domingo, 15 de maio de 2016

A Solenidade do Pentecostes – origem e significado

Celebra-se 50 dias após o domingo de Páscoa para festejar a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos reunidos em oração no cenáculo, acompanhados pela Mãe de Jesus (At 2,1ss).
Enquanto, na tarde do dia da Ressurreição, o Ressuscitado apareceu aos Onze que estavam na casa cenacular com as portas fechadas, lhes comunicou a paz e lhes deu a força do Espírito Santo com o poder de ofertar aos homens o perdão dos pecados, o que reiterou oito dias depois já na presença de Tomé (cf Jo 20,19ss), agora cumpre-se a plenitude pascal, isto é, os apóstolos (já com o colégio reconstituído com a eleição de Matias) recebem a força do Espírito teofanicamente visibilizado nas línguas de fogo (vd At 1,14.15-26; 2,1-4). E, com essa força, Pedro discursa perante os judeus provenientes dos diversos pontos da diáspora (ocasionalmente presentes em Jerusalém) expondo os principais itens da pregação apostólica (que ouvia cada um na sua própria língua): a crucifixão de Jesus (2,23) e a sua ressurreição (2,24); o ministério terrestre do Senhor (2,22); e o cumprimento das profecias realizadas em Jesus, o Senhor e Cristo (2,16.24-25.31.36).
A exposição deste plano de Deus suscita a pergunta do povo sobre o que deve fazer, a que o apóstolo responde com o pedido de arrependimento, a receção do batismo para remissão dos pecados com o dom do Espírito Santo (cf At 2,37-42) – de que resultou a primeira comunidade cristã modelar: “assíduos ao ensino dos apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações”, possuindo tudo em comum (cf At 2,42-47).
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Mas a festa de Pentecostes, originariamente conhecida como a festa da colheita (cf Ex 23,16) já era comum na cultura religiosa dos povos semitas. E, no Antigo Testamento, constituía uma celebração da bondade de Deus que dera ao povo “uma terra de trigo e cevada, vinhos, figueiras e romãzeiras, uma terra de óleo de olivas e de mel” (cf Dt 8,8). Em resposta de gratidão, os israelitas ofereciam-Lhe, entre cantos de alegria, as primícias. Tudo isto acontecia 50 dias (sete semanas) após a festa dos ázimos, em que se comemorava o êxodo, ou o dia da libertação do regime de escravidão do povo no Egito.
De modo semelhante, no Novo Testamento, o Pentecostes canta as maravilhas e a abundância de Deus, já não só nas sementeiras da seara, mas sobretudo na messe íntima dos corações e no seio da comunidade que vive a alegria da ressurreição do Senhor. Porque os Apóstolos “estavam reunidos num mesmo lugar” (At 2,1), quando “de repente veio do céu um ruído” (v. 2) e “ficaram cheios do Espírito Santo” (v. 4), hoje o fiel, que levanta os braços ao céu, agradece não só “uma terra de trigo e cevada, vinhas, figueiras e romãzeiras” (dons materiais e riquezas da terra), mas o maior presente que Deus nos comunicou: o próprio Espírito Santo na abundância dos dons.
Com a efusão do Espírito, realizou-se a palavra de Jesus, que prometera o envio do Consolador. Com esta efusão sobre os apóstolos, em línguas de fogo, a força de Deus, inaugurou-se o tempo da Igreja, que, no dom inefável do Espírito, faz de todos um só povo, uma só ecclesia, congregando gregos e gentios, escravos e livres, judeus e cristãos na única, santa e litúrgica kahal, sob o sacramento da nova aliança. Com a efusão pentecostal, Cristo coroou a sua obra e a Páscoa recebeu o seu último toque de corolário da obra salvífica do Senhor. Com o Pentecostes, irrompeu a eternidade no tempo e os homens puderam experimentar os desvelos do eterno amor misericordioso do coração de Deus. Deus vem já não apenas sentar-se à mesa dos homens, mas também a fazê-los partícipes por antecipação do banquete do Reino, onde todos viverão inebriados com o vinho da salvação, que Ele prepara para os eleitos.
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Porém, o Pentecostes não se limita a um dia, mas toda a vida do cristão e da Igreja tem de ser pentecostal. Deus, na verdade, derrama o seu Espírito na argila informe da existência para a “teomorfizar”. Deus não criou o mundo nem para o caos nem para o instante, mas os elementos do mundo são para o homem, em suas necessidades, se poder servir-se deles “como benefício” (cf Sb 11,5). Mais: o mundo não foi criado de uma só vez: Deus o recria permanentemente. A sua palavra, “Faça-se!”, é de valor eterno e ação perene. E o Espírito de Deus garante a eficaz permanência do Reino de Deus entre os homens. Não crer neste axioma querigmático resulta de comportamento carnal, que põe em xeque a base de relacionamento da criatura com o Criador e configura um dos aspetos do pecado contra o Espírito Santo. A nossa insensibilidade espiritual leva-nos a inflacionar a ação do Maligno e a menosprezar o contínuo trabalho pentecostal do Espírito de Deus no coração das pessoas. Nas palavras “O Reino de Deus está entre vós” pulsa, segundo o teólogo  russo Paulo Evdokimov, “o coração do Evangelho”. Não obstante, sentimos dificuldade em viver o Reino de  Deus, dificuldade que nos deixa insensíveis à sua presença. Porque temos dificuldade em conviver com o mundo do mal, corremos o risco de, ao debruçarmo-nos sobre as mazelas do mundo, deixarmos anestesiar em nós a ação do Espírito.
Alimentamos em nós a mentalidade judaica da cata de milagres; acalentamos a mentalidade grega que nos lança na busca utópica de frutos proibidos e na crença apenas na extensão dos braços e na argúcia da inteligência. A cruz continua a ser escândalo que nos entorpece, que se confina à piedade da celebração de  Semana Santa ou do Senhor dos Passos e que ironicamente se usa como distintivo em procissão ou em artigo de adorno.
