Entre
os diversos acordos de comércio e investimento bilaterais e multilaterais que
foram ou estão a ser negociados, ressaltam na ribalta dos interesses a Parceria
Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) e o Acordo Económico e
Comercial Global (CETA).
São
partes essenciais do TTIP os EUA (Estados Unidos) e a UE (União
Europeia) e da CETA
a UE e o Canadá. E o que serve de modelo a uma e outra parceria é a TTP (Parceria
Transpacífica),
assinada a 4 de fevereiro de 2016, em Auckland, Nova Zelândia, pelos 12 países
da bacia do Pacífico, incluindo a Austrália, Canadá, Japão e Estados Unidos. Porém,
a assinatura não significa nem dispensa a ratificação, pelo que os parlamentos
dos 12 Estados subscritores da TTP terão de deliberar sobre a sua entrada em
vigor. Terá o TTIP também similitude com o TISA, que envolve a UE e os EUA e
uma vintena de países terceiros. O que há ou haverá de comum nestas megaparcerias
que estão em causa é o quase secretismo em que são negociadas, sendo que não é
observado o mecanismo de consulta pública nem mesmo a consulta adequada às
diversas instâncias das partes envolvidas. Por outro lado, o que tem sido
apresentado como constituindo acordo de comércio livre tem pouco a ver com a
facilitação do comércio mundial, que é enorme e que já beneficia de tarifas
relativamente baixas. O que fica relevado é o poder das grandes corporações
empresariais de escala mundial (diga-se a soldo dos interesses dos
grandes) em
detrimento do poder das soberanias nacionais ou politicamente concertadas entre
os diversos Estados-Membros dos Estados Federados ou das Uniões. É poder
resultante do esforço concertado de investidores e corporações transnacionais
contra regulações governamentais nos campos da saúde, ambiente, propriedade
intelectual, etc. – levado a bom porto sob a égide dos Estados interessados em
que esse poder seja exercido de forma subterrânea. Isto põe em perigo a
democracia da vivência, decisão e governança, restando-lhe o formalismo das
eleições.
Trata-se
de parcerias assimétricas que estipulam direitos especiais para os investidores
sem as correspondentes obrigações e sem o necessário acautelamento da proteção das
populações. Em tais tratados não ficam estipulados mecanismos de responsabilização
dos investidores e das corporações transnacionais. Ou seja, não há regulação e,
por consequência, sanções para quem prevaricar. Portadora de risco
incontornável é a possibilidade de as corporações transnacionais conquistarem legalmente
o direito de ingerência nos assuntos internos dos Estados, designadamente no
atinente a prerrogativas fiscais e orçamentais até agora exclusivas e no
direito de cada Estado em legislar soberanamente na prossecução do interesse
público.
***
Nos
últimos 30 anos, as corporações têm vindo a pedir compensações pelas perdas nos
lucros expectáveis sempre que o processo democrático exige medidas regulatórias
que as corporações entendem vir a reduzir os lucros esperados. As corporações transnacionais
saíram ganhadoras em litígios antes da existência dos tribunais arbitrais
privados e receberam milhões em compensações, pagos pelas finanças públicas de
países desenvolvidos e em desenvolvimento, à custa dos serviços de saúde,
ambientais e sociais. Sob a invocação de acordos bilaterais de investimento e
megatratados, como o NAFTA (Acordo de Livre Comércio para a
América do Norte),
foram instaurados processos litigiosos levianos e vexatórios, que se
prolongaram por boa meia dúzia de anos e constituíram um considerável filão para
escritórios de advogados especializados que se locupletaram em honorários. A
este nível, destaca-se a Alemanha que está, com base na Carta da Energia, em processo litigioso por vir a eliminar progressivamente
a energia nuclear em prol das energias renováveis na sequência do desastre
nuclear de Fukushima. O Canadá foi vítima de ataques levianos, em nome do
NAFTA, por ter negado à Bilcon a autorização de exploração de pedreira numa
área ambientalmente sensível. E os EUA podem vir a ser processados, sob a
invocação do NAFTA, pelo desafio de Obama ao Trans-Canadá ao negar a
autorização de construção da conduta Keystone XL nalguns terrenos por
incompatibilidade com os compromissos norte-americanos assumidos na Conferência
do Clima (COP21).
Tendo em conta a experiência do passado recente, os cidadãos
de todos os Estados que assinaram o TPP deveriam exigir a revisão dos capítulos
relativos ao investimento e a abolição pura e simples dos tribunais de
resolução de litígios investidor-estado (tribunais unilaterais de regime privado) que, no passado, ignoraram as leis
nacionais e acórdãos de tribunais nacionais superiores. Coisa idêntica deveria
ser exigida pelos cidadãos e instituições de todos os Estados que são parte no não
menos perigoso CETA, entre o Canadá e a UE, dado que esta forma de
administração da justiça em regime privado contra
bonos mores é incompatível com a ontologia e missão do Estado enquanto
promotor e defensor do interesse público.
Mesmo que TPP e CETA venham a ser ratificados e entrem em
vigor, subsiste a claríssima incompatibilidade de algum do seu teor (justiça unilateral e privada e falta
de regulação e sanção sobre as corporações transnacionais) com o Estado de Direito, pelo que as
respetivas assembleias gerais deveriam submeter a situação ao veredicto do
Tribunal Internacional de Justiça.
***
No respeitante ao TTIP, Cecilia Maelstrom, comissária
europeia para o Comércio, propôs a criação do ICS (Sistema de Tribunais de Investimento). Porém, o ICS está concebido como
um pseudotribunal com jurisdição unilateral. Não garantirá espaço de regulação
aos Estados. Já em fevereiro de 2016, a associação de magistrados alemães (Deutscher Richterbund) rejeitou a
proposta, considerando supérfluos e perversos estes tribunais especiais num
Estado de Direito.
