segunda-feira, 30 de maio de 2016

Ante o sofrimento, o custo de nada fazer é demasiado elevado!

Quem o diz é Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, que esteve recentemente em Portugal e que gere “uma pesada e lenta organização de 85 mil funcionários”, mas onde quem manda efetivamente são os cinco membros do Conselho de Segurança que detêm o direito de veto. Luísa Meireles ouviu-o em entrevista que a “revista” do Expresso, de 28 de maio, publicou. Do seu conteúdo retêm-se os elementos principais.
O mandato de 10 anos do líder executivo da ONU (Organização das Nações Unidas) ficou marcado por vários conflitos armados e por um agravamento das condições de vida à escala global. Apesar de a ONU não ter um papel determinante nas políticas económicas mundiais, tem a função de gestão das desigualdades e sua correção ou minimização e de promoção da paz, ordem e estabilidade mundiais. Não se distancia da nova ordem económica internacional.
No quadro desta problemática, Ban Ki-Moon não esquece as crises que vêm eclodindo em todo o mundo, destacando o que se tem passado na Síria, Líbia, Sudão do Sul e noutros lugares (podia ter referido o Iraque, o Afeganistão, a Tunísia e o Egito…). As crises que enuncia são, na sua ótica, muito sérias, desenvolvem-se quase em simultâneo, inscrevem-se no âmbito geral da crise humanitária e na crise de desenvolvimento, acompanhadas lateralmente pelo espectro das alterações climáticas.
Atacar estas crises exige uma boa dose de humildade e de dedicação e a consciência das limitações em conseguir a sua irreversível solução, uma vez que a ONU é uma instância internacional, sendo que os seus Estados-Membros têm dificuldade em prescindir das suas perspetivas nacionais “muito estreitas”. Na verdade, “quando abordamos questões globais, todos deveriam aqui chegar com uma visão global para alcançarmos soluções globais”.
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Desafiado a pronunciar-se sobre o mérito do seu desempenho, declara nunca ter hesitado em enfrentar os problemas por mais difíceis e perigosos que sejam, tendo feito o melhor que pôde. Mais: espera “ser lembrado como um secretário-geral que tentou tornar as coisas melhores para todos, de coração”.
Depois, enuncia as principais consecuções do seu duplo mandato. As nações “adaptaram a agenda 2030 para o desenvolvimento a 17 objetivos sustentáveis” e, após anos e anos de grande discussão, “adotaram o acordo de Paris para as alterações climáticas”. Desde o primeiro dia, empenhou-se “em fazer aplicar os ODM (objetivos de desenvolvimento do milénio) e agora os ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável)”, que “são muito mais abrangentes, ambiciosos e visionários”.
Reconhece que o acordo de Paris, embora não seja o fim, mas “o ponto de viragem para as comunidades internacionais colocarem o mundo num caminho sustentável para enfrentar as alterações climáticas”, assume a cimeira de Paris como um momento-chave.
Revelou que a comunidade internacional não estava desperta para a urgência de resolver as alterações climáticas. Por isso, teve que ir a muitos sítios, como o Ártico (duas vezes), a Amazónia e o Chade, donde enviou sinais de alarme para todo o mundo. Convocou encontros informais sobre a matéria em 2007, 2009, 2013 e 2014. E convocou cimeiras sobre questões de desenvolvimento em 2008, 2010, 2013 e 2015.
As agendas climáticas e de desenvolvimento tiveram de começar a ser debatidas em paralelo, porque, “sem debater as alterações climáticas, todos os ODS seriam seriamente comprometidos, embora estes também abranjam os nossos esforços relativamente às alterações climáticas”.      
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Do que se lamenta, em particular, é da negação, do ceticismo ou da indisponibilidade de muitos líderes para a mudança das indústrias dependentes dos combustíveis fósseis. Trata-se de um quadro mental “drasticamente virado para a economia do carbono”. E Ban Ki-Moon apela constantemente a líderes e comunidades empresariais e à sociedade civil no sentido de virem a privilegiar a economia baseada na energia sustentável – solar, eólica e de marés. E sustenta que “esta economia baseada nas emissões de baixo carbono é inevitável, é benéfica para toda a economia no seu conjunto e já está a acontecer em todo o mundo”.
Entretanto, não disfarça o enfrentamento dos desafios que se colocam à ONU. No mundo inteiro, milhões de pessoas sofrem o impacto da guerra dos desastres naturais. São as ondas enormes e contínuas de refugiados, os terrorismos organizados em outros moldes, o crime violento organizado. De tudo isto resulta uma situação de sofrimento humano cujo nível “é o mais elevado desde a II Guerra Mundial”.
