A
comunicação social está a dar relevo à notícia de que o Papa
Francisco modificou a rubrica do Missal Romano sobre o rito do lava-pés. Com
efeito, L’Osservatore Romano, de 21 de
janeiro, publicou o Decreto In
Missa in Cena Domini, de 6 de
janeiro, da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (CCDDS), que dá conta da disposição de Francisco que
preceitua a modificação da rubrica do Missal relativa ao lava-pés durante a missa
na Ceia do Senhor, estatuindo que a participação no rito não seja limitada só
aos homens e rapazes.
Com
o decreto Maxima Redemptionis nostrae mysteria, de 30 de novembro
de 1955, da Sagrada Congregação dos Ritos (era assim designada), sobre a “Reforma da Semana santa”, conferiu-se a faculdade,
onde o aconselhe um motivo pastoral, de proceder ao gesto do lava-pés a 12
homens durante a Missa na Ceia do Senhor, após a leitura do Evangelho de João,
como forma litúrgica de “manifestar representativamente a humildade e o amor de
Cristo pelos seus discípulos”.
“Ubi demum pedum lotio, ad mandatum Domini de amore fraterno
demostrandum, secundum Ordinis instaurati rubricas in ecclesia peragitur,
edoceantur fideles de profunda huius sacri ritus significatione, ac de
opportunitate ut ipsi hoc die christianae caritatis operibus abundent.”
Na liturgia romana, refere a CCDDS,
este rito carregado de sentido passou à liturgia com a designação de Mandatum do Senhor sobre a caridade fraterna, em
conformidade com as palavras de Cristo (cf Jo 13,34), cantadas na Antífona V durante a celebração: “Dou-vos um novo mandamento, diz o Senhor, Amai-vos uns aos outros assim como Eu vos
amei”.
Ao proceder a tal gesto, os bispos e
os sacerdotes devem “conformar-se intimamente com Cristo que não veio para ser servido, mas para servir
(Mt 20,28) e,
impelido por um amor até ao fim (Jo 13,1), dar a
vida para a salvação de todo o género humano”, dando-nos o exemplo. Na verdade,
“Para nos dar o exemplo, o Senhor levantou-Se da mesa e começou a lavar os pés
aos seus discípulos” (cf Jo 13,4-5.15; Antífona I). Ele próprio se definiu como modelo a seguir: “Se Eu
vos lavei os pés, sendo Mestre e Senhor, também vós deveis lavar os pés uns aos
outros” (cf Jo 13,14;
Antífona III). É o amor,
o amor-serviço que serve de marca dos discípulos de Cristo: “Todos conhecerão
que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (cf Jo 13,35;
Antífona V).
***
Tratando-se de um amor universal,
destinado a todos e a cada um, na convicção da não existência da diferença básica
de género – “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre;
não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus; e, se sois de
Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (Gl 3,28-29) – é conveniente ultrapassar a limitação
tradicional a indivíduos do sexo masculino. Assim, “para manifestar este significado pleno do rito a quantos
nele participam”, refere o decreto In
Missa in Cena Domini, “o Sumo
Pontífice Francisco houve por bem mudar a norma que se lê nas rubricas do Missale Romanum” (pg.
300 n. 11):
“Os homens escolhidos são acompanhados pelos
ministros...”, que portanto deve ser modificada do seguinte modo: “Os escolhidos entre o povo de Deus são acompanhados
pelos ministros...” (e consequentemente no Caeremoniale
Episcoporum nn. 301 e 299b: “as cadeiras para os designados”), de modo que os pastores possam
escolher um grupo de fiéis que representem a variedade e a unidade de cada
porção do povo de Deus. Tal grupo pode ser composto por homens e mulheres e,
convenientemente, jovens e idosos, sadios e doentes, clérigos, consagrados,
leigos.