Ora, tendo em conta que todos os países da UE têm tribunais
competentes, não é necessária a criação de jurisdição paralela, que se tornará
imoral por vir a favorecer os investidores estrangeiros. Ademais, é de
considerar que, se ou quando os Estados democráticos não podem cumprir a sua
principal função de proteção pública e as suas obrigações inerentes ao contrato
social, a ordem democrática nacional e internacional corre grave perigo.
Assim, os tratados internacionais (bilaterais ou multilaterais) têm de estipular de modo
vinculativo as obrigações dos investidores e das corporações transnacionais,
tornando-os responsáveis perante os tribunais públicos dos Estados em que estão
registados e naqueles em que operam. Por outras palavras, é preciso estabelecer
e acautelar um regime de promoção de uma ordem internacional democrática e equitativa,
em que ninguém se possa subtrair à alçada da justiça.
***
A razão dos esforços para a negociação do TTIP prende-se, da
parte da UE, com o facto de o projeto europeu ter chegado a um quase total impasse
devido à desindustrialização acelerada, à quase estagnação económica, ao
elevado desemprego, precariedade e austeridade, ao abissal crescimento da
desigualdade e ao conflito entre o todo-poderoso diretório central e as periferias
em empobrecimento rápido – o que leva o projeto a aproximar-se da desintegração
acentuada pelos numerosos escândalos financeiros que envolvem quase toda a banca
de referência e pela impossibilidade de as elites aliciarem os cidadãos para o
aprofundamento do projeto europeu, esgotados que estão os seus paraísos
inicialmente publicitados. Do lado dos EUA, a economia patina em problemas
semelhantes aos da UE, tendo o desemprego real chegado aos 27%, apesar dos
permanentes estímulos da Reserva Federal. Nesta situação, os interesses
corporativos transnacionais tinham de elevar a fasquia a um novo paradigma de
poder económico à escala global através de estratégias adequadas à continuação
do aumento insaciável dos lucros.
A este
novo paradigma capitalista corresponde o TTIP, pois visa, não tanto o livre
comércio, mas o alargamento e a total salvaguarda dos lucros das grandes
corporações, colocando-as fora do alcance de todas as instâncias de poder atuais,
sejam elas Estados, grupos de Estados, ONU, tribunais internacionais ou
quaisquer outras. Para agilizar o comércio entre os dois lados do Atlântico, o
TTIP pulveriza todas as barreiras legais condicionantes, sejam elas direitos
dos consumidores, direitos laborais, normas de saúde pública, ativos e empresas
estatais, proteção ambiental, privacidade e liberdade na NET, políticas
públicas do medicamento, mineração, infraestruturas, combustíveis, agricultura,
etc. dado que as normas americanas são muito mais permissivas que as outras, o
TTIP quer harmonizar tudo por baixo. E, além das disputas sobre normas
tarifárias e não-tarifárias, o Tratado inclui ISDS (Investor-to-State
Dispute Settlement),
vigente em outros tratados, para resolver conflitos entre investidores e Estados,
sempre que os investidores sintam ameaçados os lucros presentes ou futuros por
decisões dos governos.
É de
concluir que produzirá o mais gravoso efeito o desmantelamento das normas
ambientais de salvaguarda da saúde pública ou as do trabalho destinadas a
proteger os cidadãos e as suas vidas. Assim, os governos estarão totalmente
manietados e impossibilitados de agir na defesa do bem comum ante a
proliferação de carnes com excesso de hormonas e antibióticos, os alimentos geneticamente
modificados, o excesso de fertilizantes e pesticidas químicos e procedimentos
lesivos por parte dos gigantes do agro-business
– de efeitos perniciosos na saúde pública, vindo a disparar as patologias,
alergias e as mais diversas doenças. Os Estados não suportarão os custos
acrescidos dos medicamentos por via de as grandes empresas farmo-químicas virem
a reforçar as patentes dos medicamentos de referência de modo a fazer disparar
os preços e a restringir ao máximo o uso de genéricos. E nada poderá fazer o
poder político noutro campo de conflito, o da liberdade e privacidade de
circulação na NET, gravemente ameaçado por grandes operadoras como a Amazon. Estes
são apenas alguns aspetos em relevo nas negociações que decorrem no maior
secretismo. Não é aceitável que tudo continue a ser negociado no segredo dos
gabinetes, longe do olhar do público e dos políticos, sem um laivo de
transparência. Ademais, os estudos sobre o impacto do TTIP baseiam-se em
modelos matemático-económicos e cenários questionáveis, que assumem
simpaticamente a futura manutenção dos atuais níveis de desemprego, o
equilíbrio dos orçamentos de Estado e o impacto sempre positivo das medidas a aprovar,
minimizando ou ignorando os elevados custos dos ajustamentos, sobretudo no
curto prazo. Assim, é normal que os resultados dos PIB sejam previsionalmente
positivos. Não se refere o facto de os ditos benefícios ocorrerem em pleno, quando
muito, só após o longo período de transição (10 a 20 anos), indicador claro da sua índole marginal. E nada se diz
sobre a distribuição desses supostos benefícios que se repartirão de modo muito
assimétrico, com vantagem evidente para as empresas e economias mais robustas e
em detrimento das demais.
Porquê
todo este secretismo e atitude antidemocrática quanto está em causa o interesse
público?
2016.05.17 – Louro de
Carvalho
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