Neste contexto, defende que “precisamos e iniciar uma mudança na maneira como lidamos com as crises e ajudamos as pessoas como uma comunidade global”. É preciso “dar melhores respostas ao sofrimento e reduzir as necessidades na sua origem” e sobretudo alicerçar a convicção de que “o custo de não fazer nada é demasiado elevado”.
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No capítulo dos migrantes e refugiados, menciona António Guterres como “um dos grandes líderes das Nações Unidas”, salienta a sua “forte visão” e releva o facto de como ACNUR (Alto Comissário para os Refugiados) ter dado “um grande contributo à Humanidade”.
Hesita na crítica às políticas europeias sobre migrantes e refugiados. Por um lado, aprecia a generosidade dos europeus e o esforço de reunião dos líderes para discutirem estas matérias; por outro, preocupam-no as atitudes de alguns Estados-Membros, nomeadamente a sua relutância.
Ora, tratando-se de um número sem precedentes de pessoas que deixam as suas casas por falta de segurança ou por iminente perigo de vida, não podem servir de bode expiatório dos males que acontecem por toda a parte nem podem ser discriminados. Devem, antes, merecer solidariedade e generosidade. Por isso, o secretário-geral, depois de ter convocado para Istambul a Cimeira Humanitária Mundial, de 23 e 24 de maio, vai organizar uma convenção ao nível da ONU para tratar dos assuntos dos migrantes e refugiados a nível global, a 19 de setembro, esperando que venha a ter um impacto global na partilha de responsabilidades.
Sobre a Síria, após as diligências feitas e tendo em conta as que estão em curso, bem como as graves questões de segurança que atingem algumas zonas populacionais, refere a necessidade de se encontrar uma solução política e, simultaneamente, de se fornecer assistência humanitária de emergência a muitos refugiados.
Em relação a mais dois conflitos internos que grassam na Guiné-Bissau e em Moçambique, afirma ter mobilizado os presidentes dos respetivos países, Portugal e os demais Estados-Membros da CPLP, a União Europeia e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental para que envidem esforços no sentido de os líderes ultrapassarem, em nome do bem comum, os diferendos que duram há muito tempo e que já deviam estar ultrapassados para os países poderem avançar.
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No entanto, são muitos os que apontam à ONU a sobreposição da inércia organizativa à sua missão humanitária. Revelam-se as fragilidades da ONU e as Nações Unidas como entidade, como um todo, começam a perder uma certa autoridade e até credibilidade no cenário mundial.
António Monteiro, antigo embaixador com uma longa carreira diplomática ligada às Nações Unidas, sustenta que “a ONU tem como principal objetivo zelar pela paz e pela segurança internacionais e, portanto, o papel da ONU é sempre um papel desejavelmente desempenhado no sentido de encontrar plataformas de entendimento sobretudo em situações de extrema violência, como esta que se verifica no Médio Oriente”. Todavia, refere as suas limitações:
“Infelizmente, desde a sua criação, as Nações Unidas não conseguiram ter um papel fundamental na questão do Médio Oriente. Mas isso não é culpa inteiramente das Nações Unidas, a culpa principal aqui até talvez se possa dividir nos países que a compõem porque a vontade da ONU é a vontade política dos países e sobretudo ao nível do Conselho de Segurança.”.
O mandato de Ban Ki-moon vem marcado por anos de vários conflitos e crises, crises sucessivas que afetaram e afetam praticamente todo o mundo e em que o papel das Nações Unidas foi em muitos aspetos subalternizado e até marginalizado. Convenha-se que a culpa não cabe propriamente ao secretário-geral, mas ao ambiente internacional, ao alastramento e agudização dos nacionalismos, à ótica particular dos Estados-Membros, ao veto dos notáveis no conselho de Segurança e à perda de força do multilateralismo”.
Tem razão António Monteiro ao referir que, após o tempo de Kofi Annan, o escândalo do “Oil-for-food” e do surgimento dum novo olhar de desconfiança sobre a ONU, “Ban Ki-moon teve um mandato mais tranquilo”, provavelmente com menos visibilidade, mas mais sujeito ao modo como “os países olharam para as Nações Unidas como instrumento principal da segurança, paz e estabilidade no mundo”.
Se é verdade que a visão de um homem tudo pode fazer na direção de uma agremiação em ordem ao seu sucesso, também é certo que o bloqueio da parte dos grandes tudo pode colocar em causa, travar os mais audazes projetos e inviabilizar os mais nobre desígnios.

 2016.05.29 – Louro de Carvalho

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