quinta-feira, 12 de maio de 2016

Indicações de Aquilino sobre a Língua Portuguesa (II)

Já vimos, a 28 de abril, alguns dos pertinentes registos que Vasco Botelho do Amaral faz, em Estudos de Apoio ao Português (Almedina: 1976), de excertos da lição que Aquilino publicou no jornal O Século, de 25 de maio de 1949, sobre a Língua Portuguesa. Fizemos o levantamento de algumas das questões que o escritor levantou e que agora vamos retomar.
Em termos da corruptibilidade, mestre Aquilino considera que a Língua, enquanto organismo vivo em permanente mutação, se vê sujeita a corruptelas de diversos matizes de que urge preservá-la. E a vacina contra as corruptelas passa pela leitura assídua, recreativa e metódica dos grandes escritores, para o que se afigura pertinente a organização e a publicação de boas antologias ou florilégios de textos representativos da obra literária dos mais diversos e dos melhores prosadores e poetas, sob critérios de imparcialidade, estética e adequação aos objetivos definidos e com os oportunos comentários críticos. Por outro lado, impõe-se o contacto com o povo (cuja alma pulsa no mais imo do país profundo), que redunde na recolha de expressões, adágios, lendas e cantigas ou que materialize em viagens, ações de campo, celebração de efemérides, participação em festejos, utilização de bibliotecas e salas de leitura. Pode ainda promover-se o turismo da Língua, facultando a permuta de saberes e linguajares e a pesquisa bibliográfica e documental. Se na leitura dos grandes, se alcança a mestria do manejo linguístico, com a imersão no coração do povo ganha-se seguramente a genuinidade e conquista-se a autenticidade.
Quanto ao abastardamento pela via dos barbarismos e solecismos (oriundo da ignorância dos que fazem da língua o ganha-pão e da pretensa incapacidade de a língua exprimir o vocabulário técnico-científico), entende-se que a crítica deverá levar os manejadores do instrumento linguístico – palavra e texto – à conveniente demora inicial e estudo afincado rumo à obtenção da disciplina e paciência que tornem a obra literária fluente, natural e interiorizante da personalidade do escriba como se fora o fruto suado da boa técnica manual, longe da mecanização impertinente que ameaça todos os ramos e setores da atividade. Por outro lado, se é certo que, tal como Lucrécio se queixava, o Latim não era apto para exteriorizar as categorias da filosofia, esta língua dotou todo o Império das estruturas jurídico-políticas (que se fundam em categorias cognitivas e de pensamento) e, na Idade Média, herdando as estruturas linguísticas do classicismo, conseguiu, embora ajudada pela patrologia latina, fixar e reordenar as grandes consecuções da filosofia do Ocidente. Depois, nos séculos XVI e XVII, também o Latim serviu para corporizar as categorizações científicas, mormente nos domínios da Química, da Zoologia e da Botânica. Ora, no atinente ao Português, tem de se reconhecer que, com o andar do tempo e a mobilização das vontades, se encontram formas de arrumação e de expressão satisfatórias – assim o queiram as academias e os cientistas da Língua. Todos se lembram de como o desporto-rei de servido quase exclusivamente por termos ingleses passou a utilizar vocábulos e expressões bem portuguesas. Basta que se trave o pedantismo de quem só se sente bem com o estrangeirismo ou pensa que “a ciência se escreve em Inglês”. O Português é bem capaz de digerir o arrevesado termo estrangeiro através do aportuguesamento, isto é, da suave “amoldação” aos balizamentos lexicais, fonológicos e morfológicos estipulados pela Gramática da Língua Portuguesa. A informática tem vindo a dar o exemplo.
Em contraponto, à sobranceria dos perigos que espreitam do exterior, Aquilino inscreve os internos, bem mais nefastos, que se sintetizam em dois: a imperícia dos maus escribas e o pechisbeque dos iconoclastas. Os inimigos internos são mais perigosos que os externos, pois, enquanto estes nos escoltam vigiando as brechas por onde nos possam invadir (para o que pode ser montada uma prevenção eficiente), aqueles dormem e crescem connosco e, conhecendo nossas fragilidades, matam mais discretamente e sepultam com menor solenidade – sem resistências!
***
Vem, a seguir, o sermão das virtualidade do Português, ultrapassando as singelas asserções de que o idioma é um poderoso instrumento de expressão do pensamento e da emoção, um seguro veículo de aquisição e transmissão de cultura e de acompanhamento da marcha da civilização e uma fonte inesgotável de inúmeros recursos ou, com já se disse, um organismo vivo em constante transformação. Vai muito mais longe ao considerá-lo o mais lídimo e precioso de todos os patrimónios. Garante mesmo a perenidade da Língua e até a sua eternidade, graças à capacidade, inerente a si própria, de resistência a todas as vicissitudes. E, exemplificando:
Se acabaram a Hélade com a sua graça e o Império Romano com a sua força militar e jurídica, mas restaram o grego e o latim como referências, modelos e veículos de ideias e artes; e, se a Alemanha todo-poderosa com ganas de hegemonia mundial se deixou ensanguentar por duas vezes e, por duas vezes, correu o risco de perecer, mas ficou com maiores musculatura e pujança a língua de Schiler, de Goethe e de Kant a inspirar pensamentos, linhas políticas e a testemunhar documentalmente realizações e a possibilitar a comunicação em termos de maior urgência de reconstrução em moldes de dramatismos ou de otimismos – é porque a língua não morre assim!
Quanto ao Português, interroga-se:
