terça-feira, 3 de maio de 2016

As escolas não fizeram a transição do século XX para o XXI

Realizou-se, no passado dia 30 de abril, no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, a Conferência subordinada ao tema “Currículo para o Século XXI: competências, conhecimentos e valores numa escolaridade de 12 anos”. Esta iniciativa da Direção-Geral da Educação contou com a presença do Ministro da Educação e do Secretário de Estado da Educação.
A “Conferência”, que teve significativa participação, quer em presença, quer à distância, mediante vídeo-difusão, constou de comunicações, na modalidade de conferência, proferidas por especialistas nacionais e internacionais, e de painéis temáticos em que foram debatidos temas específicos, do interesse dos representantes das associações de professores das várias áreas curriculares. O programa iniciou-se com a sessão de abertura, em que intervieram: Guilherme d´Oliveira Martins, Administrador Executivo da Fundação Calouste Gulbenkian; José Vítor Pedroso, Diretor-Geral da Educação; e João Costa, Secretário de Estado da Educação. E a sessão de encerramento foi presidida pelo Ministro da Educação.
Do recheio do programa constaram três intervenções na modalidade de conferência dirigidas a todos os participantes sobre os temas: “Education and Social Progress (Educação e Progresso Social), por Andreas Schleicher, OCDE, Director for Education and Skills; “Nueve valores educativos para sobrevivir en una sociedade del conocimiento (Nove valores educativos para sobreviver numa sociedade do conhecimento), por Daniel Innerarity, catedrático de filosofia política e social, investigador “Ikerbasque” na Universidade do País Basco e diretor do Instituto de Governança Democrática; e “Que Educação para o Mundo da vida do século XXI? Perfis, Objetivos e Desafios”, por Guilherme d'Oliveira Martins. E foram organizados quatro painéis temáticos dirigidos a participantes específicos, designadamente as associações de professores interessadas:
Painel 1 – A Literacia no Currículo e a Aprendizagem da Língua – Português, Línguas Clássicas e Línguas Estrangeiras;
Painel 2 – O Domínio das Expressões no Currículo: competências, conceitos e estratégias na Educação Artística e na Educação Física;
Painel 3 – As Ciências Sociais e Humanas no Currículo: os conhecimentos e as competências para construir sociedades mais sustentáveis e inclusivas; e
Painel 4 – As Competências no Domínio da Matemática, das Ciências e das Tecnologias: conhecimentos, estratégias e competências científicas e tecnológicas.
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O Expresso, na edição on line de 30 de abril, recolhe em entrevista a Andreas Schleicher, diretor do departamento de Educação e Competências da OCDE, o essencial do que é preciso mudar no ensino para garantir jovens bem sucedidos, num mundo que “já não recompensa as pessoas apenas por aquilo que sabem”. O especialista, que é o responsável máximo pelos testes PISA – provas que não determinam um juízo de valor sobe os alunos, mas sobre os países participantes no estudo, entende que Portugal vem a melhorar, mas está longe dos melhores desempenhos.
Com efeito, o método de ensino nas nossas escolas tem de evoluir adaptando-se às novas exigências, como frisa Schleicher, um dos oradores convidados da “Conferência” e um dos mais influentes no setor da educação. Graças a ele, muitos países promoveram reformas no sistema de ensino ante os fracos resultados obtidos nos testes do PISA (Programme for International Students Assessment), que ele lançou em 2000.
Na verdade, o PISA realiza a maior comparação internacional na área da educação, levada a cabo em 65 países e economias e aplicada, de três em três anos, a uma amostra de mais de meio milhão de jovens. Com a divulgação dos resultados, fica-se a saber quem melhorou, quem piorou e quem se destaca nestes rankings de testagem da literacia matemática, científica e de leitura dos alunos aos 15 anos.
Há uma geração, os professores esperavam “que o que ensinavam aos alunos seria válido ao longo de toda a vida”. Porém, as escolas têm, hoje, de preparar os estudantes para uma mudança socioeconómica muitíssimo rápida, para empregos que ainda nem foram criados, para a utilização de tecnologias que ainda não existem e para a resolução de problemas que ainda não sabemos que vão surgir. “O sucesso educativo já não reside maioritariamente na reprodução de conteúdos, mas na extrapolação do que sabemos e na sua aplicação criativa a situações novas” – diz Schleicher. Por isso, “a educação tem cada vez mais que ver com o desenvolvimento da criatividade, do pensamento crítico, da resolução de problemas e da tomada de decisões; e com formas de trabalho que implicam comunicação e colaboração”.
Enclausurados numa única disciplina, não desenvolveremos as competências para topar donde surgirá a próxima invenção significativa. Por isso, o foco do próximo teste do PISA incidirá nas “Competências Globais”. Mas, no século XXI, temos de ir mais adiante reconhecendo a insuficiência do conhecimento e das competências per se. Pegando no caso de banqueiros criativos que arruinaram o sistema financeiro e de empreendedores que estão à frente de organizações mafiosas, o responsável do PISA sustenta a necessidade do cultivo de “qualidades mais vastas a nível do caráter” – empatia, resiliência, curiosidade, coragem, liderança e valores. É isto, feito “de forma pensada e sistemática”, que distinguirá o currículo do século XXI do currículo tradicional.
Se considerarmos a relação entre a carga horária letiva e os resultados educativos em cada país, “encontramos uma relação positiva”. Porém, comparando os diferentes países, verificamos não haver relação unívoca entre os dois fatores. De facto, os resultados educativos “são sempre fruto da quantidade e da qualidade do ensino”. Assim, porque a Finlândia investe em experiências educativas de qualidade muito alta, os estudantes conseguem bons resultados, mesmo com horário mais curto do que em outros países.
