sábado, 30 de janeiro de 2016

O “Cristóforo”

Hoje, 30 de janeiro, na sua primeira audiência jubilar, Francisco recebeu os cristãos que peregrinaram ao Vaticano, garantindo-lhes que, pelo batismo, o cristão se torna cristóforo. E é esta a sua missão, a missão de cada um em articulação com a missão de toda a Igreja. Não se trata de carregar em si mesmo ou dentro de si mesmo um Cristo qualquer construído segundo imaginação e a ideação dos homens, mas Aquele que exprime para o homem e o povo, em que se insira, o vulto de Deus. E o vulto do Deus de Abrão, Isaac e Jacob – o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e o Pai de cada um dos homens – é o rosto da Misericórdia que pretende contagiar os homens tornando-os misericordiosos em espírito e em obra, em palavra e ação.
Por isso, o Papa, segundo o que o locutor português recolheu das suas palavras, atesta a “estreita ligação entre a misericórdia e a missão”, de modo que “a Igreja tem uma vida autêntica quando professa e proclama aos homens a misericórdia de Deus”. Professar implica proclamar e o proclamar decorre do professar. Com efeito, tal como o pastor que recuperou a ovelha tresmalhada, a mulher que encontrou a dracma perdida e o Pai que celebra o retorno do filho pródigo e reencontrado (vd Lc 15,5-7.9-10.32) se alegraram e convidaram à alegria e à festa, também nós, “quando recebemos uma bela notícia, quando experimentamos uma alegria, é natural que tenhamos o desejo de a transmitir aos outros”, proclamando-a aos quatro ventos.
Por isso, “como aconteceu com os primeiros discípulos, o sinal concreto de que encontramos realmente Jesus é que experimentemos a alegria de O querer comunicar a quem está ao nosso redor”. E, assim, o Pontífice, pretendendo chamar a atenção para a responsabilidade que nos advém do batismo, declarou:
“Todo o cristão deve ser um Cristóforo, um portador de Cristo, pois a misericórdia que recebemos do Pai, em Cristo, não nos é dada como uma consolação privada, mas chama-nos a sermos instrumentos para que outras pessoas também possam receber este dom”.
Para o Papa Francisco, cada cristão tem a “responsabilidade de ser missionário do Evangelho” e deve anunciar o Evangelho com a alegria de quem guarda uma “boa notícia”. Não se trata de atitude de prosélito, mas de postura de quem oferece e transmite “um dom que nos foi dado”, pois, como frisou o Bispo de Roma, “a misericórdia que recebemos do Pai não nos foi dada como uma consolação pessoal, mas torna-nos instrumentos para que outros possam receber o mesmo dom”.
Apelando aos crentes para que levem a sério a sua identidade cristã, sustentou que “só assim o Evangelho pode tocar o coração das pessoas e abri-lo a receber a graça do amor”. E, como exemplo de que não teremos de fazer muito esforço para encontrar um pretexto para a prática das obras de misericórdia, convidou os presentes a concretizarem duas obras de misericórdia: “rezar pelos defuntos e consolar os aflitos” – no contexto do falecimento de uma colaboradora da Casa de Santa Marta, deixando viúvo o marido.
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“Cristóforo” é um vocábulo composto de “Cristo” (o grego, Χριστός ) e o verbo grego “foréo” (φορέω, com a variante φέρω). Cristo é a transcrição grega do hebraico Messias, o ungido de Deus. Por sua vez, o verbo “foréo” significa: levar para cá (trazer) e para lá (levar propriamente dito), levar notícias, andar com um determinado hábito ou veste. Assim, “cristóforo”, que no latim se diz “cristífero” (que gera Cristo, que transporta Cristo), será aquele que transporta Cristo, o gera para os outros e lho mostra (atente-se na expressão portuguesa “dar à luz” no sentido de “parir”, editar, publicar, proclamar, mostrar). Por outro lado, quem recebeu o batismo, está revestido de Cristo. Por alguma razão se diz que o cristão proclama Cristo com a palavra e com a vida. Lá diz o Apóstolo: “Todos vós que fostes batizados em Cristo, estais revestidos de Cristo” (Gl 3,27).
Da família lexical de φορέω são: φορά (nome), a significar – ação de levar adiante, carga, fecundidade; φοράδεν (advérbio), a significar – levando ou sendo levado em liteira ou em cadeira; φορεϊον (nome), a significar – liteira, féretro; φορεύς (nome), a significar – portador, moço de corda; φόρεμα (nome), a significar – carga, vestido, liteira, andor; e φορετός, a significar – levado, que se move.
Refletindo com base nos significados ora registados, melhor se pode compreender o sentido da dignidade e da responsabilidade do ser cristão. De cristóforo resultou o nosso nome próprio “Cristóvão” (o portador de Cristo, como a Mãe de Jesus e a Igreja…), padroeiro dos condutores, nomeadamente os automobilistas.
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Já no dia 29, o Papa falou sobre a misericórdia na audiência aos participantes na Assembleia Geral da CDF (Congregação para a Doutrina da Fé). Centrando a alocução no núcleo temático do Ano Santo da Misericórdia, exprimiu o desejo de que este constitua uma ocasião propícia para “todos os membros da Igreja renovarem a sua fé em Jesus Cristo, que é o rosto da misericórdia do Pai, a via que une Deus e o homem”. De forma especial, exprimiu o desejo de que “pastores e fiéis” redescubram “as obras de misericórdia corporais e espirituais” já que, no ocaso da vida terrena de cada um, seremos questionados sobre se, além de termos dado de comer e beber a quem tinha sede e fome, ajudámos as pessoas a “sair da dúvida”, se acolhemos os pecadores, admoestando-os e corrigindo-os e se fomos capazes de combater a ignorância, sobretudo a relativa à fé cristã e a uma vida correta.
Se aos fiéis apinhados na Praça de São Pedro, relacionou a missão com a misericórdia, na Sala Clementina estabeleceu a “relação cognitiva e unificante” da fé e da caridade com “o mistério do Amor, que é o próprio Deus”, de Deus que, “embora permanecendo um mistério, tornou efetiva e afetiva a sua misericórdia, através de Jesus feito homem para a nossa salvação”. E explicitou a razão de ser da Congregação para a Doutrina da Fé nos termos seguintes:
“Com efeito, a fé cristã não é apenas conhecimento a ser conservado na memória, mas verdade a ser vivida no amor. Por isso, juntamente com a doutrina da fé, é necessário conservar também a integridade dos costumes, de modo particular nos âmbitos mais delicados da vida. A adesão da fé à pessoa de Cristo implica tanto o ato da razão como a resposta moral ao seu dom.”.
O Papa, chamando a atenção para a delicadeza que a tarefa de proteger a integridade da fé comporta, assegurou que ela requer um “empenho colegial”. Em conformidade com este postulado, ao mesmo tempo que agradeceu aos Consultores e ao Comissário, que colaboram com o notável Dicastério para Doutrina da Fé, cujo trabalho é altamente meritório, encorajou este dicastério à continuidade e à intensificação destas colaborações, bem como à promoção, a nível eclesial,  da “justa sinodalidade”.
Depois, citando como positiva a reunião de 2015 com as Comissões doutrinais das Conferências Episcopais europeias, frisou que, sem a “abertura à dimensão transcendental da vida (…),  a Europa corre o risco de perder aquele espírito humanístico que, no entanto, ama e defende”.
Aludindo à responsabilidade de cada um colocar ao serviço da comunidade os dons recebidos de Deus em articulação com a vertente organizativa da Igreja, Francisco ensinou que a renovação da vida eclesial implica o estudo da “complementaridade” entre os dons hierárquicos e os dons carismáticos, “dons que são destinados a colaborar em sinergia para o bem da Igreja e do mundo”:
O testemunho desta complementaridade é hoje, mais do que nunca, urgente e representa uma expressão eloquente daquela ordenada pluriformidade que carateriza o tecido eclesial, reflexo da harmoniosa comunhão que vive no coração do Deus Uno e Trino”.
A conexão entre os dons hierárquicos e os dons carismáticos remete para “a sua raiz trinitária na ligação entre o Logos (o Verbo) divino incarnado e o Espírito Santo, que é sempre dom do Pai e do Filho” – raiz que, reconhecida e aceite com humildade, induzirá a Igreja a permanentemente se renovar.
E, salientando a necessidade de equilibrar a unidade essencial com a desejável pluriformidade, afirmou:
Unidade e pluriformidade são os selos (marcas) de uma Igreja que, movida pelo Espírito, sabe caminhar, com passos seguros e fiéis em direção à meta que o Senhor Ressuscitado lhe indica ao longo da História”.
Por fim, reforçando o enaltecimento do dinamismo sinodal, disse que a sinodalidade, “se entendida corretamente, nasce da comunhão e conduz à comunhão”.
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É a grandeza da essência do ser e da missão d a Igreja e do cristão: a “cristoforia” ou o “cristoforismo”.