Por consequência, a mesma
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos “introduz tal
inovação nos livros litúrgicos do Rito Romano”, recordando, a propósito, aos
pastores a sua tarefa de instruir devidamente tanto os fiéis escolhidos como os
demais, a fim de que participem no rito consciente, ativa e frutuosamente”.
Nestes termos as rubricas atinentes
ao rito do lava-pés, ficam estabelecidas do seguinte modo:
Depois da homilia, onde razões
pastorais o aconselhem, faz-se a cerimónia do lava-pés.
Os escolhidos entre o povo de Deus
são acompanhados pelos ministros a ocupar os bancos reservados para eles em
lugar conveniente. O sacerdote (depois de tirar a casula, se for necessário)
aproxima-se de cada um deles, deita-lhes água nos pés e enxuga-os com a ajuda
dos ministros.
***
A prática do lava-pés remonta aos usos
referentes à hospitalidade nas civilizações antigas, sobretudo naquelas em que
a sandália (um tipo de calçado aberto) era o principal instrumento de
calçado. O anfitrião, ao receber o hóspede, providenciava vasilha com água e um
servo para lhe lavar os pés. Este uso é replicado no Antigo Testamento (vd Gn 18,4; 19,2; 24,32; 43,24; 1Sm 25,41).
O anfitrião geralmente curvava-se,
beijava o hóspede e oferecia água; e ele ou o servo lavava os pés ao hóspede. O
uso valia também quando o hóspede usava sapatos.
No mencionado trecho de Samuel, aparece
pela primeira vez o ato de alguém lavar os pés a outrem como expressão de
humildade. Maria de Betânia (Jo 12,3) ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de
nardo puro, de alto preço e enxugou-lhos com os cabelos, provavelmente para lhe
agradecer por haver ressuscitado Lázaro, o irmão. E, quando um fariseu, tendo
convidado Jesus para um banquete, se mostrava escandalizado pelo facto de uma pecadora
ter começado
a banhar-lhe os pés com lágrimas, a enxugá-los com os cabelos e a beijá-los,
ungindo-os com perfume (cf Lc
7,36-50), o Mestre fez reparo: “Entrei em tua casa e não me deste
água para os pés…” (Lc 7,44ss).
Também se relata na Bíblia a lavagem dos
pés de santos (eram assim designados os cristãos) como prática na Igreja antiga,
provavelmente como sinal de piedade, submissão ou humildade (vd Tm 5,10).
É
possível que o ritual do lava-pés fosse prática na era pós-apostólica, embora
as evidências sejam escassas. Tertuliano alude
ao rito, mas sem detalhes sobre quem e como a
praticava. Era praticado também na Igreja de Milão no século IV. O concílio de
Elvira (ano 300)
e Agostinho de Hipona (cerca do
ano 300) também o mencionam. Na
ocasião do batismo, a observância do rito do lava-pés era mantida na África,
Gália, Mediolano (no norte de Itália) e na Irlanda.
A
regra de São Bento prescreve a lavagem dos pés para os hóspedes além da lavagem
comunal como forma de humildade. Aparentemente o costume foi iniciado pela
Igreja de Roma, embora não relacionado com o batismo, por volta do século VIII.
Os
cátaros observavam o uso conexo com a Comunhão e os valdenses lavavam os pés dos
ministros quando em visita. E parece que a prática era habitual entre os
hussitas.
Na Igreja Católica Romana, o rito
do lava-pés é atualmente associado à Missa da Última Ceia, que celebra de modo
peculiar a Última Ceia de Jesus, na Quinta-feira Santa. Esta prática parece
remontar ao século XII quando o Papa procedeu ao lava-pés de 12 subdiáconos,
após a sua missa, e de 13 pobres, no fim da sua ceia
O Missal Romano de São Pio V (entre 1570 e 1955) previa um rito de lava-pés após a missa de Quinta-feira Santa, mas não
conexo com a missa. A revisão de 1955 pelo Papa Pio XII (que mantém no essencial o missal de São Pio V), a que se aludiu, inseriu-o na missa, passando
a ser desenvolvido após a homilia subsequente à leitura da perícopa
do Evangelho de João referente ao lava-pés dos discípulos por Jesus. Alguns “homens” pré-selecionados – geralmente doze,
embora o missal não prescrevesse um número – são levados até às cadeiras ou
bancos preparados para o efeito. O sacerdote, com a ajuda de ministros, derrama
água sobre os pés de cada um e enxuga-os.
