A
notícia de que o candidato presidencial Paulo Morais foi ao Panteão Nacional visitar a exposição dedicada ao general Humberto Delgado (1906-1965) e de que assumiu que gostava de seguir-lhe o exemplo faz-me
revisitar a biografia do General sem Medo,
justamente a partir deste evento exposicional.
Com efeito, desde o passado dia 25 de novembro, está patente até
ao próximo dia 30 de abril, no Panteão Nacional, a exposição Humberto Delgado – Coragem, Determinação, Reconhecimento – a assinalar os 50 anos da sua morte e os 25 anos da sua trasladação
para o Panteão Nacional. Por outro lado, antecede um outro evento que pretende assinalar
o centenário do seu nascimento por parte da BNP (Biblioteca Nacional de Portugal), que, associando-se às comemorações centenárias, terá
patente, de 8 a 31 de maio deste ano de 2016, em quatro vitrinas na Sala de
Referência, uma mostra bibliográfica do general.
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Humberto
Delgado nasceu a 15 de maio de 1906 em Boquilobo, Torres Novas. Ingressou na
carreira das armas, frequentando o Colégio Militar entre 1917 e 1922 e a Escola
do Exército, onde se formou em Artilharia em 1925. Participou no golpe militar
de 28 de maio de 1926, que depôs o regime republicano. Em 1928, optou pela
carreira da Aeronáutica obtendo o curso de oficial piloto-aviador e vindo a
concluir, em 1936, o curso de Estado-Maior. Em 1942, foi nomeado representante
do Ar para as negociações com a Inglaterra para a cedência de bases nos Açores,
o que lhe mereceu do governo inglês a outorga da Ordem do Império Britânico
(CBE), salientando que o galardoado arriscara carreira e futuro pela causa dos
Aliados e da liberdade.
Nomeado, em
1944, diretor do Secretariado de Aviação Civil, fundou os Transportes Aéreos
Portugueses (TAP), em 1945, e criou as primeiras
linhas aéreas de ligação com Angola e Moçambique, a chamada Linha Imperial, inaugurada em 31 de dezembro
de 1946. Tendo sido, entre 1947 e 1950, representante de Portugal na OIAC (Organização Internacional da Aviação
Civil), em Montreal,
Canadá, foi nomeado, em 1952, adido militar na Embaixada de Portugal em
Washington e membro do comité dos representantes militares da NATO. Promovido a
general com a idade de 47 anos, tornou-se o mais novo oficial daquela patente.
Em 1956, o Governo Americano concedeu-lhe o grau de oficial da Legião de
Mérito.
Em 1958, por
convite da oposição democrática, apresentou-se como candidato independente às
eleições presidenciais. O mote que ficou da campanha eleitoral foi a resposta
dada a um jornalista da France Press sobre
a sorte de Salazar, pela célebre frase “Obviamente
demito-o”, em conferência de imprensa no Café Chave d'Ouro em Lisboa, a 10
de maio de 1958.
A subsequente
movimentação popular permitiu criar, pela primeira vez em três décadas de
ditadura, uma dinâmica de unidade da oposição contra o regime. O carisma do candidato
surgiu como fenómeno inesperado, bem como a erupção de massas no processo
eleitoral, o que levou o candidato da oposição a fazer o anúncio inédito de não
desistência eleitoral.
O povo do
norte concentrou-se numa gigantesca manifestação no Porto – para o receber
poucos dias após a sua declaração contra o ditador. Esta jornada de 14 de maio
de 1958 reacordou a velha tradição de liberalismo que a ditadura salazarista
não conseguira extinguir após mais de 30 anos de poder absoluto. Receando que a
popularidade de Delgado se espalhasse de norte a sul, Salazar proibiu a
deslocação deste a Braga – baluarte do catolicismo e berço da revolta militar
do 28 de maio que instaurara a ditadura militar. A cidade foi ocupada por 5000 membros
da Legião Portuguesa – medida de intimidação e de exibição do poder que, não
obstante, não impediu vastas concentrações de pessoas pela região aclamando o
candidato.
Apanhado de
surpresa pelo espontâneo e generalizado entusiasmo popular, o regime tomou medidas
de emergência para evitar mais demonstrações em Lisboa. Assim, após a chegada
de Delgado a Santa Apolónia a 16 de maio de 1958, as forças da Guarda Nacional
Republicana e os agentes da PIDE – a polícia política – exerceram repressão
sobre a população que acorrera em massa a receber Delgado. As notícias dos
tumultos e dos ataques das forças paramilitares contra a população lisboeta
apareceram na imprensa estrangeira, que passou a dedicar mais atenção a Portugal,
país habitualmente de brandos costumes.
Após os incidentes
e tumultos do Porto e de Lisboa, a 14 e 16 de maio, a PIDE aumentou a repressão
contra a população que participava espontaneamente na campanha apelidada de “subversiva”
pela imprensa controlada. Apesar de o mecanismo eleitoral ser manipulado desde
o recenseamento e das dificuldades intransponíveis na cópia dos cadernos
eleitorais e na distribuição por parte da oposição dos boletins de voto, o Estado
Novo, temendo um enorme desaire eleitoral, decretou a proibição da fiscalização
do escrutínio por parte da oposição. Os números oficiais deram quase 25% dos
votos a Humberto Delgado, contra 75% de Américo Tomás, o candidato oficial do
regime, não sendo possível ainda hoje apurar os resultados reais, dada a
amplitude da fraude. Com medo de no futuro passar por um outro “golpe
constitucional” que representava a possibilidade de a oposição voltar a
lançar-se numa campanha eleitoral como a de 1958, Salazar promoveu, em agosto
de 1959, uma revisão constitucional em que se suprime o sufrágio direto e se
substitui por sufrágio indireto proporcionado por um colégio eleitoral de total
confiança do Governo.
Após as
eleições de 1958 e impedido de regressar ao cargo de Director Geral da Aviação
Civil, Delgado criou o MNI (Movimento Nacional Independente), com vista a manter unidas as forças da oposição que pela
primeira vez em 32 anos se uniram no combate à ditadura.
Após um
processo disciplinar, foi demitido do serviço militar ativo com o duplo objetivo
de o afastar de contactos com camaradas de armas e de lhe retirar a imunidade
contra a intervenção da PIDE. Após uma nota oficiosa que o ameaçava de medidas
repressivas e de aviso vindo de dentro do regime de que se preparava uma manifestação
forjada à frente da sua casa com a intenção de o matar, refugiou-se na Embaixada
do Brasil em Lisboa, a 12 de janeiro de 1959.
O Governo,
que tinha uma já longa tradição de recusa do princípio do asilo político, que
vinha da Guerra Civil de Espanha e da II Guerra Mundial, recusou os argumentos
invocados por Delgado de que a sua vida corria perigo. As negociações duraram
três meses durante os quais se previa que a situação de Humberto Delgado perduraria
indefinidamente, à semelhança do que sucedera em países da América Latina. Entretanto,
Delgado partiu para o Rio de Janeiro após as diligências duma comitiva
brasileira liderada por um jornalista do Diário
de Notícias, do Rio de Janeiro, cidade onde chegou no dia do Tiradentes, 21
de abril de 1959.
A PIDE, que
já no Brasil tentara assassinar o general, infiltrou círculos da oposição
mantendo apertada vigilância sobre todos os movimentos do líder da oposição no
exílio. Uma intensa campanha de descrédito e isolamento, alimentada pelos
serviços secretos, fomentou, ao longo de cinco anos, a criação duma rede de informadores
que logrou obter a confiança do visado. Foi assim que ele anuiu ao encontro de
Badajoz em fevereiro de 1965. Convicto de que se ia reunir a oficiais portugueses
interessados no derrube do regime, Delgado veio ao encontro da morte. Uma brigada
da PIDE chefiada pelo inspetor Rosa Casaco galgou a fronteira com passaportes
falsos e montou a cilada que vitimaria o general e a secretária, a brasileira
Arajaryr Campos.
O dia 13 de
Fevereiro de 1965 é considerado a data do encontro fatídico, marcado pelos
Correios de Badajoz, donde enviara 4 postais a 4 amigos em 4 países diferentes
e assinados com o nome de sua irmã “Deolinda”, correspondendo a um código pré-combinado,
que significava: 'estou vivo e não estou
preso'. Foi o último sinal de vida e, por isso, é esta a data do assassinato
supostamente perpetrado nas proximidades de Olivença.
Durante dois
meses de especulações e mentiras deliberadas da imprensa portuguesa nada se
soube do general. A instâncias do Professor Emídio Guerreiro em Paris, a
Federação Internacional dos Direitos do Homem enviou a Espanha uma delegação
composta por um escocês, um italiano e um francês, que foi confrontada com um
muro de silêncio em Espanha. No entanto, após o seu regresso a Paris, a 24 de
abril, os membros da delegação leram nos jornais as notícias da descoberta dos
dois cadáveres numa campa rasa quase à superfície, perto da aldeia de
Villanueva del Fresno, num caminho conhecido por Los Malos Pasos.
Em 1990,
dezasseis anos após a revolução abrilina, que restaurou a democracia em
Portugal, o general Humberto Delgado foi postumamente promovido a marechal da
Força Aérea e os seus restos mortais trasladados para o Panteão Nacional. (cf
site da BNP).
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A mostra
'Humberto Delgado – Coragem, Determinação, Reconhecimento', do seu percurso
riquíssimo, salienta a abordagem da sua carreira, a campanha presidencial de
1958, o exílio, o seu assassinato e a concessão de Honras de Panteão. A fim de
documentar esta evocação de Humberto Delgado procurou uma representatividade de
obras, imagens, peças e documentos de particulares e instituições, que pela sua
importância não deveriam deixar de estar presentes (vd site da Direção-Geral do Património
Cultural).
