemplado que foi o serviço de Cristo, de Paulo e do centurião, há que olhar para um terceiro servo: o que é curado por Jesus. Este servo, que estava doente (sem que se saiba de que doença grave sofria), era muito querido do seu amo (v. 2). De acordo com as considerações papais, também nos devemos reconhecer naquele servo:
 “Cada um de nós é muito querido de Deus, amado e escolhido por Ele; somos chamados a servir, mas primeiro precisamos de ser curados interiormente. Para estar apto ao serviço, precisamos da saúde do coração: um coração curado por Deus, que se sinta perdoado e não seja fechado nem duro. Ser-nos-á útil rezar confiadamente todos os dias por isto, pedindo para sermos curados por Jesus, assemelhar-nos a Ele, que “já não nos chama servos, mas amigos” (cf Jo 15,15).
Ganhando o hábito da oração em que apresentem as fadigas, os imprevistos, os cansaços e as esperanças – uma oração verdadeira que leve a vida ao Senhor e traga o Senhor à vida – os diáconos tornar-se-ão dignos de servir à Mesa Eucarística, onde encontrarão a presença de Jesus, que Se dá a eles para que eles se doem aos outros.
***
Pelo exposto, concluiremos que os diáconos, enquanto homens escolhidos por Deus, respondem generosamente à vocação a que são chamados por Deus, confirmada pelo bispo e pela comunidade. Cheios do Espírito Santo e conduzidos por Ele, entregam-se à realização da missão da Igreja no ministério do serviço, como colaboradores do bispo (que detém a plenitude do ministério sacerdotal), realizando a sua missão em unidade com o presbitério (os padres).
O diácono não é diácono só quando está no altar. É-o também quando imerso nas realidades do dia a dia, na história concreta que lhe cabe viver. A identidade e o papel do diácono na Igreja é ser sinal de Cristo-Servo e animador da “diaconía” da Igreja, da vocação ao serviço de cada comunidade eclesial e de cada cristão. O diácono tem a graça peculiar de detetar os necessitados e de fazer surgir os diferentes serviços, seja dentro da comunidade, seja da comunidade para o mundo. Mediante o serviço da Palavra, da Liturgia e da Caridade, o diácono leva todos os membros da Igreja a viver em plenitude o serviço, tornando a Igreja um sinal autêntico de Cristo-Servo que prossegue a realização da sua obra de salvação nos dias de hoje.
O diácono é construtor e animador dum novo rosto de Igreja, uma Igreja  acolhedora, serviçal, criativa, solidária, ministerial, de comunhão e participação. Portanto, a missão do diácono é a missão da Igreja (evangelizar para construir o Reino de Deus). Porém, ele realiza esta missão destacando a dimensão do serviço. A sua missão específica é fazer com que a Igreja seja uma Igreja servidora, para que seja vivida e testemunhada a palavra de Cristo: “...o Filho do homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por todos” (Mt 20,28).
O diaconado, constituindo o ingresso no estado clerical, é o primeiro grau do Sacramento da Ordem, sendo os outros o presbiterado e o episcopado. Portanto, diáconos, presbíteros e bispos compõem a hierarquia da Igreja. São impostas as mãos aos diáconos para o ministério e não para o sacerdócio. A Ordem imprime caráter, que, neste caso, o faz diácono para sempre.
***
O diaconado foi estabelecido pelos apóstolos conforme iam surgindo as necessidades na Igreja e para a elas acorrer, como se pode ver no livro dos Atos (At 6,1-6). Os apóstolos impuseram as mãos sobre os primeiros sete diáconos: Filipe, Prócoro, Nicanor, Tímon, Pérmenas, Nicolau e Estêvão que foi o protomártir (At 6,8-7,60). Podemos, ainda, ver outras referências como Fl 1,1 e 1Tm 3,8-ss. Permaneceu florescente na Igreja do Ocidente até ao século V, tendo desaparecido, depois, por várias razões históricas, uma das quais foi a prevalência da prebenda sobre o serviço comunitário.