No caso português, se considerarmos os dados do PISA, os alunos tendem para boas prestações em tarefas que exigem a reprodução dos conteúdos, mas não são tão bons na sua aplicação criativa. Neste aspeto, as escolas ainda não fizeram a transição de século. Todavia, a prestação dos alunos é apreciada “de forma muito positiva” e “Portugal registou desde 2000 uma das melhorias mais acentuadas entre todos os países da OCDE”.
Não obstante, há que descolar do sistema tradicional, mais burocrático – em que “os professores são frequentemente deixados sozinhos nas salas de aula e lhes é dito tudo o que têm de ensinar” – para um sistema de escola diferente. Neste, as escolas apresentam melhores desempenhos porque “estabelecem metas ambiciosas, são claras acerca do que os estudantes devem ser capazes de fazer, mas dão aos docentes a autonomia para definir que conteúdos e que tipo de ensino precisam de dar aos seus alunos”. Em vez de alunos diferentes serem ensinados da mesma forma, nas melhores escolas aceita-se a diversidade e usam-se práticas pedagógicas diferenciadas; o ensino deixa de ficar centrado no currículo para se centrar no aluno.
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Por seu turno, o Ministro Educação aponta o facto de os documentos curriculares dos ensinos básico e secundário, em vigor, terem sido “homologados e implementados ao longo dos últimos 26 anos”. E estranha a coexistência, na mesma disciplina, de situações muito díspares, por exemplo: programas de 1991 com metas curriculares de 2014, programas de 2001 com metas curriculares de 2014, programas e metas curriculares de 2015.
Tradicionalmente considera-se como currículo escolar o conjunto de planos de estudo que integram disciplinas, organizadas por áreas disciplinares e/ou componentes de formação. O saber disciplinar que se aprende na escola inclui as regras e padrões que influenciam a forma de pensar, comunicar e interagir dos alunos, bem como o tipo de olhar que eles constroem sobre si próprios e sobre o mundo. Porém, considera-se que “o currículo escolar não abrange tudo o que se aprende, seja no domínio específico de cada área do saber, seja nos domínios mais transversais de desenvolvimento pessoal, social e cultural”. E Tiago Brandão Rodrigues acompanha Schleicher ao afirmar que as sociedades atuais se debatem com inexplicáveis “questões como a imprevisibilidade do futuro e a sustentabilidade dos atuais padrões de desenvolvimento económico”. Hoje a educação e a escola enfrentam os graves desafios que resultam da globalização, da convivência multicultural e dos rápidos desenvolvimentos económicos e tecnológicos, que “suscitam novas questões e exigências”.
Não se pode afirmar hoje que o conhecimento emerja exclusivamente da escola, embora esta continue como “o território de referência para a construção do saber, através da relação educativa pessoal estabelecida pela presença do professor”. A escola de hoje “é o território de eleição no desenvolvimento de competências para a sociedade do conhecimento e para o exercício de uma cidadania ativa e democrática”. Assim, “numa sociedade e economia” assentes na aprendizagem, saber e qualificações, a educação é, ao mesmo tempo, “condição de empregabilidade e competitividade” e “condição fundamental para uma sociedade coesa e progressiva”. Por isso, a aposta na educação e qualificação” é “um meio imprescindível para a valorização dos cidadãos, para uma cidadania democrática e para o desenvolvimento sustentável do país”. Neste contexto, o Ministro apela à reflexão sobre as opções a tomar no desenho curricular, projetado para os 12 anos da escolaridade obrigatória, no atinente: às escolhas curriculares para garantia do acesso de todos ao conhecimento; a seleção de conhecimentos significativos para a visão dos jovens sobre o mundo e necessários para o transformarem; a definição de competências e valores a adquirir na escola pelos jovens, com vista a uma sociedade mais desenvolvida, mais justa e mais democrática.
Aqui, os professores – diz o Ministro – “enquanto agentes principais do desenvolvimento do currículo, têm um papel fundamental na sua avaliação, na reflexão sobre as opções a tomar e na sua exequibilidade e adequação aos contextos de cada comunidade escolar, tornando-o um efetivo instrumento da promoção do sucesso escolar para todos”.
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E Daniel Innerarity, na sua comunicação, desenvolveu os nove valores educativos para a sobrevivência numa sociedade do conhecimento: a reflexividade (o importante é o saber novo); a incerteza (é preciso gerir o que não sabemos); a benéfica destruição do conhecimento (é preciso aniquilar a informação, o esquecimento e a desatenção); a interpretação (é conveniente fazer-se um ideia geral); a criatividade (o difícil não é encontrar, mas buscar); a autonomia (é preciso pensar por si mesmo); a inexatidão (é preciso apreciar as coisas mesmo que o seu valor não seja muito grande); a incompetência (é preciso questionar para que serve aquilo que serve); e a inutilidade (é preciso apreciar o saber em si mesmo, independentemente de ele ser aplicável no imediato).
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Trata-se, pois, de uma iniciativa cujo objeto são temas cuja reflexão deve chegar a todos os agentes educativos, para ver se, mudando de paradigma educacional, se dá a volta a esta sociedade em que a cidadania é atropelada a cada passo e em qualquer esquina, em que o mundo é cada vez mais o mundo dos poucos que se julgam seus donos únicos.

2016.05.03 – Louro de Carvalho

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