A exposição
é comissariada por
Frederico Delgado Rosa, neto e biógrafo do general que fundou a TAP em
1945. E a inauguração, a 24 de novembro pp, contou com a presença do mesmo
Frederico Rosa, Isabel Melo, diretora do Panteão Nacional, e Iva Delgado, filha
de Humberto.
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Rosa, que
lançou em 2008 a obra “Humberto Delgado.
Biografia do General Sem Medo”, prestou declarações ao Jornal TAP (vd
ed 124) sobre a
exposição. Respigam-se algumas linhas.
Em certo
sentido, terá antevisto esta exposição, pois “sabia que o seu lugar na História
de Portugal o catapultava para os séculos vindouros”. Constitui “símbolo dessa
perenidade” a pedra lioz do seu mausoléu, no Panteão Nacional, “porque somos
nós o elo de ligação entre o passado e o futuro”. Nas palavras de Jeffrey
Holman, antropólogo e historiador, em 2010, aprende-se:
“A verdade é que a História é hoje! Os
feitos dos nossos avós vivem em nós! E, se não conseguirmos conversar com o
passado, somos nós, e não os mortos, que estamos enterrados.”
Por isso,
segundo Rosa, “o Panteão Nacional é, por excelência, o local onde estamos mais
vivos, o local onde em permanência se entoa um hino à vida”.
Do acervo exposto – considerado uma
janela ao viés para o mundo – o comissário destaca dois documentos:
- Um que
marca 2015 como o ano do cinquentenário do assassinato de Humberto Delgado, dos
25 anos da trasladação dos seus restos mortais para o Panteão e do 70.º
aniversário da TAP, fundada por Humberto Delgado em 14 de março de 1945, bem
como o do fim da II Guerra Mundial. E menciona um excerto da peça de teatro
radiofónico 'A Marcha para as Índias',
escrita em 1940 Delgado:
“A personagem Martim, ao serviço de
Vasco de Gama e prestes a embarcar para a Índia, despede-se da sua amada, mas o
encontro romântico acaba em discussão, com Maria a criticar duramente a
expulsão dos judeus de Portugal. Martim diz-lhe: Não pareceis a católica que sois, senhora! Maria responde: Católica sim, mas penso e sou mulher”.
- Outro dos documentos
mencionados é uma carta de Humberto Delgado endereçada a Salazar e datada de 12
de abril de 1944:
“Embora eu não pertença à União
Nacional (...), três delegados dela vieram convidar-me a ser eu o relator de
uma tese sobre Tráfego Aéreo Imperial. Hesitei, confesso, em aceitar, porquanto
me afastei da atividade política e já fui suficientemente explorado na vida
pública, sem ver sequer compensação moral para o meu esforço. No entanto, já
porque o assunto era tão importante, já porque os representantes da União
Nacional me disseram que o congresso não era apenas político, resolvi aceitar.”
Rosa atribui
um significado peculiar a esta carta. Por um lado, a carta revela já o progressivo
distanciamento do general em relação ao regime, a partir de 1940, o que induz a
desmitificação da velha narrativa de que fora nos Estados Unidos da América, na
década de 1950, que Delgado abrira os olhos para a democracia, sendo verdade que
“ele já estava em rota de colisão há muito mais tempo”. Por outro lado,
encontra-se neste documento o embrião da sua longa missão em prol da aviação
civil, que teve o seu “momento alto na criação da TAP e na inauguração da Linha
Aérea Imperial em tempo record”.
Além de ter
criado “os Transportes Aéreos Portugueses”, promoveu a modernização e a
expansão dos aeroportos nacionais, “firmou os acordos de liberdade aérea do
pós-Guerra, estabeleceu a primeira ligação aérea comercial entre Lisboa, Luanda
e Lourenço Marques” (atual
Maputo), “conquistou
para Portugal o controlo do tráfego aéreo do Atlântico Norte, colocou os Açores
à escala do mundo através do aeroporto de Santa Maria, depois de na II Guerra
ter sido protagonista da cedência da Base das Lajes aos Aliados”.
Enquanto primeiro
representante de Portugal na ICAO (sigla inglesa de “Organização
da Aviação Civil Internacional”), a ele se deve que “a aviação civil
internacional comunique em metros e não em milhas”. Homem do Ar, da liberdade
dos céus, adaptou, na década de 50, as infraestruturas aeroportuárias
portuguesas aos aviões a jato, momento prenunciador de nova era aérea. O avião
DC3-Dakota, protagonista do arranque da TAP, encontra-se devidamente
representado na exposição patente no Panteão Nacional.
***
Ora, seria
bom que os Governos na atualidade, mais do que fazerem do general uma bandeira
político-partidária, acarinhassem a obra de Delgado e não tivessem deixado
degradar a TAP para a venderem depois a preço de pataco, em circunstâncias político-legais
ainda não esclarecidas.
Depois,
também os 10 candidatos presidenciais deveriam ser meridianamente claros no seu
propósito de defesa intransigente das liberdades contra quaisquer tentativas de
absolutização e oligarquialização do poder e contra os excessos de dirigismo
europeu sobre o país.
2016.01.12 – Louro
de Carvalho
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