A generalidade dos órgãos da nossa Comunicação Social destaca as
impertinentes declarações do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da
República que não descola do jeito de comentador político e, às vezes, do
perfil de professor.
Depois, não sei porque não se lhe aplica a epígrafe atribuída a Pico della Mirandola, que
tinha a veleidade (talvez com razão) de poder discutir qualquer assunto com
qualquer pessoa: De omni re
scibili et inscibili et quibusdam aliis (de tudo o que se pode saber e
de tudo o que não se pode saber e ainda outras coisas mais). Com efeito, Marcelo
sabe tudo, tem uma palavra sobre tudo e sobre mais algumas coisas ainda, a
menos que veja o terreno a fugir-lhe, caso em que remete o comentário para
quando o “decreto” chegar a Belém. Tal, porém, não garante inação ou mesmo
silêncio, podendo, antes, significar mais trabalho para as suas assessorias.
O homem que foi bem-vindo a sustentar, no devido tempo, uma revisão da
política financeira na Constituição, aquando da celebração do 40.º aniversário da
CRP no Tribunal Constitucional, cometeu o mesmo atrevimento de Cavaco Silva,
que teve a ousadia de alegadamente se intrometer em temas que não são da
competência do Presidente, mas da Assembleia da República quando assume poderes
constituintes, ao sugeriu uma série de temas a rever, em tempo próprio. Não
vale o facto de um ser professor de economia e outro professor de direito. O
papel do Presidente é o definido na Constituição e a interpretação pessoal não
legitima tudo.
***
Agora, o mesmo Presidente da República que se intrometeu no sistema de
avaliação externa dos alunos do ensino básico, que se mostrou preocupado no
diferendo que opõe Governo e colégios com contrato de associação (cerca de 3% do
universo dos estabelecimentos do ensino privado), que contesta o decreto parlamentar
das “barrigas de aluguer” (tecnicamente, lei da gestação de substituição) e que põe em causa
a reposição do horário semanal de 35 horas para trabalhadores em funções públicas
– o mesmo Presidente da República advertiu que os mercados sofrem com a “permanente
agitação dos analistas”. Ora bem, ao verberar as especulações dos analistas,
que ele supõe não ser, que geram instabilidade, esquece o efeito perverso que
alguns comentadores políticos – que ele foi e só institucionalmente é que já
não é – geram junto da opinião pública nacional e internacional. No entanto,
questiona “como é que pode haver estabilidade se todos os dias há especulações
sobre a instabilidade”.
Sobre a análise da agência de notação financeira Moody´s, divulgada
hoje, 24 de maio, segundo a qual o défice se deverá fixar nos 3,0%, acima das
previsões governamentais de 2,2%, Marcelo frisou que “não há dados novos” sobre
os quais possa pronunciar-se (É caso para dizer “que pena não haver assunto apara Sua
Excelência poder falar!). A este propósito, o Chefe de Estado revelou a sua
frequente autointerrogação em como é possível haver estabilidade dos mercados “se
todos os dias há analistas, comentadores e especuladores que se interrogam
sobre o que vai acontecer ou não na evolução da economia e das finanças
portuguesas”.
***
Porém, o pior
das declarações marcelistas de hoje reside no que disse ao marcar, no
calendário, o momento em que reavaliará a situação política do país: o outono
de 2017, após as eleições autárquicas. Até lá, continuará a garantir
estabilidade política em Portugal, dentro e fora do país.
Era o que
faltava o garante do “regular funcionamento das instituições democráticas”
demitir-se da garantia da estabilidade. Absurdo, do ponto de vista
político-constitucional, é o Presidente admitir um marco temporal em que possa
deixar de cumprir esta missão, que é consequência da outra basilar, a garantia
da “unidade do Estado”. Mais: se o comandante supremo das forças armadas não
aposta nas garantidas da unidade e da estabilidade, como é que pode exigir que
elas mantenham a sua coesão para a estabilidade na defesa militar da República?
(vd CRP, artigos 185.º e
276.º). Além disso, ao
ser questionado sobre o subtil arrefecimento das relações com o Governo, o
Presidente colocou travões no curto prazo, mas abriu a porta para o futuro:
“Desiludam-se aqueles que pensam que o
Presidente da República vai dar um passo sequer para provocar instabilidade
neste ciclo que vai até às autárquicas. Depois das autárquicas, veremos o que
se passa, mas o ideal para Portugal é que o Governo dure e tenha sucesso.”.
Ninguém pode
esperar com legitimidade que o Presidente seja foco de instabilidade, muito
menos que tome iniciativas nesse sentido. Mesmo que pretendesse circunscrever
essa noção de instabilidade à relação com o Governo, não lhe é lícito tal
propósito, pois, não lhe cabe tomar iniciativa na escolha do Governo, a menos
que tenha de assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas (caso em que pode demitir o Governo,
art.º 195.º/2) ou que o
Parlamento não esteja a funcionar (caso em que pode decretar a sua dissolução, art.os
133.º, alínea e, 172.º). Caber-lhe-ia avaliar a conjuntura
e tomar a medida adequada a travar a instabilidade e não a criá-la.