2016.01.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Das razões de o Banif ter resolução antes de Janeiro de 2016

Já quando o Governo de José Sócrates procedeu à nacionalização do BPN (Banco Nacional de Negócios), emparceirava com a justificação oficial de acautelar a contaminação de todo o sistema financeiro, pelo efeito de dominó, a justificação, propalada um pouco entre dentes, do acautelamento dos negócios financeiros das Misericórdias e outras entidades sociais e religiosas, bem como de investimentos significativos de organismos conexos com a Segurança Social.
Nestes termos, a nacionalização decretada pelo Governo, que se seguiu à aprovação parlamentar da lei-quadro das nacionalizações, veio a acautelar, oficialmente, a confiança no sistema financeiro e a sua presumível robustez e, oficiosamente, certos interesses do Estado e de respeitáveis entidades privadas, muitas das quais de utilidade pública.
O Governo deixou de fora da medida nacionalizadora a SLN (Sociedade Lusa de Negócios), que passou a operar com outra designação e presumivelmente com outro estatuto.  
A Comunicação Social levantou questões, dúvidas e suspeitas sobre factos e personalidades, que nunca obtiveram explicação cabal. A Comissão Parlamentar de Inquérito não chegou a conclusões inequívocas e as autoridades judiciárias não levaram à barra dos tribunais os responsáveis. Os dinheiros sumiram, mas a culpa continua a pedir casamento sem que haja pretendentes. Sobre o BES/GES, ficamos à espera para ver.
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Se, no caso do BES/GES, o problema das Misericórdias, Igrejas e Institutos do Estado não parecem ter andado na berlinda – mas empresas que foram do Estado, empresas privadas e inúmeras personalidades (algumas das quais agraciadas com galardões das ordens honoríficas portuguesas) – com o Banif as coisas sucederam de outra maneira.
Já refleti sobre os custos e sobre as diversas tipologias de lesados do desaire dos bancos. O governador do BdP chegou a declarar que a resolução encontrada para o Banif é semelhante à do BES, o que parece não corresponder à realidade, dado que o Fundo pagou menos que no caso anterior, cabendo ao Estado a injeção de maior volume de capital a acrescentar ao anteriormente injetado. Por outro lado, o Banif foi vendido, ainda que por um montante de cerca da quarta parte do valor estimado, ao passo que o Novo Banco ainda não foi vendido.
Por um lado, da parte da anterior administração surgem críticas viperinas, quer endereçadas ao BdP quer dirigidas ao Governo; por outro, critica-se o Governo por não ter liquidado o Banco, não promover a sua integração na CGD (Caixa Geral de Depósitos) ou esperar pelo dia 1 de janeiro. Até se diz à boca cheia que a Comissão Europeia obrigara à venda ao Santander Totta.
Liquidar o Banco não descredibilizaria o sistema financeiro mais do que o estado de descredibilização e dificuldade a que chegou. E, apesar de agora vir o Governo a terreiro declarar que preferia a integração do Banif na CGD, não se pode concluir que a solução para o Banif se deva exclusivamente à intenção de mascarar a saída limpa do programa de ajustamento ou a impedir a perturbação adicional do período eleitoral. A ser assim, teríamos de concluir que a Comissão Europeia e o BCE teriam sido mauzinhos ao fazerem rebentar a castanha nas mãos de um Governo que ainda não tinha aquecido as cadeiras de São Bento.
Paira no ar a ideia de que terá havido a intenção de proteger determinados interesses, pois, se a resolução caísse em data posterior a 1 de janeiro, teria havido maior distribuição dos prejuízos, em virtude das novas regras da zona Euro.
O Expresso, publicado no passado dia 22 de Janeiro, afirmava que a resolução do Banif e o momento se deve, não tanto à bola de neve que arrastasse o sistema financeiro, mas ao acautelamento dos depósitos e da dívida sénior de Misericórdias e de diversos organismos públicos.
Parece estranho que o Governo pretenda acautelar interesses de entidades criadas e mantidas pelas Igrejas e de outras entidades privadas ainda que de interesse público. Não obstante, se o não fizesse, teria provavelmente que vir em auxílio financeiro em virtude da prestação social circunstancialmente imprescindível que aquelas entidades desenvolvem. No atinente aos organismos públicos, parece mais legítimo que o Estado venha pressurosamente em seu auxílio pelo meio mais económico possível. Porém, deve apurar responsabilidades, seja de quem for.
Todavia, não posso deixar de tecer algumas considerações.
Em primeiro lugar, se o Estado tem um banco público – a CGD – sempre que for necessário acautelar interesses públicos ou equivalentes, mesmo que apenas circunstancialmente, no caso da resolução de um banco, teria de bater o pé a Bruxelas ou a Frankfurt em defesa dos interesses nacionais. E, a ser verdade o que veio à ribalta da Comunicação Social, este Governo, neste aspeto, não é melhor que os quatro anteriores.
Depois, se os organismos públicos fazem depósitos em bancos levados por amizades, compadrios ou confianças políticas partidárias, deveriam os seus líderes ser responsabilizados disciplinar, criminal e civilmente – devendo rever-se todo o processo de nomeação e manutenção dos respetivos titulares. Porque não hão de ser obrigados a depositar ou investir os capitais não aplicáveis na gestão corrente ou no investimento físico no banco público e/ou a levar os organismos que dirigem a diversificarem-se como clientes de várias instituições financeiras, de modo que os eventuais riscos sejam minimizados? Sendo o interesse público que está em causa, há que agir em nome da ética pública.
Quanto aos responsáveis de Igrejas e suas obras sociais como as Misericórdias e demais IPSS (instituições particulares de segurança social), é preciso acabar com a tendência de confiar em exclusivo (ou maioritariamente) nas instituições em que pontificam ou colaboram determinadas personalidades (amigos, correligionários, familiares…) e diversificar a confiança de capitais. Está em causa a ética que resulta da prestação pública das instituições, da consciência moral e da prestação de contas perante Deus e as comunidades. Está em causa o dinheiro da coletividade, dos benfeitores, dos equipamentos de utilização coletiva e, em muitos casos, o dinheiro dos pobres (também se sabe que muitas vezes as Misericórdias são geridas, não em nome da Igreja ou os pobres, mas em nome dos interesses pessoais e de prestígio balofo, quando não sob desígnio político)!
Ademais, quando os serviços públicos são insuficientes na gestão dos dinheiros dos outros, sempre haverá recurso à denúncia pública e à reclamação administrativa; quando se confia em compadres, gera-se uma relação de dependência que funciona num ou noutro sentido.
Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal.  

