terça-feira, 24 de maio de 2016

Uma versão hiperativa de Cavaco Silva

A generalidade dos órgãos da nossa Comunicação Social destaca as impertinentes declarações do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República que não descola do jeito de comentador político e, às vezes, do perfil de professor.
Depois, não sei porque não se lhe aplica a epígrafe atribuída a Pico della Mirandola, que tinha a veleidade (talvez com razão) de poder discutir qualquer assunto com qualquer pessoa: De omni re scibili et inscibili et quibusdam aliis (de tudo o que se pode saber e de tudo o que não se pode saber e ainda outras coisas mais). Com efeito, Marcelo sabe tudo, tem uma palavra sobre tudo e sobre mais algumas coisas ainda, a menos que veja o terreno a fugir-lhe, caso em que remete o comentário para quando o “decreto” chegar a Belém. Tal, porém, não garante inação ou mesmo silêncio, podendo, antes, significar mais trabalho para as suas assessorias.
O homem que foi bem-vindo a sustentar, no devido tempo, uma revisão da política financeira na Constituição, aquando da celebração do 40.º aniversário da CRP no Tribunal Constitucional, cometeu o mesmo atrevimento de Cavaco Silva, que teve a ousadia de alegadamente se intrometer em temas que não são da competência do Presidente, mas da Assembleia da República quando assume poderes constituintes, ao sugeriu uma série de temas a rever, em tempo próprio. Não vale o facto de um ser professor de economia e outro professor de direito. O papel do Presidente é o definido na Constituição e a interpretação pessoal não legitima tudo.     
***
Agora, o mesmo Presidente da República que se intrometeu no sistema de avaliação externa dos alunos do ensino básico, que se mostrou preocupado no diferendo que opõe Governo e colégios com contrato de associação (cerca de 3% do universo dos estabelecimentos do ensino privado), que contesta o decreto parlamentar das “barrigas de aluguer” (tecnicamente, lei da gestação de substituição) e que põe em causa a reposição do horário semanal de 35 horas para trabalhadores em funções públicas – o mesmo Presidente da República advertiu que os mercados sofrem com a “permanente agitação dos analistas”. Ora bem, ao verberar as especulações dos analistas, que ele supõe não ser, que geram instabilidade, esquece o efeito perverso que alguns comentadores políticos – que ele foi e só institucionalmente é que já não é – geram junto da opinião pública nacional e internacional. No entanto, questiona “como é que pode haver estabilidade se todos os dias há especulações sobre a instabilidade”.
Sobre a análise da agência de notação financeira Moody´s, divulgada hoje, 24 de maio, segundo a qual o défice se deverá fixar nos 3,0%, acima das previsões governamentais de 2,2%, Marcelo frisou que “não há dados novos” sobre os quais possa pronunciar-se (É caso para dizer “que pena não haver assunto apara Sua Excelência poder falar!). A este propósito, o Chefe de Estado revelou a sua frequente autointerrogação em como é possível haver estabilidade dos mercados “se todos os dias há analistas, comentadores e especuladores que se interrogam sobre o que vai acontecer ou não na evolução da economia e das finanças portuguesas”.
***
Porém, o pior das declarações marcelistas de hoje reside no que disse ao marcar, no calendário, o momento em que reavaliará a situação política do país: o outono de 2017, após as eleições autárquicas. Até lá, continuará a garantir estabilidade política em Portugal, dentro e fora do país.
Era o que faltava o garante do “regular funcionamento das instituições democráticas” demitir-se da garantia da estabilidade. Absurdo, do ponto de vista político-constitucional, é o Presidente admitir um marco temporal em que possa deixar de cumprir esta missão, que é consequência da outra basilar, a garantia da “unidade do Estado”. Mais: se o comandante supremo das forças armadas não aposta nas garantidas da unidade e da estabilidade, como é que pode exigir que elas mantenham a sua coesão para a estabilidade na defesa militar da República? (vd CRP, artigos 185.º e 276.º). Além disso, ao ser questionado sobre o subtil arrefecimento das relações com o Governo, o Presidente colocou travões no curto prazo, mas abriu a porta para o futuro:
“Desiludam-se aqueles que pensam que o Presidente da República vai dar um passo sequer para provocar instabilidade neste ciclo que vai até às autárquicas. Depois das autárquicas, veremos o que se passa, mas o ideal para Portugal é que o Governo dure e tenha sucesso.”.
Ninguém pode esperar com legitimidade que o Presidente seja foco de instabilidade, muito menos que tome iniciativas nesse sentido. Mesmo que pretendesse circunscrever essa noção de instabilidade à relação com o Governo, não lhe é lícito tal propósito, pois, não lhe cabe tomar iniciativa na escolha do Governo, a menos que tenha de assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas (caso em que pode demitir o Governo, art.º 195.º/2) ou que o Parlamento não esteja a funcionar (caso em que pode decretar a sua dissolução, art.os 133.º, alínea e, 172.º). Caber-lhe-ia avaliar a conjuntura e tomar a medida adequada a travar a instabilidade e não a criá-la.  
Mas o Presidente Marcelo admitiu – devia pensar antes de dizer e não depois, eventualmente – guardar-se para depois das eleições autárquicas, momento em que fará a reavaliação de contexto. Invoca, ao arrepio da boa tradição política, que recomenda a não confusão de ciclos eleitorais. Nem Cavaco Silva os confundiu, pelo menos à letra da norma. Sabemos que muitos quadrantes políticos pretendem extrapolar as consequências dos resultados de um tipo de eleições para outro. Mas a boa leitura da CRP vai no sentido da separação das águas – o que não impede que os interessados não reflitam sobre os sinais dados pelo eleitorado. Porém, daí a fugir do país ou a prometer não se candidatar a mais cargo nenhum vai uma distância de ano-luz!
E Marcelo deixou-se enredar na ideia do novo ciclo político a partir das autárquicas, ao mesmo tempo que reafirma o horizonte de legislatura para o Governo. Quem é que o entende?!    
Na verdade, falando à margem duma visita ao Exército no Comando das Forças Terrestres da Amadora, Marcelo repetiu dirá o que pensa sobre a evolução económica e financeira, logo que sejam conhecidos os dados da execução orçamental de maio, o que acontecerá em breve. Porém, deixou claro que, sejam quais forem os números, não será por isso que vai mudar a sua posição neste momento:
“O Governo existe para durar uma legislatura. Há claramente um ciclo político marcado pelas autárquicas e estar a especular sobre a instabilidade política nesse ciclo não faz o mínimo sentido”.
Fazendo a apologia do valor da estabilidade até para suscitar o investimento e a formação de capital para o incremento da economia, insistiu:
“Nós precisamos de estabilidade para haver investimento e formação bruta de capital fixo, aquilo que faz crescer a economia. Só há essa estabilidade se houver estabilidade política. O Presidente da República não vai contribuir para a instabilidade política”.
E à chanceler Merkel (que não é Chefe de Estado), com quem se vai reunir em Berlim ainda esta semana, vai levar esta mensagem: “A Europa pode contar do Presidente da República portuguesa a estabilidade política e governativa”.
Sobre o pedido para que o país não sofra sanções pelo não cumprimento do Tratado Orçamental, exprimiu o seu estado de alma num otimismo crónico quase tão irritante como o de Costa:
“Espero que a Europa perceba o esforço que os portugueses fizeram nos últimos anos, os sacrifícios que fizeram, espero que a Europa não puna os portugueses pelo défice do ano passado”.
***
Frente aos 149 militares do Exército (cinco dos quais mulheres) que partirão em julho para a RCA (República Centro-Africana), o Presidente da República anunciou que irá à República Centro-Africana durante a missão que os militares portugueses vão desempenhar no âmbito da ONU, com início em julho.
“Tenciona o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas ir em tempo oportuno à República Centro-Africana para poder estar convosco e partilhar o sucesso da vossa missão”.
A predita força militar, sob o comando do major de Infantaria Musa Paulino, será entregue como Força de Reação de Rápida (FRR) no âmbito da missão de estabilização das Nações Unidas na República Centro-Africana, MINUSCA.
Sob a música “O melhor de mim”, da fadista Mariza, Marcelo assistiu à formação das tropas em parada, dirigiu-se aos militares e afirmou que não estão isentos de riscos porque “não há missões sem riscos”. No entanto, acredita no sucesso da missão e salienta a sua importância política, frisando que “o que se passa no centro de África e no norte de África determina migrações económicas, sociais, refugiados, toda a geopolítica do continente europeu”.
Nesta sua primeira visita ao Exército, o Comandante Supremo das Forças Armadas destacou, em declarações aos jornalistas, que este ramo, o terrestre, “é essencial às Forças Armadas” e avançou que “vai estar ainda mais envolvido em missões internacionais”. Neste sentido, o Presidente adiantou que vai reunir, em julho, o Conselho Superior de Defesa Nacional para “continuar a analisar a perspetiva de missões que estão pendentes”.
Refira-se que o envio de forças portuguesas para a RCA foi aprovado no Conselho Superior de Defesa Nacional, a 24 de março passado, faltando ainda a certificação por parte da ONU, passo necessário para a participação dos militares portugueses.
***
É notório que os nossos presidentes são exímios em discurso que prepararam, concorde-se ou não com o seu teor. Porém, quando são apanhados ao virar da esquina pelos homens e mulheres da Comunicação Social, na sua malícia ou na sua esperteza, às vezes, algo traiçoeira, não pensam o que dizem. Se Ramalho Eanes era contido por natureza (o jeito militar o recomendava), e Mário Soares dispunha da aceitabilidade que lhe advinha de “pai” do regime, Sampaio caiu nas graças populares pelo seu perfil aristocrático. Por sua vez, Cavaco Silva, escorado na ideia da cooperação institucional e no dinamismo dos “roteiros”, teve dificuldade em se desnudar da carreira ou carga primo-ministerial – boa para uns, péssima para outros – e, no discurso informal, ou se continha ou patinava, a ponto de ter que declarar que 19-1 ainda eram 18.
E chega Rebelo de Sousa, em quem a maior parte dos eleitores entregou o benefício do voto. O ritmo da presidência é infernal. E ou marca indelevelmente a presidência ou se esgota por falta de travão. Não direi que Marcelo seja o “pior do pior de Cavaco” (como ele disse do governo de Santana Lopes, que era “o pior do pior de Guterres”) – mas parece-me uma edição hiperativa de Cavaco Silva, em roda-livre, sem a moderação e o estímulo de uma assumida primeira-dama.

2016.05.24 – Louro de Carvalho          

Sem comentários:

Enviar um comentário