Foi restabelecido pelo Concílio Vaticano II. Inicialmente foi regulamentado pelo Papa Paulo VI, em 1967, pelo Motu Próprio “Sacrum Diaconatus Ordinem”. Em 31 de março desse ano, foram promulgadas pela Congregação para o Clero as “Normas Fundamentais para a Formação dos Diáconos Permanentes”. Estes documentos deixam explícito que “a restauração do diaconado permanente numa nação não implica a obrigação da sua restauração em todas as dioceses”, competindo ao Bispo Diocesano restaurá-lo.
Se ficar viúvo, o diácono permanente pode ser ordenado presbítero. No entanto, precisa de autorização especial e de completar os estudos, de concordância do Bispo e do Conselho de Presbíteros e de, forma preponderante, da certeza absoluta de sua vocação ao presbiterado.
Para se tornar diácono permanente, por norma, o candidato deve ter formação de, pelo menos três anos de duração, em Teologia Bíblica, Dogmática, Liturgia e Pastoral; deve, no caso de matrimoniado, estar casado no mínimo há cinco anos; há de ter pelo menos 35 anos de idade; deve apresentar vida matrimonial e eclesial exemplar; e deve ainda obter autorização da esposa. Depois, as dioceses têm normas específicas. Em geral, o candidato é escolhido entre aqueles que sobressaem na comunidade pela sua espiritualidade e compromisso com a mesma comunidade, mas nada impede que alguém explicite ao pároco ou mesmo ao bispo diocesano a sua vocação de servir à Igreja como ministro ordenado.
No atinente às suas funções, o diácono é ordenado para servir. Integra o ministério do Cristo-Servo, “que veio para servir e não para ser servido”. A Lumen Gentium diz que os diáconos “servem o povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e da caridade” (LG 29). Na liturgia eucarística, o diácono tem funções próprias: proclamar o Evangelho, servir ao altar, instar ao abraço da paz, purificar os vasos sagrados e fazer a despedida. Incentiva, ainda, a participação correta e efetiva da assembleia na Liturgia. O diácono, ordenado para o serviço e não para o sacerdócio, é ministro ordinário dum Sacramento, o do Batismo; é também ministro ordinário da Comunhão Eucarística; e pode ainda ministrar todos os sacramentais, dar a bênção com o Santíssimo Sacramento e presidir à celebração do matrimónio.
Em tese, pode exercer o seu ministério em qualquer lugar do mundo, pois, afinal de contas ele recebeu um sacramento válido para a Igreja, que é una, santa e católica, ou seja, universal. No entanto, o diácono está intimamente ligado ao bispo diocesano a quem deve plena obediência. O bispo pode colocá-lo como auxiliar noutra paróquia, desde que disponha de tempo e tenha autorização do titular competente.
O diácono permanente é o único a poder viver a dupla sacramentalidade, a da Ordem e a do Matrimónio. Uma não elimina a outra. A vida matrimonial é, portanto, vivida em sua plenitude. Esta é a razão pela qual a esposa tem que autorizar, por escrito, e de viva voz, no momento da ordenação. O bispo pede a sua autorização para ordenar o marido. Todo o seu trabalho é uma doação à Igreja. No entanto, nada impede que seja ressarcido de todos os gastos que venha a fazer como, por exemplo, com o combustível que gasta nas suas locomoções no exercício do seu ministério. Geralmente, o diácono, além de nada receber, presta a sua ajuda pecuniária à paróquia onde atua, já que deve ter suficiência económica.
Prosit!

2016.05.30 – Louro de Carvalho

Ante o sofrimento, o custo de nada fazer é demasiado elevado!

Quem o diz é Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, que esteve recentemente em Portugal e que gere “uma pesada e lenta organização de 85 mil funcionários”, mas onde quem manda efetivamente são os cinco membros do Conselho de Segurança que detêm o direito de veto. Luísa Meireles ouviu-o em entrevista que a “revista” do Expresso, de 28 de maio, publicou. Do seu conteúdo retêm-se os elementos principais.
O mandato de 10 anos do líder executivo da ONU (Organização das Nações Unidas) ficou marcado por vários conflitos armados e por um agravamento das condições de vida à escala global. Apesar de a ONU não ter um papel determinante nas políticas económicas mundiais, tem a função de gestão das desigualdades e sua correção ou minimização e de promoção da paz, ordem e estabilidade mundiais. Não se distancia da nova ordem económica internacional.
No quadro desta problemática, Ban Ki-Moon não esquece as crises que vêm eclodindo em todo o mundo, destacando o que se tem passado na Síria, Líbia, Sudão do Sul e noutros lugares (podia ter referido o Iraque, o Afeganistão, a Tunísia e o Egito…). As crises que enuncia são, na sua ótica, muito sérias, desenvolvem-se quase em simultâneo, inscrevem-se no âmbito geral da crise humanitária e na crise de desenvolvimento, acompanhadas lateralmente pelo espectro das alterações climáticas.
Atacar estas crises exige uma boa dose de humildade e de dedicação e a consciência das limitações em conseguir a sua irreversível solução, uma vez que a ONU é uma instância internacional, sendo que os seus Estados-Membros têm dificuldade em prescindir das suas perspetivas nacionais “muito estreitas”. Na verdade, “quando abordamos questões globais, todos deveriam aqui chegar com uma visão global para alcançarmos soluções globais”.
***
Desafiado a pronunciar-se sobre o mérito do seu desempenho, declara nunca ter hesitado em enfrentar os problemas por mais difíceis e perigosos que sejam, tendo feito o melhor que pôde. Mais: espera “ser lembrado como um secretário-geral que tentou tornar as coisas melhores para todos, de coração”.
Depois, enuncia as principais consecuções do seu duplo mandato. As nações “adaptaram a agenda 2030 para o desenvolvimento a 17 objetivos sustentáveis” e, após anos e anos de grande discussão, “adotaram o acordo de Paris para as alterações climáticas”. Desde o primeiro dia, empenhou-se “em fazer aplicar os ODM (objetivos de desenvolvimento do milénio) e agora os ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável)”, que “são muito mais abrangentes, ambiciosos e visionários”.
Reconhece que o acordo de Paris, embora não seja o fim, mas “o ponto de viragem para as comunidades internacionais colocarem o mundo num caminho sustentável para enfrentar as alterações climáticas”, assume a cimeira de Paris como um momento-chave.
Revelou que a comunidade internacional não estava desperta para a urgência de resolver as alterações climáticas. Por isso, teve que ir a muitos sítios, como o Ártico (duas vezes), a Amazónia e o Chade, donde enviou sinais de alarme para todo o mundo. Convocou encontros informais sobre a matéria em 2007, 2009, 2013 e 2014. E convocou cimeiras sobre questões de desenvolvimento em 2008, 2010, 2013 e 2015.
As agendas climáticas e de desenvolvimento tiveram de começar a ser debatidas em paralelo, porque, “sem debater as alterações climáticas, todos os ODS seriam seriamente comprometidos, embora estes também abranjam os nossos esforços relativamente às alterações climáticas”.      
***
Do que se lamenta, em particular, é da negação, do ceticismo ou da indisponibilidade de muitos líderes para a mudança das indústrias dependentes dos combustíveis fósseis. Trata-se de um quadro mental “drasticamente virado para a economia do carbono”. E Ban Ki-Moon apela constantemente a líderes e comunidades empresariais e à sociedade civil no sentido de virem a privilegiar a economia baseada na energia sustentável – solar, eólica e de marés. E sustenta que “esta economia baseada nas emissões de baixo carbono é inevitável, é benéfica para toda a economia no seu conjunto e já está a acontecer em todo o mundo”.
Entretanto, não disfarça o enfrentamento dos desafios que se colocam à ONU. No mundo inteiro, milhões de pessoas sofrem o impacto da guerra dos desastres naturais. São as ondas enormes e contínuas de refugiados, os terrorismos organizados em outros moldes, o crime violento organizado. De tudo isto resulta uma situação de sofrimento humano cujo nível “é o mais elevado desde a II Guerra Mundial”.
Neste contexto, defende que “precisamos e iniciar uma mudança na maneira como lidamos com as crises e ajudamos as pessoas como uma comunidade global”. É preciso “dar melhores respostas ao sofrimento e reduzir as necessidades na sua origem” e sobretudo alicerçar a convicção de que “o custo de não fazer nada é demasiado elevado”.
***
No capítulo dos migrantes e refugiados, menciona António Guterres como “um dos grandes líderes das Nações Unidas”, salienta a sua “forte visão” e releva o facto de como ACNUR (Alto Comissário para os Refugiados) ter dado “um grande contributo à Humanidade”.
Hesita na crítica às políticas europeias sobre migrantes e refugiados. Por um lado, aprecia a generosidade dos europeus e o esforço de reunião dos líderes para discutirem estas matérias; por outro, preocupam-no as atitudes de alguns Estados-Membros, nomeadamente a sua relutância.
Ora, tratando-se de um número sem precedentes de pessoas que deixam as suas casas por falta de segurança ou por iminente perigo de vida, não podem servir de bode expiatório dos males que acontecem por toda a parte nem podem ser discriminados. Devem, antes, merecer solidariedade e generosidade. Por isso, o secretário-geral, depois de ter convocado para Istambul a Cimeira Humanitária Mundial, de 23 e 24 de maio, vai organizar uma convenção ao nível da ONU para tratar dos assuntos dos migrantes e refugiados a nível global, a 19 de setembro, esperando que venha a ter um impacto global na partilha de responsabilidades.
Sobre a Síria, após as diligências feitas e tendo em conta as que estão em curso, bem como as graves questões de segurança que atingem algumas zonas populacionais, refere a necessidade de se encontrar uma solução política e, simultaneamente, de se fornecer assistência humanitária de emergência a muitos refugiados.
Em relação a mais dois conflitos internos que grassam na Guiné-Bissau e em Moçambique, afirma ter mobilizado os presidentes dos respetivos países, Portugal e os demais Estados-Membros da CPLP, a União Europeia e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental para que envidem esforços no sentido de os líderes ultrapassarem, em nome do bem comum, os diferendos que duram há muito tempo e que já deviam estar ultrapassados para os países poderem avançar.
***
No entanto, são muitos os que apontam à ONU a sobreposição da inércia organizativa à sua missão humanitária. Revelam-se as fragilidades da ONU e as Nações Unidas como entidade, como um todo, começam a perder uma certa autoridade e até credibilidade no cenário mundial.
António Monteiro, antigo embaixador com uma longa carreira diplomática ligada às Nações Unidas, sustenta que “a ONU tem como principal objetivo zelar pela paz e pela segurança internacionais e, portanto, o papel da ONU é sempre um papel desejavelmente desempenhado no sentido de encontrar plataformas de entendimento sobretudo em situações de extrema violência, como esta que se verifica no Médio Oriente”. Todavia, refere as suas limitações:
“Infelizmente, desde a sua criação, as Nações Unidas não conseguiram ter um papel fundamental na questão do Médio Oriente. Mas isso não é culpa inteiramente das Nações Unidas, a culpa principal aqui até talvez se possa dividir nos países que a compõem porque a vontade da ONU é a vontade política dos países e sobretudo ao nível do Conselho de Segurança.”.
O mandato de Ban Ki-moon vem marcado por anos de vários conflitos e crises, crises sucessivas que afetaram e afetam praticamente todo o mundo e em que o papel das Nações Unidas foi em muitos aspetos subalternizado e até marginalizado. Convenha-se que a culpa não cabe propriamente ao secretário-geral, mas ao ambiente internacional, ao alastramento e agudização dos nacionalismos, à ótica particular dos Estados-Membros, ao veto dos notáveis no conselho de Segurança e à perda de força do multilateralismo”.
Tem razão António Monteiro ao referir que, após o tempo de Kofi Annan, o escândalo do “Oil-for-food” e do surgimento dum novo olhar de desconfiança sobre a ONU, “Ban Ki-moon teve um mandato mais tranquilo”, provavelmente com menos visibilidade, mas mais sujeito ao modo como “os países olharam para as Nações Unidas como instrumento principal da segurança, paz e estabilidade no mundo”.
Se é verdade que a visão de um homem tudo pode fazer na direção de uma agremiação em ordem ao seu sucesso, também é certo que o bloqueio da parte dos grandes tudo pode colocar em causa, travar os mais audazes projetos e inviabilizar os mais nobre desígnios.

 2016.05.29 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de maio de 2016

A propósito dos Congressos Eucarísticos de 2016

Entre a data própria da solenidade do Corpus Christi na Igreja Latina, que decorreu a 26 de maio, e a sua celebração no domingo subsequente levada a cabo nalguns países e tendo em conta que se avizinha a realização de dois congressos Eucarísticos Nacionais, o de Portugal, em Fátima, de 10 a 12 de junho, e o do Brasil, em Belém do Pará, de 15 a 21 de agosto, parece-me pertinente uma reflexão sobre o conteúdo e importância destes eventos.    
Um Congresso Eucarístico (CE), seja qual for a sua dimensão geográfica é uma demonstração pública de fé na presença real de Cristo na Eucaristia, com manifestações de ensinamento e adoração, compromisso e testemunho. Através de serviços litúrgicos, cerimónias religiosas públicas, secundadas por missões especializadas, reuniões de estudo, com o conveniente aparato solene, a revelar o grande valor duma celebração organizada ao mais alto nível, o CE reveste-se de inquestionável significado espiritual, moralizador e didático do maior valor, pelo que se considera da maior importância nos nossos tempos.
Um CE pode ser realizado: a nível diocesano ou interdiocesano, em que são chamados a participar, todo o clero e fiéis da(s) diocese(s) organizadora(s); a nível nacional, em que ficam envolvidos, todo o clero e fiéis de uma nação inteira; e a nível internacional, em que deve haver uma representação de todos os países do mundo católico.
Também em algumas dioceses se realizaram congressos eucarísticos de nível arciprestal. Pessoalmente, tive o ensejo de participar ativamente na organização e celebração do Congresso Eucarístico Arciprestal de Sernancelhe, cujo encerramento ocorreu a 13 de novembro de 1988 e que decorreu em paralelo com o Congresso Arciprestal dos Leigos no mesmo arciprestado. E não posso deixar de recordar o impulso que que os oradores deram à reflexão em torno da Eucaristia, em particular Mons. Bouça Pires e Mons. Jacinto Botelho, agora bispo emérito de Lamego, bem como a mensagem que o arcebispo-bispo de Lamego então endereçou ao povo reunido na Praça do Município através do secretário-geral do congresso.
***
Os CE nasceram na segunda metade do século XIX (no ano de 1881) em França. Foi Emilie Tamisier (1834 – 1910), orientada por S. Pedro Julião Eymard (1811 – 1868), conhecido como o Apóstolo da Eucaristia, quem os inspirou, tomando algumas significativas iniciativas de adoração eucarística e dando azo a que Marie Marthe Tamisier de Touraine e Mons. Louis Gaston de Segur, com a comparticipação do industrial Philibert Vrau, tomassem em mãos a organização do I Congresso Eucarístico Internacional, com a ajuda de outros leigos, sacerdotes e bispos e com a aprovação papal de Leão XIII. Realizou-se na Universidade de Lille, em torno do tema, “A Eucaristia salva o mundo, com a presença de mais de 8000 pessoas da França, da Bélgica, da Holanda, da Inglaterra, da Espanha, da Suíça, da Grécia, do México e do Chile.
Apostava-se então numa renovada fé em Cristo presente na Eucaristia como remédio contra a ignorância e a indiferença religiosas.
Inspirado pela viva fé na presença real da pessoa de Jesus Cristo no sacramento da Eucaristia, o culto desenvolvido nos primeiros congressos manifestava-se de modo particular pela adoração solene e pelas grandiosas procissões que evidenciavam a dimensão triunfal da Eucaristia.
A partir dos decretos Sacra Tridentina Synodus (1905), sobre a comunhão frequente, e  Quam Singularis (1910), sobre a comunhão das crianças, ambos de S. Pio X, na preparação e na celebração dos Congressos, devia promover-se a comunhão frequente dos adultos e a primeira comunhão das crianças. Com o pontificado de Pio XI, o CE ganhou dimensão internacional e intercontinental, pois começou a ser celebrado rotativamente em todos os Continentes, adquirindo uma vertente missionária e de “reevangelização” (termo já usado para a preparação do Congresso de Manila de 1937). A partir do 37.° Congresso, celebrado em Munique em 1960, os Congressos Eucarísticos Internacionais foram chamados  statio orbis (designação proposta pelo conhecido liturgista Josef Jungmann, SJ), com a celebração da Eucaristia como centro e ápice de todas as várias manifestações e formas de devoção eucarística. Por seu turno, o Concílio Vaticano II, com a Constitução Sacrosanctum Concilium, de 1963, a Instrução Eucharisticum mysterium, de 1967 (n.º 67) e o Ritual Romano De sacra comunione e de cultu mysterii eucaristici extra Missam, de 1973 (nn.109-112), apresentam a nova imagem e indicam os critérios para a preparação e a celebração dos CE, que se abriram, doravante aos problemas do mundo contemporâneo, ao ecumenismo e, na fase de preparação, ao diálogo inter-religioso.
***
Um CE há de concitar a convergência de todas as pessoas que professam a fé católica na realidade da Eucaristia e que desejam dar público testemunho da sua fé, pessoal e comunitária, na presença real do Senhor Jesus, animando, consolando e convertendo os fiéis. O CE é uma demonstração pública da fé: Anunciamos a sua morte e proclamamos a sua ressurreição! Vinde Senhor Jesus! O Papa Leão XIII afirmou aos organizadores do 1.º  Congresso Eucarístico Internacional que os Congressos Eucarísticos nasceram “para acender em todos o fogo celeste que Cristo trouxe à terra e que quer acender, sobretudo por meio da Eucaristia”. Este é um objetivo que as mais recentes orientações da Santa Sé concretizam em três direções: uma catequese mais intensa sobre a Eucaristia, especialmente enquanto mistério de Cristo, vivo e operante na Igreja; uma participação mais ativa na sagrada liturgia, que promova a religiosa escuta da Palavra de Deus e o sentido fraterno da comunidade; e uma busca atenta de iniciativas e de uma cuidadosa realização de obras sociais, que favoreçam a promoção humana e a devida comunhão de bens, inclusive temporais, a exemplo da comunidade cristã primitiva, de modo que a mesa Eucarística seja o centro difusor do fermento do Evangelho.
Assim, um CE não se pode resumir a um ciclo de palestras, de atos adoração ao Santíssimo Sacramento, celebrações festivas da Eucaristia, encontro e convívio de pessoas de muitas nações, raças e cores, nem a um acontecimento passageiro (ainda que grandioso e espetacular), nem a alguns milhares de pessoas com possibilidade de se deslocarem a qualquer lugar como em agradável passeio. O essencial do CE consiste na caminhada evangelizadora que as pessoas e as comunidades são chamadas a fazer, para que a Eucaristia seja percebida e assumida como mistério de fé, mistério de doação e fonte de Liberdade. O CE, mais do que um fruto, terá que ser uma semente, um dinamismo que alastra a todo o povo cristão, no seguimento da ordem: Ide, é a missão!
O povo das Escrituras caminhava rumo à Terra Prometida transportando consigo a arca da aliança, com as tábuas da lei, orientado por meio de Moisés e seus colaboradores; o povo do Novo Testamento caminha na história, em vista de novos céus e novas terras, levando consigo Jesus Cristo, alimentado pela Palavra das Escrituras e pela Eucaristia, a qual é o maior tesouro da Igreja Católica, porque é a presença do próprio Jesus Cristo no meio do povo de Deus. Um CE quer, pois, reafirmar esta certeza: Ele está no meio de Nós! É um convite a todos que escutam este convite de fé: Vinde e Vede! (Jo 1,39). A partir desta profissão explícita da fé na Eucaristia e reafirmando a nossa certeza da vida eterna, para lá dos horizontes da nossa história, pelo CE, buscamos as consequências práticas, o compromisso deste gesto tão sublime de adoração. Adoraremos o Senhor em Espírito e Verdade (cf Jo 4,24). Mas um ato de adoração radical a Jesus na Eucaristia implica um compromisso de coerência e autenticidade cristã. Por isso, um CE tem implicações teológicas e espirituais, pastorais e missionárias, catequéticas e vocacionais, sociais e políticas, culturais e ecológicas, ecuménicas e inter-religiosas. Adoramos Jesus na Eucaristia e queremos anunciá-Lo a todos os homens e mulheres do nosso tempo, como o Libertador e Salvador que nos assegura vida em abundância (Jo 10,10).