2016.01.29 – Louro de Carvalho

Tem de ser utilizado o IBAN em vez do NIB

Desde há uns anos a esta parte que, para proceder a uma transferência de dinheiro, é necessário utilizar o NIB (Número de Identificação Bancária) do destinatário, tal como para fazer uma cobrança pelo sistema de débito direto. Tal procedimento desaparecerá a partir de 1 de fevereiro, porquanto o NIB cessará em 31 de janeiro.
Em lugar do NIB, com 21 dígitos, passará a utilizar-se o IBAN (international bank account number). É uma norma que já era observada para “as transferências entre contas de países diferentes” e que “passa também a valer para as operações nacionais”, como se pode ler na página da DECO (Associação da Defesa do Consumidor).
Nas contas domiciliadas em Portugal, o IBAN é composto pelos 21 dígitos do atual NIB, precedidos do grupo alfanumérico PT50 do código do país. No total, o IBAN tem 25 carateres alfanuméricos (vg: PT50 1234 4321 12345678901 72), constituído por 5 grupos (vd Dinheiro Vivo on line, de 28 de janeiro). Além do código do país, já referido, vem um grupo de quatro dígitos relativos ao código de agente financeiro atribuído pelo BdP (Banco de Portugal), seguido de uma referência de quatro dígitos atribuídos pelo PSP (prestador de serviços de pagamento), de 11 dígitos referentes aos números de conta e, por fim, de dois dígitos de controlo.
Tanto o NIB, ainda em uso, como o IBAN, de uso a generalizar, podem ser consultados em qualquer caixa Multibanco, no homebanking ou ao balcão do receptivo banco. Também vêm mencionados nos extratos bancários ou nas cadernetas”, como adverte a DECO, e vêm disponíveis na página web do BdP.
A alteração foi comunicada pelo BdP já no passado dia 1 de dezembro, como se pode ver na sua página web, referindo que, “a 1 de fevereiro de 2016, ficará concluída a criação da Área Única de Pagamentos em Euros (SEPA – Single Euro Payments Area, em inglês) para as transferências a crédito e os débitos diretos”, devendo, nessa data, ser plenamente adotados os requisitos técnicos e de negócio estipulados pelo Regulamento comunitário.
Assim, O IBAN será o identificador único das contas, pelo que “todos os pagamentos terão de ser iniciados com a indicação dos IBAN das contas do ordenante e do beneficiário”. Por seu turno, “os organismos da Administração Pública e as empresas” (exceto as microempresas) “terão de usar o formato ISO 20022 XML, quer no envio, quer na receção, de ficheiros de transferências a crédito e de débitos diretos.
Por consequência, operações que não cumpram estes requisitos “terão de ser rejeitadas pelos bancos e demais prestadores de serviços de pagamento”.
Nestes termos, de acordo com a advertência do BdP, “os organismos da Administração Pública e as empresas que não utilizem o IBAN como identificador das contas e o formato ISO 20022 XML na comunicação com os seus bancos ver-se-ão impossibilitados de concretizar transferências a crédito e débitos diretos” (designadamente e a título de exemplo, salários, pagamentos a fornecedores ou cobranças de bens e serviços). Pelo que, a dois meses da entrada em vigor do novo regime, o BdP recomendava “aos organismos da Administração Pública e às empresas” que ainda não estivessem a cumprir estas condições que contactassem os seus bancos e demais prestadores de serviços de pagamentos, “de modo a efetuarem atempadamente as alterações necessárias para assegurar a normal realização dos seus pagamentos e cobranças”.
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A alteração, como se viu, surge na sequência da conclusão da migração para o SEPA (Área Única de Pagamentos em Euros). O IBAN, passando a ser o identificador único das contas, tem como objetivo permitir, em simultâneo, a identificação, interpretação e validação de pagamentos internacionais, “minimizando, de acordo com a explicação do Banco de Portugal, a ocorrência de erros e incorreções na informação afeta à execução de operações”.
Como as operações que não cumpram os requisitos definidos pelo Regulamento terão de ser rejeitadas pelos bancos, cabe aos próprios bancos garantir, até ao dia 31 de janeiro, a conversão automática do NIB em IBAN.
Após aquela data, crê-se que, ao selecionar-se a opção de transferência nacional, o PT50 venha pré-preenchido, não vindo os clientes bancários a sentir qualquer diferença. Porém, se tal não suceder, o cliente terá de introduzir manualmente o IBAN do destinatário. Por outro lado, nos débitos diretos autorizados e disponíveis para pagamentos das suas contas mensais, os clientes não terão motivos para preocupações, segundo a Deco.
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Acresce ainda referir que o IBAN (International Bank Account Number) é uma estrutura normalizada de número de conta de pagamento, cujo conceito surgiu conceptualmente ainda no final da década de 90 no seio do ECBS (European Committee for Banking Standards), tendo-se consagrado como um standard internacionalmente aceite com a publicação da norma ISO 13616.
Com a formulação do IBAN, acima referida, e a sua adoção, ora generalizada, possibilitou-se que cada país continuasse a ter o seu standard de BBAN (Basic Bank Account Number ) próprio, ou seja, o NIB , viabilizando, em simultâneo, a conveniente identificação, interpretação e validação harmonizadas dos identificadores de conta de pagamento internacionais, vindo a minimizar, como se disse, a ocorrência de erros e incorreções na informação afeta à execução de operações de pagamento internacionais.
Adicionalmente, é de referir que cabe exclusivamente ao PSP o ónus de gerar e atribuir os IBAN das contas de pagamento aos clientes, os quais depois, “por sua vez, passam a poder disponibilizá-los aos agentes com os quais se relacionam”.
Acresce que há países em que a simples indicação do IBAN não é bastante para assegurar o encaminhamento da transação para o beneficiário, pelo que o IBAN deverá ser acompanhado pela indicação do código BIC (Business Identifier Code) do PSP do beneficiário.  
Por sua vez, o BIC ou código SWIFT é o código que possibilita a identificação do PSP (Prestador de Serviços de Pagamento) de acordo com a norma ISO 9362.
Espera-se que tudo não passe de um novo instrumento de euroburocracia e os clientes da banca dos organismos públicos e das diversas entidades empresariais e, em geral, os cidadãos não passem por quaisquer dissabores contabilísticos e financeiros.