Demais, podemos nós ora questionar: que outro mais valioso tesouro deixámos nós, além da língua, em territórios como o Brasil ou a Índia, Angola ou Moçambique, Guiné ou Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, em Macau ou em Timor-Leste? [E acrescente-se: e agora, nas diversas comunidades da diáspora?]
E deve responder-se:
É a Língua Portuguesa a única garantia de que se perpetua nesses territórios a portugalidade que emana do génio luso, seja através dos falantes que sobrem, seja através dos testemunhos de natureza documental e monumental e que continuem a solicitar a presença dialogante de estudiosos provenientes deste “jardim à beira-mar plantado”, no dizer de Tomás Ribeiro.
Com sobrada razão – continua o Mestre da Língua – a obra escrita hoje oferece, seja pela natureza dos materiais mobilizados, seja pelos esquemas montados de divulgação, e até difusão, uma possibilidade de maior resistência quer aos atropelos ditados pela ignorância ou pelo pedantismo quer ao desgaste provocado pelos estragos do tempo, que a escrita de outrora, encostada às telas de pergaminho ou de papiro ou passada às lisas superfícies das tégulas, tabuinhas e lousas, cuja utilização era solicitada pela necessidade de imediata aplicação.
E conclui com a pertinente asserção de que a Língua é uma vestidura do pensamento, mas uma vestidura especial, já que não se limita a envolvê-lo e a mostrá-lo, mas também é capaz de o arquitetar e estruturar para depois o espelhar de forma eloquente e determinada, assumindo mesmo um estatuto de caprichoso matiz comunicativo. “Quem escreve corretamente pensa com mais justeza!” – avisa o Mestre com um saber de leitura e experiência feito, ele que se sujeitou, como escritor, ao longo da vida e pela produção literária, às mais diversas críticas e a algumas perseguições.
***
Estamos indubitavelmente a tanger os fundamentos sobre os quais se pode erigir com a necessária solidez o edifício inabalável que dentro de si contenha as bases eficientes da preservação, cuidado e apreciação da Língua Portuguesa com vista à sua manipulação fecunda e sadia. E não foi em vão que o poderoso prosador e estilista lançou o desafio do alto daquele púlpito eloquente, aliás comum a tantos outros mestres e cultores da língua e das belas letras, entre os quais é lícito destacar um Sá de Miranda e um Camões, um Rodrigues Lobo e um António Vieira, um Luís António Verney e um Du Bocage, um Camilo Castelo Branco e um Eça de Queirós, um Fernando Pessoa e um Miguel Torga, uma Marquesa de Alorna e uma Florbela Espanca, um Vergílio Ferreira e um José Saramago, uma Natália Correia e uma Sophia de Mello Breyner. Porém, o artista da prosa, profissional da palavra e amante da Língua Portuguesa explicita de forma inequívoca, no prefácio-dedicatória a Terras do Demo (endereçado a Carlos malheiro Dias), as bases da preservação da língua, que se passam a sintetizar:
- Abstrair da linguagem erudita forjada pelos árcades, pregadores e gongóricos de má morte (abominar a verborreia cultista e a justaposição concetista, bem como renunciar ao espírito demasiado seletivista e truncante do arcadismo e ao endeusamento da palavra, a qual é afinal um instrumento da comunicação e da estética);
- Recorrer às aquisições da ciência no tocante às enfermidades da alma e do corpo e à utilização de técnicas não severas (com a noção de que a dureza e a agressividade da linguagem não são boas conselheiras neste domínio, mas sim a doçura e a afabilidade de trato, tirando partido da melodia do fraseado);
- Escrever com pena de aço e não de pato (em apoio da musculatura discursiva, da precisão, da vernaculidade, da têmpera e da rijeza, com a exclusão determinada do solecismo e do barbarismo, do puritanismo, do balofismo e da fatuidade);
- Renovar o veio da língua picando na nascente (ir à matriz essencial da formação da língua – o grego e o latim, como se fez na era de Quinhentos);
- Ir à aldeia onde pulsa o coração do povo (o grande construtor da língua e onde mergulha o discurso genuíno dos mestres) em contraponto com a esquisitice um tanto caprichosa da urbe (é certo que na urbe também há povo, a ter em conta na locupletação do património linguístico; todavia, é na aldeia, na vila ou na pequena cidade que o linguajar é mais autêntico, porque a vida e as relações humanas são mais naturais).
***
E, a par dos atropelos – permitidos pela mediocridade campeante nas inovações de alguns e na incompetência de tantos ou solicitados pela pressa e irreflexão de outros ou, ainda, instados pela moda e pressão do uso quase permanente e absorvente dos modernos aparelhos e mecanismos de comunicação e entretenimento (telemóvel, ipad, chat, sms, e-mail, facebook, etc.) – pululam em abundância suficiente os especialistas que ensinam a prevenir, a preservar e promover o tesouro da língua e a utilizá-lo de forma correta ao serviço da expressão humana e do culto dos valores estético-artísticos, sugerindo a aposta forte numa política audaz da Língua Portuguesa quer a nível interno quer a nível externo. Mais do que atender à anarquia linguística e à mediocridade de conteúdos espelhada em muita da rasteira comunicação social, importa atender a quem ensina, a quem promove, a quem aprecia – tirando do tesouro comum coisas novas e velhas para realizar o homem de pensamento, expressão e comunicação e para construir solidamente o devir dialógico da comunidade justa, eficaz, relacional e solidária. Assim ajam os políticos (condutores de pátrias lusófonas ou acompanhantes de pátrias lusíadas na diáspora) e o entendam os potenciais clientes, os autóctones e os estrangeiros. Assim o tenham em conta, escolas, academias, instituições culturais, meios de comunicação, autarquias, Igrejas, partidos e todos os utilizadores da Língua!

2016.05.11 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário