quarta-feira, 18 de maio de 2016

As implicações dos tratados de comércio transatlânticos

Entre os diversos acordos de comércio e investimento bilaterais e multilaterais que foram ou estão a ser negociados, ressaltam na ribalta dos interesses a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) e o Acordo Económico e Comercial Global (CETA).
São partes essenciais do TTIP os EUA (Estados Unidos) e a UE (União Europeia) e da CETA a UE e o Canadá. E o que serve de modelo a uma e outra parceria é a TTP (Parceria Transpacífica), assinada a 4 de fevereiro de 2016, em Auckland, Nova Zelândia, pelos 12 países da bacia do Pacífico, incluindo a Austrália, Canadá, Japão e Estados Unidos. Porém, a assinatura não significa nem dispensa a ratificação, pelo que os parlamentos dos 12 Estados subscritores da TTP terão de deliberar sobre a sua entrada em vigor. Terá o TTIP também similitude com o TISA, que envolve a UE e os EUA e uma vintena de países terceiros. O que há ou haverá de comum nestas megaparcerias que estão em causa é o quase secretismo em que são negociadas, sendo que não é observado o mecanismo de consulta pública nem mesmo a consulta adequada às diversas instâncias das partes envolvidas. Por outro lado, o que tem sido apresentado como constituindo acordo de comércio livre tem pouco a ver com a facilitação do comércio mundial, que é enorme e que já beneficia de tarifas relativamente baixas. O que fica relevado é o poder das grandes corporações empresariais de escala mundial (diga-se a soldo dos interesses dos grandes) em detrimento do poder das soberanias nacionais ou politicamente concertadas entre os diversos Estados-Membros dos Estados Federados ou das Uniões. É poder resultante do esforço concertado de investidores e corporações transnacionais contra regulações governamentais nos campos da saúde, ambiente, propriedade intelectual, etc. – levado a bom porto sob a égide dos Estados interessados em que esse poder seja exercido de forma subterrânea. Isto põe em perigo a democracia da vivência, decisão e governança, restando-lhe o formalismo das eleições.
Trata-se de parcerias assimétricas que estipulam direitos especiais para os investidores sem as correspondentes obrigações e sem o necessário acautelamento da proteção das populações. Em tais tratados não ficam estipulados mecanismos de responsabilização dos investidores e das corporações transnacionais. Ou seja, não há regulação e, por consequência, sanções para quem prevaricar. Portadora de risco incontornável é a possibilidade de as corporações transnacionais conquistarem legalmente o direito de ingerência nos assuntos internos dos Estados, designadamente no atinente a prerrogativas fiscais e orçamentais até agora exclusivas e no direito de cada Estado em legislar soberanamente na prossecução do interesse público.
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Nos últimos 30 anos, as corporações têm vindo a pedir compensações pelas perdas nos lucros expectáveis sempre que o processo democrático exige medidas regulatórias que as corporações entendem vir a reduzir os lucros esperados. As corporações transnacionais saíram ganhadoras em litígios antes da existência dos tribunais arbitrais privados e receberam milhões em compensações, pagos pelas finanças públicas de países desenvolvidos e em desenvolvimento, à custa dos serviços de saúde, ambientais e sociais. Sob a invocação de acordos bilaterais de investimento e megatratados, como o NAFTA (Acordo de Livre Comércio para a América do Norte), foram instaurados processos litigiosos levianos e vexatórios, que se prolongaram por boa meia dúzia de anos e constituíram um considerável filão para escritórios de advogados especializados que se locupletaram em honorários. A este nível, destaca-se a Alemanha que está, com base na Carta da Energia, em processo litigioso por vir a eliminar progressivamente a energia nuclear em prol das energias renováveis na sequência do desastre nuclear de Fukushima. O Canadá foi vítima de ataques levianos, em nome do NAFTA, por ter negado à Bilcon a autorização de exploração de pedreira numa área ambientalmente sensível. E os EUA podem vir a ser processados, sob a invocação do NAFTA, pelo desafio de Obama ao Trans-Canadá ao negar a autorização de construção da conduta Keystone XL nalguns terrenos por incompatibilidade com os compromissos norte-americanos assumidos na Conferência do Clima (COP21).
Tendo em conta a experiência do passado recente, os cidadãos de todos os Estados que assinaram o TPP deveriam exigir a revisão dos capítulos relativos ao investimento e a abolição pura e simples dos tribunais de resolução de litígios investidor-estado (tribunais unilaterais de regime privado) que, no passado, ignoraram as leis nacionais e acórdãos de tribunais nacionais superiores. Coisa idêntica deveria ser exigida pelos cidadãos e instituições de todos os Estados que são parte no não menos perigoso CETA, entre o Canadá e a UE, dado que esta forma de administração da justiça em regime privado contra bonos mores é incompatível com a ontologia e missão do Estado enquanto promotor e defensor do interesse público.
Mesmo que TPP e CETA venham a ser ratificados e entrem em vigor, subsiste a claríssima incompatibilidade de algum do seu teor (justiça unilateral e privada e falta de regulação e sanção sobre as corporações transnacionais) com o Estado de Direito, pelo que as respetivas assembleias gerais deveriam submeter a situação ao veredicto do Tribunal Internacional de Justiça.
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No respeitante ao TTIP, Cecilia Maelstrom, comissária europeia para o Comércio, propôs a criação do ICS (Sistema de Tribunais de Investimento). Porém, o ICS está concebido como um pseudotribunal com jurisdição unilateral. Não garantirá espaço de regulação aos Estados. Já em fevereiro de 2016, a associação de magistrados alemães (Deutscher Richterbund) rejeitou a proposta, considerando supérfluos e perversos estes tribunais especiais num Estado de Direito.
Ora, tendo em conta que todos os países da UE têm tribunais competentes, não é necessária a criação de jurisdição paralela, que se tornará imoral por vir a favorecer os investidores estrangeiros. Ademais, é de considerar que, se ou quando os Estados democráticos não podem cumprir a sua principal função de proteção pública e as suas obrigações inerentes ao contrato social, a ordem democrática nacional e internacional corre grave perigo.
Assim, os tratados internacionais (bilaterais ou multilaterais) têm de estipular de modo vinculativo as obrigações dos investidores e das corporações transnacionais, tornando-os responsáveis perante os tribunais públicos dos Estados em que estão registados e naqueles em que operam. Por outras palavras, é preciso estabelecer e acautelar um regime de promoção de uma ordem internacional democrática e equitativa, em que ninguém se possa subtrair à alçada da justiça.
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A razão dos esforços para a negociação do TTIP prende-se, da parte da UE, com o facto de o projeto europeu ter chegado a um quase total impasse devido à desindustrialização acelerada, à quase estagnação económica, ao elevado desemprego, precariedade e austeridade, ao abissal crescimento da desigualdade e ao conflito entre o todo-poderoso diretório central e as periferias em empobrecimento rápido – o que leva o projeto a aproximar-se da desintegração acentuada pelos numerosos escândalos financeiros que envolvem quase toda a banca de referência e pela impossibilidade de as elites aliciarem os cidadãos para o aprofundamento do projeto europeu, esgotados que estão os seus paraísos inicialmente publicitados. Do lado dos EUA, a economia patina em problemas semelhantes aos da UE, tendo o desemprego real chegado aos 27%, apesar dos permanentes estímulos da Reserva Federal. Nesta situação, os interesses corporativos transnacionais tinham de elevar a fasquia a um novo paradigma de poder económico à escala global através de estratégias adequadas à continuação do aumento insaciável dos lucros.
A este novo paradigma capitalista corresponde o TTIP, pois visa, não tanto o livre comércio, mas o alargamento e a total salvaguarda dos lucros das grandes corporações, colocando-as fora do alcance de todas as instâncias de poder atuais, sejam elas Estados, grupos de Estados, ONU, tribunais internacionais ou quaisquer outras. Para agilizar o comércio entre os dois lados do Atlântico, o TTIP pulveriza todas as barreiras legais condicionantes, sejam elas direitos dos consumidores, direitos laborais, normas de saúde pública, ativos e empresas estatais, proteção ambiental, privacidade e liberdade na NET, políticas públicas do medicamento, mineração, infraestruturas, combustíveis, agricultura, etc. dado que as normas americanas são muito mais permissivas que as outras, o TTIP quer harmonizar tudo por baixo. E, além das disputas sobre normas tarifárias e não-tarifárias, o Tratado inclui ISDS (Investor-to-State Dispute Settlement), vigente em outros tratados, para resolver conflitos entre investidores e Estados, sempre que os investidores sintam ameaçados os lucros presentes ou futuros por decisões dos governos.
É de concluir que produzirá o mais gravoso efeito o desmantelamento das normas ambientais de salvaguarda da saúde pública ou as do trabalho destinadas a proteger os cidadãos e as suas vidas. Assim, os governos estarão totalmente manietados e impossibilitados de agir na defesa do bem comum ante a proliferação de carnes com excesso de hormonas e antibióticos, os alimentos geneticamente modificados, o excesso de fertilizantes e pesticidas químicos e procedimentos lesivos por parte dos gigantes do agro-business – de efeitos perniciosos na saúde pública, vindo a disparar as patologias, alergias e as mais diversas doenças. Os Estados não suportarão os custos acrescidos dos medicamentos por via de as grandes empresas farmo-químicas virem a reforçar as patentes dos medicamentos de referência de modo a fazer disparar os preços e a restringir ao máximo o uso de genéricos. E nada poderá fazer o poder político noutro campo de conflito, o da liberdade e privacidade de circulação na NET, gravemente ameaçado por grandes operadoras como a Amazon. Estes são apenas alguns aspetos em relevo nas negociações que decorrem no maior secretismo. Não é aceitável que tudo continue a ser negociado no segredo dos gabinetes, longe do olhar do público e dos políticos, sem um laivo de transparência. Ademais, os estudos sobre o impacto do TTIP baseiam-se em modelos matemático-económicos e cenários questionáveis, que assumem simpaticamente a futura manutenção dos atuais níveis de desemprego, o equilíbrio dos orçamentos de Estado e o impacto sempre positivo das medidas a aprovar, minimizando ou ignorando os elevados custos dos ajustamentos, sobretudo no curto prazo. Assim, é normal que os resultados dos PIB sejam previsionalmente positivos. Não se refere o facto de os ditos benefícios ocorrerem em pleno, quando muito, só após o longo período de transição (10 a 20 anos), indicador claro da sua índole marginal. E nada se diz sobre a distribuição desses supostos benefícios que se repartirão de modo muito assimétrico, com vantagem evidente para as empresas e economias mais robustas e em detrimento das demais.
Porquê todo este secretismo e atitude antidemocrática quanto está em causa o interesse público?

2016.05.17 – Louro de Carvalho 

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