2016.01.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Atitudes diplomáticas (e não só) bizarras

Ocorreram em Portugal, nos últimos tempos, umas tantas passagens bizarras a que já me referi em outras ocasiões e de que destaco: um Estado a deixar-se pisar por Bruxelas, que obrigou à venda do Banif ao Santander Totta; um Banco de Portugal a transferir imprevistamente do Novo Banco para o banco mau, com prejuízos para outros, ativos que a resolução integrara no banco que fora criado em agosto de 2014; Cavaco Silva a declarar redundantemente que é de manter a tradição de apresentação de Boas Festas de Natal independentemente do Governo que esteja em funções, quando porfiara ter empossado o atual porque não podia dissolver o Parlamento (ele, que pretendera, à face da lei, distinguir “presidente de câmara” e “presidente da câmara”, “presidente de junta” e “presidente da junta”); a Casa Civil do Presidente a avaliar com ufania o facto de, no segredo dos deuses, ter promovido a negociação da alteração de 300 diplomas antes da promulgação (normativos que hão de ter força publica e provenientes de outros órgãos de soberania) – bela atitude de transparência a adicionar à do hermetismo das contas denunciada pelo Tribunal de Contas, bem como às aquisições por ajuste direto e junto dos mesmo fornecedores, em nome da eficiência e discrição.
Isto para não falar da campanha eleitoral para a Presidência da República marcada por fenómenos também bizarros: uma candidatura alegadamente solitária, servida nos bastidores por duas poderosas máquinas partidárias; outra candidatura de partido, que a direção do partido não apoiou, insólita na eficácia, nos resultados, na resposta (ou falta dela) às provocações e nas promessas (como a dos jantares diplomáticos em lares da terceira idade); uma candidatura do “tempo novo” apoiada por alguém que, para a distanciar do atual inquilino de Belém, aponta ao candidato as mesmas caraterísticas de personalidade de Cavaco Silva; uma candidatura de franco-atirador bem posicionada em quase todo o território; e uma candidatura de forte partido eleitoralmente trucidada.
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Nestes últimos dias, a imprensa deu conta da pícara diplomacia italiana: Roma tapou estátuas de nus em sinal de respeito pelo presidente do Irão e nada de álcool servido ao jantar com o presidente iraniano. Com efeito, para evitar embaraços diplomáticos e, alegadamente num gesto de respeito pelo visitante Hassan Rouhani, presidente do Irão, num périplo oficial por Itália, todas as esculturas de nus no Museu Capitolini, em Roma, foram obrigadas a ocultar a sua atrevida nudez com um isolamento fornecido por proporcionados painéis brancos.
O predito museu foi o local escolhido para o encontro entre Rouhani e o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi, no passado dia 25 de janeiro. Porém, ao longo dos amplos corredores percorridos por ambos os estadistas, nenhuma das estátuas mais desavergonhadas ficou patente aos olhares dos ilustres e das respetivas comitivas.
Também por motivos religiosos respeitantes à religião do presidente iraniano, o islamismo, professado no seu país, não foram servidas bebidas alcoólicas no jantar oferecido em sua honra.
Embora o gabinete de Matteo Renzi se tenha esquivado a explicar a decisão, um porta-voz do Capitolini esclareceu que os pormenores da visita foram delineados pelos serviços do gabinete do primeiro-ministro.
O presidente iraniano iniciou efetivamente, no dia 25, em Itália, a sua primeira visita oficial à Europa, no contexto temporal do levantamento das sanções internacionais ao Irão. Da agenda da visita em Itália fizeram parte ainda encontros com Sergio Mattarella, seu homólogo italiano, e com o Papa Francisco. E o périplo europeu de Hassan Rouhani prosseguiu para França.
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Enquanto as autoridades de Roma e de Teerão fazem ouvido de surdo em relação à polémica das estátuas tapadas em Itália em sinal de respeito pelo presidente do Irão, João Soares, ministro da Cultura de Portugal, garante que não autorizaria semelhante gesto em Portugal, que tem por completamente “disparatado”, pelo que, em Portugal “nenhuma estátua seria tapada” para agradar a um dirigente estrangeiro.