E, como a multidão de há dois mil anos, o nosso mundo lógico-técnico esbarra nos limites onde se entrecruzam luz e trevas, levando a que os nossos passos acompanhem Cristo até às ruas de Jerusalém, mas não aguentem a caminhada até fora da cidade, ao lugar  do Calvário.
A vida dos fiéis em Igreja tem de corporizar a contínua festa de Pentecostes. O devir dos séculos é o Pentecostes permanente de que os homens não se devem distanciar nem distrair quando colocam, escandalizados, o olhar no joio semeado pelo inimigo na seara do trigo que o Pai de Família fez crescer no campo. O desafio do homem do Espírito estará voltado para a descoberta da ação divina na sinceridade do arrependimento de David e na coragem dos jovens que cantam na fornalha ardente da Babilónia. A força do “Totalmente Outro” irrompe continuamente na história dos homens e dos povos. Ele continua a sentar-se à mesa de Abraão, a armar o braço de uns poucos contra a prepotência dos tiranos, a aceitar o testemunho de sangue dos Macabeus, a quebrar o orgulho e a impiedade de Antíoco e a caminhar com os seus pelas estradas de Emaús.
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Por outro lado, o Pentecostes sugere e promove a ideia e o dinamismo da comunidade perfeita, dos que, segundo a descrição do livro dos Atos, “perseveravam na doutrina dos Apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações” (2,42); viviam “unidos e tinham tudo comum” (v. 44); “tomavam a comida com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo” (vv. 45-47).
O homem pentecostal e da comunidade pentecostal não fixa o olhar na baixeza das planícies dos dividendos terrenos, mas está sempre à espera do Senhor que está para vir. A sua oração não se centra sobre as suas necessidades, mas é a súplica do advento do Reino Deus, da volta do Cristo Senhor: Maran-atha! É o adorador do Pai (em espírito e verdade), o homem do “Sanctus”, sempre pronto a descalçar as sandálias e a desnudar-se da própria vaidade para se revestir da força da Palavra. Ele é o “auditorium Spiritus” e o “vere recipiens Spiritum Dei”. O homem pentecostal, esvaziando-se de si, cria em si espaço para o Deus de toda consolação. É seu auditório e vaso.
O homem pentecostal fala e entende a língua dos seus irmãos. Não se perde no monólogo estéril: escuta e fala – dialoga. A sua identidade é a pobreza e a sua linguagem é o amor. Não utiliza armas para dominar, basta-lhe a admiração das “maravilhas de Deus” (cf At 2,11). Entende o ruído do milagre, do Espírito, porque já silenciou dentro de si o ruído das paixões, surdo à voz das tentações do corpo, do prestígio e da idolatria. Não fala de si, fala do outro, do grande outro, em nome de quem ele se reúne para a oração e a comunhão. Onde quer que esteja, vive na casa do Pai. Todos são seus irmãos de verdade e o mais ínfimo ser é digno do seu desvelo. Quer que todos vivam constantemente a festa de Pentecostes, porque todos são vivificados pelo sopro criador do Espírito de Deus e as línguas de fogo aquecem-lhes o coração para a vida.
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Espírito Santo é efetivamente dom de Deus a todos os cristãos e, por sua obra e graça, a todas as pessoas abertas à paz e ao amor. O Espírito dá vida, renova, transforma, constrói comunidade e faz nascer o Homem Novo. E hoje é bem-vinda a sua criatividade frente a tantas propostas mecânicas e pré-fabricadas em quase todas as esferas humanas e religiosas e face à tendência individualista, narcisista e consumista quase irrefreável.
Vivendo este novo vigor, em comunidade, compreenderemos melhor a presença do Pentecostes.
É o Espírito que permite aos cristãos e a todos superar medos ou limitações e testemunhar no mundo o amor que Jesus viveu até às últimas consequências. O Espírito Santo é a presença do próprio Jesus. Não se pode criar ou imaginar um outro Jesus Cristo a não ser o revelado pelo Espírito. Este apenas nos recorda que a paixão, a cruz, a morte e a ressurreição são os caminhos no seguimento de Jesus. Há que ultrapassar a “resistência”, da parte dos cristãos e da Igreja, a Jesus, o verdadeiro e único profeta da verdade. O ‘verdadeiro’ Espírito Santo é aquele que dá continuidade ao ‘espírito’ de Jesus. E sabemos bem o caminho de Jesus: um caminho de verdade e pleno de exigências.
Lucas sugere que o Espírito é a lei nova que orienta a caminhada dos cristãos – lei de enraizamento profundo no coração humano, lei movente e basilar: lex mutandis. É Ele que cria a nova comunidade e faz com que as pessoas ultrapassem as suas diferenças e comuniquem; é Ele que une na mesma comunidade de amor povos de todas as raças e culturas. E Paulo assegura que o Espírito é a fonte donde brota a vida da comunidade cristã. É Ele que concede os dons que a enriquecem e que fomenta a unidade de todos os membros; por isso, os dons não podem ser usados em benefício pessoal, mas ao serviço de todos. Há muitas pessoas, em todas as esferas humanas que se deixam levar pela mania da competição ou busca por luz própria; e a cultura atual impele ao ‘brilhantismo’ e ‘carreirismo’ a todo custo. Ora, nunca se pode esquecer que os dons são apenas meios dados pelo Espírito a cada pessoa para enriquecer a comunidade.
Viva-se, pois, em Pentecostes!

2016.05.15 – Louro de Carvalho 

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