Desde o início, os CE tiveram três caraterísticas essenciais: aprofundar a doutrina cristã sobre a Eucaristia; prestar culto público e solene ao Santíssimo Sacramento (adoração e reparação); e manifestar a universalidade e unidade da Igreja. Posteriormente, os CE passaram a abarcar também aspetos sociopolíticos diversificados e temáticas específicas: irradiar para a Igreja e para a sociedade os frutos da Eucaristia na ação social; promover seminários temáticos para públicos específicos (crianças, jovens, militares, universitários, operários, políticos e empresários, casais e idosos, doentes e deficientes, prisioneiros e dependentes de drogas, marginalizados e excluídos) – privilegiando temáticas como “Eucaristia e Missionariedade” e “Eucaristia, Evangelização e Meios de Comunicação Social”.
Para atingir seus objetivos, os CE realizam atividades diversificadas: reflexões teológico-pastorais; solenes celebrações litúrgicas; programas populares de educação da fé, como, por exemplo, missões populares; jornadas sociais em favor dos pobres e excluídos.
***
O Congresso Eucarístico Nacional (CEN) é realizado em cada país Católico no mundo. Portugal, que já organizou três CEN, vai celebrar o seu 4.º Congresso Eucarístico Nacional, de 10 a 12 de junho em Fátima, em torno do tema “Viver a Eucaristia, fonte de Misericórdia”.
No Brasil, já houve 16 CEN. O primeiro realizou-se em 1933, em Salvador, Arquidiocese Primaz do Brasil, com o tema “Vinde, adoremos o Santíssimo Sacramento. Desde então, ocorre em diversas cidades brasileiras. E o mais recente (o 16.º) realizou-se de 13 a 16 de maio de 2010, em Brasília, com o tema “Eucaristia, Pão da Unidade dos Discípulos Missionários”.
Este ano Belém irá receber o CEN16. Em 1953, a capital paraense recebeu pela 1.ª vez o Congresso. Agora, também o XVII Congresso Eucarístico Nacional constituirá um grande evento nos 400 anos da cidade e nos 400 anos de Evangelização da Amazónia. A expectativa é que o evento reúna pelo menos 550.000 pessoas, entre bispos, sacerdotes, expositores e todo o povo de Deus, que deseja reafirmar a fé em Cristo Eucarístico, refletindo o tema “Eucaristia e Partilha na Amazónia Missionária” e o lema “Eles O reconheceram no partir do Pão” (cf Lc 24,35). Uma vasta programação está a ser preparada para receber os peregrinos e participantes entre os dias 15 e 21 de agosto. O Arcebispo Metropolitano de Belém, Dom Alberto Taveira Corrêa, ressalta a consciência que a Igreja de Belém tem acerca da grandiosidade deste CEN:
“É a segunda vez que o evento acontece em nossa cidade, cabe-nos uma grande responsabilidade, pois seremos a capital eucarística de nosso país, acolhendo pessoas de todas as regiões do Brasil. Temos em mãos a responsabilidade de mostrar para o Brasil as nossas riquezas e a maior delas é a nossa fé. Desejamos tornar visível em todo o Brasil a força da Eucaristia e a ação missionária na Amazónia, de um povo de fé que testemunha com sua cultura e maneira de ser Igreja viva na Amazónia”.
***

 Recorde-se que 2016 é o ano 51.º Congresso Eucarístico Internacional, que se celebrou em Cebu, Filipinas, em 24-31 de janeiro de 2016, e cujo encerramento contou com a presidência do Papa Francisco. Além disso, desde agosto de 2015, celebraram-se os seguintes congressos nacionais eucarísticos ou em que a Eucaristia pontifica, o que revela o apreço por tão augusto mistério e a necessidade de colocar a vida em coerência com a sua celebração: o X Congresso Eucarístico Nacional do Peru, em Piura (13-16 de agosto de 2015); o VI Congresso Eucarístico Nacional do México, em Monterrey (9-13 de setembro de 2015); o V Congresso Eucarístico Nacional da Bolívia, em Tarija (16-20 de setembro de 2015);  o I Congresso Eucarístico Nacional da República Tcheca, em Brno (17 de outubro de 2015); o Congresso Eucarístico Nacional da Índia, em Mumbai (12-15 de novembro de 2015); o Congresso Nacional da Lituânia sobre a Misericórdia, em Vilnius (6-8 de maio de 2016); e o Congresso Eucarístico Nacional da Bielorrússia, em Grodno (24-26 de maio de 2016).

***

Por ocasião da preparação do I Congresso Eucarístico Internacional, em 1881, foi constituído, com a aprovação do papa Leão XIII, um Comité permanente a que João Paulo II deu o título de “Pontifício”. O seu estatuto, fiel à originária inspiração, indica as finalidades: “O Pontifício Comité propõe-se fazer conhecer, amar e servir sempre melhor, Nosso Senhor Jesus Cristo no seu Mistério Eucarístico, centro da vida da Igreja e da sua missão para a salvação do mundo”.
Para tanto:
Promove a celebração periódica dos Congressos Eucarísticos Internacionais; convoca as Conferências Episcopais e os Sínodos Patriarcais para que nomeiem os Delegados nacionais, que se empenham na preparação dos Congressos e, quando necessário, constituam com a aprovação e com a contribuição da autoridade eclesiástica local, os Comités Eucarísticos Nacionais; favorece e privilegia aquelas iniciativas que, em harmonia com as disposições vigentes da Igreja, têm o objetivo de incrementar a devoção no mistério eucarístico em todos os seus aspetos, desde a celebração da Eucaristia  até ao culto extra missam; e requer, aos Delegados nacionais ou, se existirem, aos Comités Nacionais, a documentação e informação sobre o movimento eucarístico dos respetivos Países.
Na preparação dos Congressos Eucarísticos Internacionais – e, se for necessário, também dos Congressos Eucarísticos Nacionais – o Pontifício Comité oferece a sua colaboração. Segundo o Estatuto, pertence ao presidente do Comité local procurar colaborar estritamente com o Pontifício  Comité na escolha  do tema, na redação do texto-base e particularmente na participação ativa na assembleia plenária do Pontifício Comité; e também na programação da celebração do Congresso.
Em termos da preparação, o Ritual Romano privilegia os seguintes elementos:
- Uma mais intensa catequese sobre a Eucaristia, sobretudo como Mistério de Cristo vivente e operante na Igreja – indicada pelas competentes autoridades locais;
- Uma maior participação ativa na sagrada liturgia, para promover a religiosa escuta da Palavra de Deus e o sentido fraterno da comunidade;
- Uma atenta pesquisa de iniciativas e uma ativa realização de obras sociais para favorecer a promoção humana e a devida comunhão também dos bens temporais, a exemplo da primeira comunidade cristã, de modo que a mesa eucarística seja o centro de difusão do fermento do Evangelho, como força propulsora para a construção da sociedade humana neste mundo e garantia do mundo futuro.
Para uma preparação espiritualmente frutuosa, torna-se conveniente celebrar e viver os tempos fortes do Ano Litúrgico desde o Advento até à Quaresma e preparar-se com novenas e tríduos para as grandes festas como o Pentecostes e o Corpus Christi.
No quadro da celebração, o Ritual Romano indica os seguintes critérios:
- A Celebração Eucarística seja o centro e o ápice de todas as várias manifestações e formas de piedade;
- As celebrações da Palavra de Deus, as sessões de catequese e as reuniões plenárias sejam ordenadas por um aprofundamento do tema proposto e por uma mais clara explicação dos aspetos práticos do tema na sua realização concreta.
- Prepare-se um programa oportuno de reuniões de oração e adoração prolongadas à frente do Santíssimo exposto, em igrejas determinadas, particularmente indicadas para esses exercícios de piedade;
- Quanto à  procissão com o Santíssimo pelas ruas da cidade, acompanhada com hinos e orações, observem-se as normas sobre as procissões eucarísticas, tendo em conta a situação social e religiosa local.
***
É grande e interpelante o mistério da divina Caridade e da sua imensa misericórdia!

2016.05.28 – Louro de Carvalho