Entretanto, Matteo Renzi foi mordazmente criticado, nos diversos quadrantes políticos, pela cedência injustificada ou motivada pelo facto de, no âmbito da visita, irem ser celebrados negócios bilaterais no valor de 17 mil milhões de euros. O governante italiano foi ainda censurado por não ter feito qualquer referência, nos discursos oficiais, à questão dos direitos humanos.
O episódio ocorrido em Roma deslustra o tradicional aforismo, “Em Roma, sê romano”, que servia de norma a determinar a aceitação das leis e modos de vida da comunidade que visitamos ou em que pretendemos inserir-nos. O aforismo conhece uma variante mais explícita e não vinculativa ao Império: na terra onde estiveres, faz como vires. E o dever de integrar cidadãos imigrantes que impende sobre os países de acolhimento e a obrigação de hospitalidade inerente ao devir comunitário não dispensam a necessidade e a conveniência de adaptação às leis, regras e usos autóctones, a menos que sejam manifestamente “inéticos”.
Por conseguinte, não vale, a título algum, acocorar a civilização e a cultura europeia (e, em concreto, a italiana, a portuguesa, a francesa…) perante qualquer civilização e cultura. Depois, a cultura europeia merece defesa, preservação e promoção e é digna de orgulho por via da sua excelsa justiça, decência e estética.
Apesar dos seus defeitos, lacunas e bizarrices e necessidade de devir humano, ela não pode ceder ao relativismo amoral ou ao moralismo estéril e desrespeitoso pelos nossos próprios valores a ponto de nos remetermos à mais vilipendiada inibição cultural e diplomática ou ao mais obtuso servilismo ao poder exógeno – concretizável a prazo na mais hedionda iconoclastia.
Conforme preservamos em ambiente “ecotopográfico” os templos e palácios greco-romanos ou as catedrais medievais e os templos, palácios e outros monumentos renascentistas, barrocos, neoclássicos, românticos e da pós-modernidade, também temos de preservar e ostentar as vistosas estátuas do nu renascentista, geradas pelo génio europeu. Torna-se aviltante cobrir as produções artísticas da história e cultura europeias para hipocritamente não ferir as suscetibilidades pseudomorais de um visitante por mais ilustre ou conveniente que seja.
Se um presidente estrangeiro não consegue tolerar a cultura de um país a visitar, que o não visite. Ou então, que desvie os olhos para não ver a vanidade (vd Sl 119) da nudez europeia. Ou será que os iranianos nascem vestidos? Será, antes, que a arte já perdeu a capacidade das liberdades artísticas e pedagógicas que se lhe reconheciam? Será inválido o esforço teológico de João Paulo II e outros, conducente à espiritualidade do corpo, preferindo-se o desconhecimento corporal?
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É óbvio que é tão obtuso o puritanismo conservador iraniano como o grotesco progressismo da província de Alberta, no Canadá, cujo governo retirou do vocabulário das escolas palavras como “pai”, “mãe” e os designativos de género “ele”, “ela”, “eles” “elas”. Para muitos, já começa a saber a arcaica a diferenciação sexual através das palavras. Não levará muito tempo que as pessoas se confessem todas do mesmo sexo, mas a perceber a diferenciação anatómica seguida de notórias diferenças psicológicas!
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Também na Itália não é inédita a falta de convivência com as raízes cristãs europeias e italianas: em escolas e outros espaços comunitários, por alegado respeito por migrantes muçulmanos e migrantes ateus, que era necessário acolher e para não traumatizar os seus rebentos, nos últimos anos eclipsaram-se os motivos cristãos na celebração do Natal.
Porém, sempre que há atentado terrorista, lá se levantam as vozes autorizadas a alertar para a necessidade de não se deixar que a oposição ao terrorismo cerceie a nossa liberdade ou o nosso modo de vida.
É certo que procedemos bem em perceber que os atentados terroristas são um ataque ao nosso modo de vida. Mas devemos também opor-nos a outros ataques ao modo de vida dito ocidental. Com efeito, há muitos europeus que os promovem, muito céleres na proteção aos muçulmanos residentes na Europa, com o risco de nos induzirem a passar a vida a abjurar a sociedade livre, próspera, diversificada e respeitadora dos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos. Autoculpamo-nos de tudo: da pobreza vivida nos regimes corruptos aos atropelos aos direitos humanos pelos governos despóticos. E corre-se o risco de acontecer no terrorismo o que sucede com os casos de violação, a culpa ser das vítimas, que se puseram a jeito.
E, na Europa, os muçulmanos são protegidos duma realidade traumatizante: as mostras públicas do cristianismo, que ferem a sensibilidade islâmica. Porquê? Por humanismo, não certamente, mas por contemporização resultante da falta de compromisso religioso e por falta de sabedoria dialogal. Assim, Bruxelas, em 2011, ostentou uma gigantesca árvore de Natal e o presépio da Grand Place. Junto ao Manneken Pis, havia outro presépio de rua, e as crianças entusiasmaram-se mais com as figuras ofensivas do Menino Jesus e família do que com a mascote da cidade. Por conseguinte, em 2012, já não existiu a árvore de Natal da Grand Place, se considerar que tal símbolo de festa católica ofendia os muçulmanos residentes na Bélgica. Também em 2014, um tribunal francês em Nantes decretou a retirada de um presépio dum edifício municipal da zona envolvente, e vários outros presépios em locais públicos foram hostilizados. Na Grã-Bretanha, já é malvisto desejar Merry Christmas em vez do pan-religioso Seasons Greetings, além do ataque propagandístico que, de quando em quando, é desferido contra o nome de Deus.
E Portugal, bom aluno da Europa moderna e decente, ostenta muitas decorações públicas de Natal já desnudadas da vertente religiosa, enxameadas de motivos comerciais atinentes a outros elementos, alguns dos quais, embora com antigo sentido cristão, o foram perdendo ao longo do tempo.
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Gosto de referir que estudei a religião grega, a religião romana e outras. Não me feriram aqueles dados religioso-mitológicos nem fiquei seu aderente. No entanto, reconheço que enditaram o saber, a estética, a cultura e a ciência. Sabedoria e tolerância são o que falta, não?!

2016.01.27 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O discurso programático de Jesus em Nazaré

O Evangelho de Lucas coloca o início da pregação de Jesus e da sua vida pública em geral na Sinagoga de Nazaré. Depois do episódio do seu Batismo no Jordão (cf Lc 3,21-22) e da teofania trinitária subsequente à abertura do Céu e desta resultante, retirara-se para o deserto, cheio do Espírito Santo, onde foi tentado pelo diabo, tendo respondido cabalmente às seduções e insídias do tentador, que se retirou de junto dele (cf Lc 4,1-13).
Depois, impelido pelo mesmo Espírito Santo, Jesus regressou à Galileia: ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam. Assim a sua fama se propagou por toda a região (cf  Lc 4,14-15).
Segundo Lucas, o quadro das primeiras pregações de Jesus é a sinagoga e será ela também o cenário dos primeiro atos da pregação de Paulo e dos outros apóstolos tipicamente missionários (At 9,20; 13,5.14-15.44). Marcos e Mateus, embora comecem por enunciar o conteúdo nuclear da pregação – a proximidade do reino de Deus (ou reino do Céu), a vocação dos primeiros discípulos, mencionam, logo a seguir, a pregação nas sinagogas (vd Mc 1,15.16-28; Mt 4,12.17.18-22; 23ss). Porém, enquanto Mateus e Marcos destacam a pregação e os milagres em Cafarnaum, Lucas foca a sua atenção em Nazaré.
É certo que o primeiro contacto com a catequese de Jesus da parte dos doutores deu-se aos doze anos de idade do Menino no Templo (Lc 2,46ss). E, por seu turno, João assinalando o Batismo no Jordão, faz-lhe seguir a eleição dos primeiros discípulos (vd Jo 1,31-51) na Galileia, mas, depois, evidencia-o em Caná numas bodas, acompanhado da Mãe e dos discípulos. Lá não produziu uma pregação propriamente dita, mas realizou ali o primeiro dos seus sinais. Depois, passa a cafarnaum e vai ao Templo para num gesto teológico-contestatário o purificar (vd Jo 2,1-2.11.12.13-25).
Todavia, não deixa de usar o Templo para o ensino, os prodígios e a misericórdia (vd Jo 7,14; 8,1-59). Também os apóstolos, que iniciaram a pregação a partir das imediações do cenáculo, levaram a multidão dos primeiros discípulos a frequentar diariamente o Templo e ali fizeram prodígios (vd At 2, 46; 3, 1ss).
Voltando a Lucas e fixando-nos na perícopa a que o Papa chamou “o discurso programático de Jesus em Nazaré” – na sua alocução aos fiéis que a Praça de São Pedro emoldurava para a recitação do Angelus no passado dia 24 – e onde sintetiza a atividade evangelizadora, vemos o Mestre em Nazaré na sinagoga a um sábado. Como era costume, depois da proclamação das 18 bênçãos passava-se à leitura da Lei (primeira leitura) e dos Profetas (segunda leitura). Esta última era feita por um adulto versado nas Escrituras, que fazia a explanação homilética.
Naquele sábado, a leitura do Profeta coube a Jesus e processou-se do seguinte modo: “…levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito” (Lc 4,16-17):
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.” (Lc 4,18-19; cf Is 61,1-2).
“Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele.” (Lc 4,20).
Francisco designa como programático aquele texto, decalcado no texto de Isaías, em que vem sintetizada a missão do Profeta e que Jesus aplica si próprio. E os verbos são bem conotativos do messianismo: “ungiu”, o verbo da consagração profética, sacerdotal e régia; “anunciar”, o verbo da primeira ação do profeta, messias, apóstolo, missionário; “proclamar”, o verbo do arauto, pregador, cantor; e “mandar em liberdade”, a expressão verbal da auctoritas e da potestas libertadoras e não tirânicas.
Mas é a palavra explícita de Jesus que atribui às palavras de Isaías o conteúdo programático e messiânico: “Cumpriu-se hoje”.
Todos tinham os olhos fixos nele porque Ele não leu a perícopa na íntegra: omitiu o segmento discursivo “e a vingança do nosso Deus” que era em Isaías parte integrante da proclamação do ano favorável.
Ao aplicar a si mesmo o texto de Isaías, assume que o Espírito que se manifestou no Batismo O ungiu para esta missão messiânica. E mostra a sua clara opção por uma das linhas messiânicas que talvez estivesse mais no esquecimento do povo: não a do messianismo político circunscrito àquele povo, mas a do messianismo universal. Neste messianismo universal cabem todos e cada um, mas preferencialmente: os pobres, a quem será anunciada a Boa Nova; os cativos, a quem será proclamada a libertação; os cegos, a quem será oferecida a recuperação da vista; e os oprimidos, a quem será oferecida a liberdade.  
Ao ouvi-lo dizer “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir”, “todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça que Lhe saíam da boca (Lc 4,21-22). Porém, quando mostrou conhecer a curiosidade egoísta e espetacular dos circunstantes “Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum, fá-lo também aqui na tua terra” (v. 23), estes mudaram de atitude. Mas ele explicitou sem rodeios:
Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman.” (vv 24-27).
E o evangelista continua:
“Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de furor. E, erguendo-se, lançaram-No fora da cidade e levaram-No ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo. Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho.” (vv 28-30).
É significativo que Jesus tenha escapado ileso, apesar da hostilidade dos conterrâneos e tenha seguido o seu caminho. Era um caminho necessário que, embora iniciado, ainda tinha muito por andar para que a missão messiânica se realizasse em pleno.
A partir de agora, aquele “ano favorável da parte do Senhor”, que era no Antigo Testamento o ano jubilar, que se celebrava de 50 em 50 anos, passava a ser o ano sem limites temporais. O “hoje” de que fala Jesus não é o “hoje” efémero, mas o infindável tempo da graça, o “hoje” da Salvação acentuada muitas vezes por Lucas (vd Lc 2,11; 3,22; 5,26; 13,32; 19,9; 23,43).
O mau acolhimento a Jesus na sua terra é indício da rejeição com que o povo judeu viria a brindar este Messias, já que a ideia dominante e obsessiva era a da libertação de Israel dos opressores vizinhos e, naquele tempo, a libertação político-militar da ocupação romana. Esta obsessão não era compatível com a universalidade da salvação.
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Na sua alocução dominical de 24 de Janeiro o Papa salienta a originalidade da palavra de Jesus pela força do Espírito, palavra que revela o sentido das Escrituras (cf Lc 24,27.32) e silencia os espíritos impuros, que obedecem (cf Mc 1,27).
Diferente dos mestres coevos, este insigne Mestre não abre uma escola para estudar a Lei, mas como mestre ambulante e peregrino ensina em todo o tempo e lugar: onde é possível e aproveita todos os momentos que a ambulação lhe proporciona. Torna-se diferente de João Batista – sustenta o Papa – porque “João proclama o juízo iminente de Deus, ao passo que Jesus anuncia o seu perdão de Pai”.
Francisco não deixa de proceder à transferência deste cariz messiânico de Cristo para o dever profético e missionário da Igreja e de todos os cristãos, de todos os batizados:
“Ser cristão e ser missionário é a mesma coisa. Anunciar o Evangelho, com a palavra e sobretudo com a vida, é a finalidade principal da comunidade cristã e de cada um dos seus membros.”
Por outro lado, o Pontífice sublinha que “Jesus dirige a Boa Nova a todos sem excluir ninguém, mas privilegiando os afastados, os que sofrem, os doentes, os descartados da sociedade”. E lança a questão reflexiva, Que significa evangelizar os pobres?, a que responde:
“Significa, antes de mais, aproximar-se deles, significa ter a alegria de os servir, de os libertar da sua opressão, e tudo isto no nome e com o Espírito de Cristo, porque é Ele o Evangelho de Deus, é Ele a Misericórdia de Deus, é Ele a libertação de Deus, foi Ele que Se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza”.
A seguir, Francisco ensina que o referido “texto de Isaías, reforçado por algumas pequenas adaptações da lavra de Jesus, indica que o anúncio messiânico do Reino de Deus estabelecido no meio de nós se desenvolve preferencialmente com os colocados à margem, os prisioneiros, os opressores”.
Se no tempo de Jesus, esta gente não era o centro da comunidade de fé, diz o Papa, também hoje nos devemos questionar se efetivamente os diversos espaços de vida cristã apostólica são mesmo “fiéis ao programa de Cristo”, fazendo da evangelização dos pobres e do anuncio alegre da Boa Nova “a prioridade”. E adverte:
“Não se trata apenas de prestar assistência social, muito menos  de fazer atividade política. Trata-se de oferecer a força do Evangelho que converte os corações, sara as feridas, transforma as relações humanas e sociais segundo a lógica do amor. De facto, os pobres são o centro do Evangelho.”
Finalmente, Francisco confia esta causa do Evangelho à “Virgem Maria, Mãe dos evangelizadores”, para que “nos ajude a sentir fortemente a fome e sede do Evangelho”, “especialmente no coração e na carne dos pobres”, de modo que a comunidade cristã testemunhe no concreto a misericórdia de Cristo.
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Para que Jesus continue o seu caminho, através da Igreja e dos cristãos, na senda dos pobres, há ainda muito caminho por andar, cabendo à hierarquias liderar o processo, não constituindo travão, mas orientando a aceleração.