No passado, a maior parte dos monarcas
da Europa também procedia ao lava-pés nas suas cortes durante a Quinta-Feira Santa,
prática ainda realizada pelo imperador austro-húngaro e pelo rei de Espanha até
ao início do século XX.
A Igreja Ortodoxa e as Igrejas Católicas
Orientais também realizam a cerimónia do lava-pés de acordo com os seus ritos,
no final da chamada Divina Liturgia.
O múnus é desempenhado pelo bispo, que lava os pés de 12 sacerdotes, ou pelo hegúmeno (equivalente ao abade), que lava os pés de 12 membros do
mosteiro. Após
a Santa Comunhão, os irmãos
dirigem-se processionalmente para o local para o efeito preparado (que pode ser o centro da nave, no nártex, ou do lado de fora). Após o canto dum
salmo e alguns troparia (hinos), recita-se uma litania (ektenia) e o bispo ou o hegúmeno lê uma oração. Depois, o
diácono proclama a perícopa do Evangelho
de João, acima referenciada, e o celebrante presidente faz o papel de Cristo,
recitando as palavras de Jesus, e os membros selecionados fazem o papel de apóstolos.
E procede-se ao lava-pés. Então, o próprio bispo ou o hegúmeno conclui a leitura do evangelho, faz uma nova oração e
asperge os presentes com a água utilizada no rito. A procissão retorna à igreja
para que a despedida se realize normalmente.
***
O Celebrante, se for necessário, retira a casula a fim de não a
molhar ou sujar durante o rito. Apenas ao Bispo é permitido que se cinja com um
gremial. Por outro lado, o rito antigo pede que o Celebrante, sem casula,
prenda uma toalha ao seu cíngulo. Os ministros devem ajudar o Celebrante com a
jarra e o recipiente que recebe a água usada e com as toalhas que secam os pés.
O costume litúrgico também determinava que fosse o pé direito a ser lavado a
cada um dos 12 homens – com a suprarreferida modificação, podem ser tanto
homens como mulheres e o número não tem de ser de doze, nem tem de ser o pé
direito ou só um pé. Enquanto o cerimonial decorre, entoam-se os cânticos adequados.
Ao fim, o Celebrante volta para a cadeira, lava as mãos e, discreta e
dignamente, veste de novo a casula. Convém
que os lugares para os participantes do rito do lava-pés, se for possível,
sejam fora do presbitério, mas de modo que eles sejam facilmente vistos pela
assembleia. Cuide-se de que o rito não seja uma apresentação teatral e os fiéis
sejam instruídos a não verem nele um ato para pura comoção, mas sim o
cumprimento do que Jesus Cristo mandou fazer. A tradição litúrgica (e
isso é explicitamente indicado no Cerimonial dos Bispos) prescrevia que, em vista da
presença dos Apóstolos na Última Ceia, somente homens fossem escolhidos para
terem os pés lavados o que agora foi alterado. Esta disciplina era reafirmada no
n.º 51 da Carta “Paschalis Sollemnitatis”, sobre a Preparação e Celebração das
Festas Pascais, da
Congregação para o Culto Divino, de 1988, que ainda está em vigor, com exceção
da parte que foi alterada pelo decreto In Missa in Cena Domini.
***
O essencial, porém, é a assunção da mensagem do amor afetivo e
efetivo a todos e a cada um, o amor-serviço, o amor-oblação – haurido na
Eucaristia sob tutela da árvore-cruz, na alegria do Ressuscitado.
2016.01.22
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário