sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Nova disposição sobre o rito do lava-pés em Quinta-feira Santa

A comunicação social está a dar relevo à notícia de que o Papa Francisco modificou a rubrica do Missal Romano sobre o rito do lava-pés. Com efeito, L’Osservatore Romano, de 21 de janeiro, publicou o Decreto In Missa in Cena Domini, de 6 de janeiro, da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (CCDDS), que dá conta da disposição de Francisco que preceitua a modificação da rubrica do Missal relativa ao lava-pés durante a missa na Ceia do Senhor, estatuindo que a participação no rito não seja limitada só aos homens e rapazes.
Com o decreto Maxima Redemptionis nostrae mysteria, de 30 de novembro de 1955, da Sagrada Congregação dos Ritos (era assim designada), sobre a Reforma da Semana santa”, conferiu-se a faculdade, onde o aconselhe um motivo pastoral, de proceder ao gesto do lava-pés a 12 homens durante a Missa na Ceia do Senhor, após a leitura do Evangelho de João, como forma litúrgica de “manifestar representativamente a humildade e o amor de Cristo pelos seus discípulos”.
“Ubi demum pedum lotio, ad mandatum Domini de amore fraterno demostrandum, secundum Ordinis instaurati rubricas in ecclesia peragitur, edoceantur fideles de profunda huius sacri ritus significatione, ac de opportunitate ut ipsi hoc die christianae caritatis operibus abundent.”
Na liturgia romana, refere a CCDDS, este rito carregado de sentido passou à liturgia com a designação de Mandatum do Senhor sobre a caridade fraterna, em conformidade com as palavras de Cristo (cf Jo 13,34), cantadas na Antífona V durante a celebração: “Dou-vos um novo mandamento, diz o Senhor, Amai-vos uns aos outros assim como Eu vos amei”.
Ao proceder a tal gesto, os bispos e os sacerdotes devem “conformar-se intimamente com Cristo que não veio para ser servido, mas para servir (Mt 20,28) e, impelido por um amor até ao fim (Jo 13,1), dar a vida para a salvação de todo o género humano”, dando-nos o exemplo. Na verdade, “Para nos dar o exemplo, o Senhor levantou-Se da mesa e começou a lavar os pés aos seus discípulos” (cf Jo 13,4-5.15; Antífona I). Ele próprio se definiu como modelo a seguir: “Se Eu vos lavei os pés, sendo Mestre e Senhor, também vós deveis lavar os pés uns aos outros” (cf Jo 13,14; Antífona III). É o amor, o amor-serviço que serve de marca dos discípulos de Cristo: “Todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (cf Jo 13,35; Antífona V).
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Tratando-se de um amor universal, destinado a todos e a cada um, na convicção da não existência da diferença básica de género – “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus; e, se sois de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (Gl 3,28-29) – é conveniente ultrapassar a limitação tradicional a indivíduos do sexo masculino. Assim, “para manifestar este significado pleno do rito a quantos nele participam”, refere o decreto In Missa in Cena Domini, “o Sumo Pontífice Francisco houve por bem mudar a norma que se lê nas rubricas do Missale Romanum (pg. 300 n. 11):
Os homens escolhidos são acompanhados pelos ministros...”, que portanto deve ser modificada do seguinte modo: “Os escolhidos entre o povo de Deus são acompanhados pelos ministros...” (e consequentemente no Caeremoniale Episcoporum nn. 301 e 299b: “as cadeiras para os designados”), de modo que os pastores possam escolher um grupo de fiéis que representem a variedade e a unidade de cada porção do povo de Deus. Tal grupo pode ser composto por homens e mulheres e, convenientemente, jovens e idosos, sadios e doentes, clérigos, consagrados, leigos.
Por consequência, a mesma Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos “introduz tal inovação nos livros litúrgicos do Rito Romano”, recordando, a propósito, aos pastores a sua tarefa de instruir devidamente tanto os fiéis escolhidos como os demais, a fim de que participem no rito consciente, ativa e frutuosamente”.
Nestes termos as rubricas atinentes ao rito do lava-pés, ficam estabelecidas do seguinte modo:
Depois da homilia, onde razões pastorais o aconselhem, faz-se a cerimónia do lava-pés.
Os escolhidos entre o povo de Deus são acompanhados pelos ministros a ocupar os bancos reservados para eles em lugar conveniente. O sacerdote (depois de tirar a casula, se for necessário) aproxima-se de cada um deles, deita-lhes água nos pés e enxuga-os com a ajuda dos ministros.
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A prática do lava-pés remonta aos usos referentes à hospitalidade nas civilizações antigas, sobretudo naquelas em que a sandália (um tipo de calçado aberto) era o principal instrumento de calçado. O anfitrião, ao receber o hóspede, providenciava vasilha com água e um servo para lhe lavar os pés. Este uso é replicado no Antigo Testamento (vd Gn 18,4; 19,2; 24,32; 43,24; 1Sm 25,41).
O anfitrião geralmente curvava-se, beijava o hóspede e oferecia água; e ele ou o servo lavava os pés ao hóspede. O uso valia também quando o hóspede usava sapatos.
No mencionado trecho de Samuel, aparece pela primeira vez o ato de alguém lavar os pés a outrem como expressão de humildade. Maria de Betânia (Jo 12,3) ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço e enxugou-lhos com os cabelos, provavelmente para lhe agradecer por haver ressuscitado Lázaro, o irmão. E, quando um fariseu, tendo convidado Jesus para um banquete, se mostrava escandalizado pelo facto de uma pecadora ter começado a banhar-lhe os pés com lágrimas, a enxugá-los com os cabelos e a beijá-los, ungindo-os com perfume (cf Lc 7,36-50), o Mestre fez reparo: “Entrei em tua casa e não me deste água para os pés…” (Lc 7,44ss).
Também se relata na Bíblia a lavagem dos pés de santos (eram assim designados os cristãos) como prática na Igreja antiga, provavelmente como sinal de piedade, submissão ou humildade (vd Tm 5,10).
É possível que o ritual do lava-pés fosse prática na era pós-apostólica, embora as evidências sejam escassas. Tertuliano alude ao rito, mas sem detalhes sobre quem e como a praticava. Era praticado também na Igreja de Milão no século IV. O concílio de Elvira (ano 300) e Agostinho de Hipona (cerca do ano 300) também o mencionam. Na ocasião do batismo, a observância do rito do lava-pés era mantida na África, Gália, Mediolano (no norte de Itália) e na Irlanda.
A regra de São Bento prescreve a lavagem dos pés para os hóspedes além da lavagem comunal como forma de humildade. Aparentemente o costume foi iniciado pela Igreja de Roma, embora não relacionado com o batismo, por volta do século VIII.
Os cátaros observavam o uso conexo com a Comunhão e os valdenses lavavam os pés dos ministros quando em visita. E parece que a prática era habitual entre os hussitas.
Na Igreja Católica Romana, o rito do lava-pés é atualmente associado à Missa da Última Ceia, que celebra de modo peculiar a Última Ceia de Jesus, na Quinta-feira Santa. Esta prática parece remontar ao século XII quando o Papa procedeu ao lava-pés de 12 subdiáconos, após a sua missa, e de 13 pobres, no fim da sua ceia
O Missal Romano de São Pio V (entre 1570 e 1955) previa um rito de lava-pés após a missa de Quinta-feira Santa, mas não conexo com a missa. A revisão de 1955 pelo Papa Pio XII (que mantém no essencial o missal de São Pio V), a que se aludiu, inseriu-o na missa, passando a ser desenvolvido após a homilia subsequente à leitura da perícopa do Evangelho de João referente ao lava-pés dos discípulos por Jesus. Alguns “homens” pré-selecionados – geralmente doze, embora o missal não prescrevesse um número – são levados até às cadeiras ou bancos preparados para o efeito. O sacerdote, com a ajuda de ministros, derrama água sobre os pés de cada um e enxuga-os.
No passado, a maior parte dos monarcas da Europa também procedia ao lava-pés nas suas cortes durante a Quinta-Feira Santa, prática ainda realizada pelo imperador austro-húngaro e pelo rei de Espanha até ao início do século XX.
A Igreja Ortodoxa e as Igrejas Católicas Orientais também realizam a cerimónia do lava-pés de acordo com os seus ritos, no final da chamada Divina Liturgia. O múnus é desempenhado pelo bispo, que lava os pés de 12 sacerdotes, ou pelo hegúmeno (equivalente ao abade), que lava os pés de 12 membros do mosteiro. Após a Santa Comunhão, os irmãos dirigem-se processionalmente para o local para o efeito preparado (que pode ser o centro da nave, no nártex, ou do lado de fora). Após o canto dum salmo e alguns troparia (hinos), recita-se uma litania (ektenia) e o bispo ou o hegúmeno lê uma oração. Depois, o diácono  proclama a perícopa do Evangelho de João, acima referenciada, e o celebrante presidente faz o papel de Cristo, recitando as palavras de Jesus, e os membros selecionados fazem o papel de apóstolos. E procede-se ao lava-pés. Então, o próprio bispo ou o hegúmeno conclui a leitura do evangelho, faz uma nova oração e asperge os presentes com a água utilizada no rito. A procissão retorna à igreja para que a despedida se realize normalmente.
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O Celebrante, se for necessário, retira a casula a fim de não a molhar ou sujar durante o rito. Apenas ao Bispo é permitido que se cinja com um gremial. Por outro lado, o rito antigo pede que o Celebrante, sem casula, prenda uma toalha ao seu cíngulo. Os ministros devem ajudar o Celebrante com a jarra e o recipiente que recebe a água usada e com as toalhas que secam os pés. O costume litúrgico também determinava que fosse o pé direito a ser lavado a cada um dos 12 homens – com a suprarreferida modificação, podem ser tanto homens como mulheres e o número não tem de ser de doze, nem tem de ser o pé direito ou só um pé. Enquanto o cerimonial decorre, entoam-se os cânticos adequados. Ao fim, o Celebrante volta para a cadeira, lava as mãos e, discreta e dignamente, veste de novo a casula. Convém que os lugares para os participantes do rito do lava-pés, se for possível, sejam fora do presbitério, mas de modo que eles sejam facilmente vistos pela assembleia. Cuide-se de que o rito não seja uma apresentação teatral e os fiéis sejam instruídos a não verem nele um ato para pura comoção, mas sim o cumprimento do que Jesus Cristo mandou fazer. A tradição litúrgica (e isso é explicitamente indicado no Cerimonial dos Bispos) prescrevia que, em vista da presença dos Apóstolos na Última Ceia, somente homens fossem escolhidos para terem os pés lavados o que agora foi alterado. Esta disciplina era reafirmada no n.º 51 da Carta “Paschalis Sollemnitatis”, sobre a Preparação e Celebração das Festas Pascais, da Congregação para o Culto Divino, de 1988, que ainda está em vigor, com exceção da parte que foi alterada pelo decreto In Missa in Cena Domini.
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O essencial, porém, é a assunção da mensagem do amor afetivo e efetivo a todos e a cada um, o amor-serviço, o amor-oblação – haurido na Eucaristia sob tutela da árvore-cruz, na alegria do Ressuscitado.

2016.01.22 – Louro de Carvalho

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