2016.01.26 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Marcelo Rebelo de Sousa é o novo Presidente

O professor Marcelo foi eleito Presidente a 24 de janeiro por clara maioria absoluta dos votos validamente expressos. Não vale a pena ficar a olhar para o volume de abstenção verificado ou para os votos nulos e brancos (ambos são, nestas eleições, considerados não validamente expressos).
O povo escolheu de entre os dez candidatos aquele que melhor fez passar a sua mensagem antes da campanha eleitoral e na própria campanha eleitoral.
É certo que este período eleitoral teve o fim que mereceu. No entanto, houve casos dignos de registo. Maria de Belém, com uma carreira política dentro do PS e com o exercício ministerial em dois governos, ficou num desagradável 4.º lugar, com pouco mais do que 4,2% dos votos (uma estrondosa derrota), seguida por Edgar Silva, que logrou alcançar quase 4% dos votos, logrando um 5.º lugar, causando à CDU o pior resultado de sempre.
Marisa Matias atingiu um simpático e histórico 3.º lugar, com uma votação que ultrapassou os 10,1% dos votos, consolidando e prestigiando o eleitorado do Bloco de Esquerda. E o candidato conhecido por Tino de Rans (Vitorino Silva) ficou num esperado 6.º lugar, com 3,28% dos votos, atirando para patamares inferiores figuras como Paulo Morais e Henrique Neto.
O candidato de uma certa esquerda, apoiado oficiosamente pela direção do PS, não conseguiu galvanizar os eleitores com o anúncio do advento do “tempo novo”. O apoio dos antigos presidentes não foi suficiente, revelando-se ambíguo o apoio declarativo de Ramalho Eanes, que fez de Nóvoa um general político, mas que o atrelou ao perfil de Cavaco Silva.
A esquerda política fragmentou-se até à fragilização e o PS mais uma vez mostrou que não sabe o que anda a fazer em eleições presidenciais. E os oponentes de Marcelo (que este recusa ter tido como adversários) lá se resignaram a ter como objetivo a provocação de uma segunda volta. Estava na cara que este objetivo era a confissão implícita da derrota.
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Marcelo ganhou em todos os círculos eleitorais e em quase todos com maioria absoluta; ganhou em quase todos os concelhos do país. Como se justifica tal resultado?
Candidatara-se à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, perdendo para Jorge Sampaio, embora tivesse permanecido como vereador; a sua liderança do PS não atingiu o período de uma legislatura; e teve uma passagem pouco mais que fugaz pelo Governo como Secretário de Estado e como Ministro – de Francisco Pinto Balsemão. No entanto, foi deputado à Assembleia Constituinte e foi o primeiro presidente da Comissão Política Distrital de Lisboa do PSD (1975-1977), partido a que aderiu após a sua fundação, em maio de 1974. Ainda no âmbito autárquico, foi presidente da Assembleia Municipal de Cascais (1979-1982) e da Assembleia Municipal de Celorico de Basto (1997-2009).
Dispõe de uma relevante carreira académica e de uma invejável notoriedade nos periódicos Expresso e Semanário e, sobretudo, de um longo percurso de décadas como comentador televisivo. É efetivamente um dos homens mais bem preparados académica e politicamente e tem a obrigação de conhecer a fundo os poderes presidenciais.
No entanto, revela algumas ambiguidades. Para lá da natural contradição em que incorrem aqueles que têm a oportunidade do uso da palavra com assiduidade, mercê das circunstâncias e vicissitudes que emolduram as conjunturas, Marcelo nem sempre fazia comentários imparciais e aprofundados; disse que não seria líder do PSD nem que Cristo descesse à Terra e foi-o; e sempre disse que não seria candidato a Presidente da República e reconheceu que Passos Coelho, ao referir em Congresso que o partido não apoiaria um candidato catavento e de ideias erráticas, se referia a si próprio, Marcelo. Por outro lado, também as caraterísticas presidenciais que o Presidente Cavaco Silva antevia como necessárias para o seu sucessor apontavam para uma exclusão do professor.
Todavia, foi a seguir às declarações de Passos Coelho que o comentador político pareceu inclinar-se para a hipótese de candidatura. E, quando esta se estava a desenhar ao lado das hipotéticas de Santana Lopes e de Rui Rio, o professor mantinha o múnus de comentador na TVI, que lhe facilitava ostensivamente o figurino do comentário.
Por outro lado, o professor Marcelo, alinhado com a perspetiva institucional dos partidos do Governo de coligação e do PS, reservou o anúncio da sua candidatura presidencial para depois das eleições legislativas. E fê-lo a 9 de outubro, a partir de Celorico de Basto, terra da avó.
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Desde o início, se propôs a fazer uma campanha sóbria, que implicava a ausência de outdoors, bandeiras e outros materiais de propaganda política, bem como comissões de honra e staffs de campanha e arrancou com um conjunto de três viaturas e pouquíssimos acompanhantes.
Diga-se em abono da verdade que essa frugalidade eleitoral, por um lado, correspondia a uma não necessidade de publicitação do homem e do seu pensamento, por mais que suficientemente conhecido; por outro lado, ele multiplicara os contactos e deslocações por todo o país ainda no tempo em que se apresentava com regularidade no palco do comentador político. Diga-se também que esta campanha – do tu cá tu lá, das compras, do jogo e do copo, das sandes, do mete fogaça e tira fogaça ou das palmadas nas costas e das conversas com miúdos sobre o futuro e a presidência – chegou a raiar o burlesco e o ridículo. No entanto, o professor ia resistindo a tudo, incluindo as acusações da não prestação do serviço militar e das nada simpáticas tomadas de posição em tempos idos, em detrimento da melhor democracia e progresso. E designou uma jovem como sua mandatária.
A sua campanha foi acusada de vazia de conteúdo político, pelo menos até ao debate com o considerado seu principal opositor, Sampaio da Nóvoa, também professor na Universidade de Lisboa, seu antigo reitor e hoje seu reitor honorário. Mas também as demais, com exceção das candidaturas de Marisa e de Edgar (alinhadas com o conteúdo ideológico e pragmático dos partidos de que são originários) foram paupérrimas em conteúdo político. Porém, a candidatura marcelista, se era pobre a nível declarativo (com exceção da estabilidade e cooperação com o Governo de Costa, o favorecimento ao orçamento e a não ameaça com o apito de árbitro ou a promessa de não dissolver o Parlamento para satisfazer o partido de que era originário), foi riquíssima em tática e simbologia. A sua maior entrevista televisiva foi concedida a partir da Faculdade de Direito; o propósito da candidatura foi justificado pela dívida que o candidato tinha para com o país; o lançamento da candidatura foi a partir de Celorico e não dum grande centro, o que mereceu reparo do desistente Rui Rio; a apresentação solitária, incluindo espaços mais conotados com a esquerda, e a rejeição da visibilidade de figuras gradas dos partidos da antiga coligação governativa – tudo se revelou em função da desvinculação da sua área partidária (que não da sua rejeição), até com motivações minudentes, como a da necessidade de os líderes terem de figurar no apoio à campanha eleitoral das autárquicas intercalares de São João da Madeira, e com o pisca-pisca à esquerda, o que alguns dizem de marcação ao centro. De resto, não escorraçou os dirigentes partidários quando eles apareceram nem menosprezou a máquina partidária que o PSD montou praticamente em todos os concelhos.
Nem percebo como alguns falam em legitimidade popular reforçada pelo facto de a candidatura marcelista ter assumido uma postura inteiramente pessoal. Primeiro, essa é uma ficção, pois o CDS aconselhou explicitamente o voto em Marcelo; e o PSD não podia fazer melhor do que fez, depois das declarações do líder no Congresso, a que se aludiu acima. Além disso, qual foi o presidente que não afiançou a índole inteiramente pessoal da sua candidatura? Posicionaram-se, pelo menos declaravam-no, independentemente dos apoios, partidários ou não, que viessem a seguir. Depois, quando um partido se escuda no caráter pessoal de uma candidatura para se recusar a dar apoio oficial a um candidato, está a desresponsabilizar-se do empenho na causa pública da eleição presidencial e a revelar a incapacidade de gerir as divisões internas.
A noite eleitoral teve um ingrediente inédito: a par das declarações das candidaturas figuraram declarações de líderes partidários nas respetivas sedes de candidatura. Catarina Martins fê-lo tarde, mas ainda foi a tempo.
Costa foi o último a falar e fê-lo depois de Marcelo, a partir da residência oficial do Primeiro-Ministro e de forma institucional. Garantiu a lealdade institucional e a cooperação do Governo. Não pareceu oportuno o regozijo por não ter havido em Portugal a vitória de uma candidatura populista e antissistema. A de Marcelo não o foi em certa medida? Referia-se a Maria de Belém, a Sampaio da Nóvoa…? A candidatura do popular Tino de Rans não teve uma relativa visibilidade? E candidatura de Paulo de Morais era antissistema?
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Marcelo ganhou e tomará posse a 9 de março. E fez o discurso de vitória. Mexeu seriamente em questões essenciais, com que se comprometeu, além do cumprimento da Constituição stricto sensu: unidade do Estado, solidariedade entre os órgãos do poder, coesão territorial e coesão social e crescimento económico. Faltou, a meu ver, uma referência explícita à relação de Portugal com a Europa e o Euro, à política externa em geral e às forças armadas. Escusava de ter dito que era preciso refazer Portugal e de recuperar a expressão presidencial como supremo magistrado da nação, pelo que ela pode conter de conotação um tanto ambígua.
Vai cumprir? Esperamos que sim. Todavia, terá de articular o seu estilo pessoal com a gravitas que o cargo presidencial postula e a auctoritas inerente ao exercício das altas funções a que é chamado. Ou seja, tem estancar a natural tendência para falar de tudo e de todos, tem de prestigiar o “poder da palavra” e evitar usar a “palavra do poder”.
Tem de saber empurrar o elefante do sistema não pelo empurrão ineficaz, mas fazendo-lhe as convenientes cocegas na barriga, para que ele se projete para a frente com segurança e sem esmagar.

2015.01.25 – Louro de Carvalho