Mas o
Presidente Marcelo admitiu – devia pensar antes de dizer e não depois,
eventualmente – guardar-se para depois das eleições autárquicas, momento em que
fará a reavaliação de contexto. Invoca, ao arrepio da boa tradição política,
que recomenda a não confusão de ciclos eleitorais. Nem Cavaco Silva os
confundiu, pelo menos à letra da norma. Sabemos que muitos quadrantes políticos
pretendem extrapolar as consequências dos resultados de um tipo de eleições
para outro. Mas a boa leitura da CRP vai no sentido da separação das águas – o
que não impede que os interessados não reflitam sobre os sinais dados pelo
eleitorado. Porém, daí a fugir do país ou a prometer não se candidatar a mais
cargo nenhum vai uma distância de ano-luz!
E Marcelo
deixou-se enredar na ideia do novo ciclo político a partir das autárquicas, ao
mesmo tempo que reafirma o horizonte de legislatura para o Governo. Quem é que
o entende?!
Na verdade, falando
à margem duma visita ao Exército no Comando das Forças Terrestres da Amadora,
Marcelo repetiu dirá o que pensa sobre a evolução económica e financeira, logo
que sejam conhecidos os dados da execução orçamental de maio, o que acontecerá
em breve. Porém, deixou claro que, sejam quais forem os números, não será por
isso que vai mudar a sua posição neste momento:
“O Governo existe para durar uma
legislatura. Há claramente um ciclo político marcado pelas autárquicas e estar
a especular sobre a instabilidade política nesse ciclo não faz o mínimo sentido”.
Fazendo a
apologia do valor da estabilidade até para suscitar o investimento e a formação
de capital para o incremento da economia, insistiu:
“Nós precisamos de estabilidade para
haver investimento e formação bruta de capital fixo, aquilo que faz crescer a
economia. Só há essa estabilidade se houver estabilidade política. O Presidente
da República não vai contribuir para a instabilidade política”.
E à chanceler
Merkel (que não é Chefe de Estado), com quem se vai reunir em Berlim ainda esta semana, vai levar esta
mensagem: “A Europa pode contar do
Presidente da República portuguesa a estabilidade política e governativa”.
Sobre o
pedido para que o país não sofra sanções pelo não cumprimento do Tratado
Orçamental, exprimiu o seu estado de alma num otimismo crónico quase tão
irritante como o de Costa:
“Espero que a Europa perceba o esforço
que os portugueses fizeram nos últimos anos, os sacrifícios que fizeram, espero
que a Europa não puna os portugueses pelo défice do ano passado”.
***
Frente aos 149 militares do Exército (cinco
dos quais mulheres) que
partirão em julho para a RCA (República Centro-Africana), o Presidente da República anunciou que irá à
República Centro-Africana durante a missão que os militares portugueses vão
desempenhar no âmbito da ONU, com início em julho.
“Tenciona o Presidente da República e
Comandante Supremo das Forças Armadas ir em tempo oportuno à República Centro-Africana
para poder estar convosco e partilhar o sucesso da vossa missão”.
A predita força militar, sob o comando do major de
Infantaria Musa Paulino, será entregue como Força de Reação de Rápida (FRR) no âmbito da missão de estabilização das Nações
Unidas na República Centro-Africana, MINUSCA.
Sob a música “O
melhor de mim”, da fadista Mariza, Marcelo assistiu à formação das tropas
em parada, dirigiu-se aos militares e afirmou que não estão isentos de riscos
porque “não há missões sem riscos”. No entanto, acredita no sucesso da missão e
salienta a sua importância política, frisando que “o que se passa no centro de
África e no norte de África determina migrações económicas, sociais,
refugiados, toda a geopolítica do continente europeu”.
Nesta sua primeira visita ao Exército, o Comandante
Supremo das Forças Armadas destacou, em declarações aos jornalistas, que este
ramo, o terrestre, “é essencial às Forças Armadas” e avançou que “vai estar
ainda mais envolvido em missões internacionais”. Neste sentido, o Presidente
adiantou que vai reunir, em julho, o Conselho Superior de Defesa Nacional para
“continuar a analisar a perspetiva de missões que estão pendentes”.
Refira-se que o envio de forças portuguesas para a RCA
foi aprovado no Conselho Superior de Defesa Nacional, a 24 de março passado,
faltando ainda a certificação por parte da ONU, passo necessário para a
participação dos militares portugueses.
***
É notório que os nossos presidentes são exímios em
discurso que prepararam, concorde-se ou não com o seu teor. Porém, quando são
apanhados ao virar da esquina pelos homens e mulheres da Comunicação Social, na
sua malícia ou na sua esperteza, às vezes, algo traiçoeira, não pensam o que
dizem. Se Ramalho Eanes era contido por natureza (o jeito
militar o recomendava), e
Mário Soares dispunha da aceitabilidade que lhe advinha de “pai” do regime,
Sampaio caiu nas graças populares pelo seu perfil aristocrático. Por sua vez,
Cavaco Silva, escorado na ideia da cooperação institucional e no dinamismo dos “roteiros”,
teve dificuldade em se desnudar da carreira ou carga primo-ministerial – boa
para uns, péssima para outros – e, no discurso informal, ou se continha ou
patinava, a ponto de ter que declarar que 19-1 ainda eram 18.
E chega Rebelo de Sousa, em quem a maior parte dos
eleitores entregou o benefício do voto. O ritmo da presidência é infernal. E ou
marca indelevelmente a presidência ou se esgota por falta de travão. Não direi
que Marcelo seja o “pior do pior de Cavaco” (como ele disse do governo de Santana
Lopes, que era “o pior do pior de Guterres”) – mas parece-me uma edição hiperativa de Cavaco
Silva, em roda-livre, sem a moderação e o estímulo de uma assumida primeira-dama.
2016.05.24 – Louro de Carvalho
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