sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Evocação dos atentados ao Charlie Hebdo

Nesta semana, Paris vem multiplicando as cerimónias de homenagem às vítimas dos atentados de 7 a 10 de janeiro de 2015, de que foi objeto privilegiado o periódico Charlie Hebdo.
De todo o cerimonial evocativo daqueles atos terroristas, salientam-se os seguintes números: a, 5 de janeiro, terça-feira, a inauguração de placas de homenagem na rua Nicolas-Appert, diante da antiga sede do semanário satírico Charlie Hebdo, onde a 7 de janeiro foram assassinadas 12 pessoas, em Montrouge, onde a 8 de janeiro foi assassinada uma polícia municipal e na Porte de Vincennes diante da mercearia judaica, onde quatro pessoas também morreram a 9 de janeiro; a 7 de janeiro, quinta-feira, exatamente um ano após o ataque que dizimou a redação do Charlie Hebdo, a homenagem do Presidente francês às forças policiais na sede da polícia em Paris; a 9 de janeiro, sábado, a deslocação de François Hollande à mercearia judaica Hyper Cacher para uma cerimónia organizada pelo Conselho representativo das instituições judaicas de França; e, a 10 de janeiro, domingo, a iluminação da estátua da Praça da República com as cores da bandeira francesa ao final do dia, depois de a praça voltar a ser palco de uma homenagem às vítimas dos atentados, um ano após a “marcha republicana” que, iniciada neste local, incorporou milhares de pessoas.
Entretanto, no dia 6 de janeiro, quarta-feira registou-se uma corrida excecional aos quiosques para comprar a edição especial do semanário humorístico Charlie Hebdo que assinala o 1.º aniversário do ataque jihadista e para a qual foram editados quase um milhão de exemplares, dezenas de milhares destinados ao estrangeiro. No 1.º aniversário do atentado que vitimou as principais figuras da caricatura francesa, o periódico escolheu para a capa um desenho do cartoonista Riss a representar um Deus assassino, com barba e armado de uma kalachnikov, sob o título “Um ano depois, o assassino continua a monte”.
No editorial, o sobrevivente do atentado, diretor do jornal e desenhador, denuncia “os fanáticos embrutecidos pelo Corão” e outros religiosos que tinham desejado a morte do jornal por “ousar rir da religião”, assegurando que “as convicções dos ateus e dos laicos fazem mover mais montanhas que a fé dos crentes”.
Esta edição de 32 páginas – em vez das habituais 16 – onde figura uma charge em que a equipa do Charlie Hebdo é retratada como na famosa pintura A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, conta com um caderno especial de desenhos dos cartoonistas assassinados há um ano Cabu, Wolinski, Charb, Tignous e Honoré; cartoons dos atuais colaboradores; e textos da ministra francesa da Cultura, Fleur Pellerin, das atrizes Isabelle Adjani, Charlotte Gainsbourg, Juliette Binoche, do músico Ibrahim Maalouf, entre outras personalidades.
Antes do ataque, o jornal enfrentava graves dificuldades financeiras e tinha uma tiragem semanal média de 30 mil exemplares. Em contrapartida, vende atualmente cerca de cem mil exemplares nos quiosques – dez mil no estrangeiro – e tem 183 mil assinantes.
Já em 2006, o semanário publicara caricaturas do profeta Maomé, com alguns dos cartoonistas a passarem a dispor de proteção policial, o que não obstou a que o periódico tivesse sido alvo de um primeiro ataque com cocktails molotov em 2011.
Por ironia do destino, dez meses após os atentados de janeiro de 2015, Paris voltou a ser alvo de novos ataques jiadistas a 13 de novembro, que fizeram 130 mortos, a maioria dos quais na sala de espetáculos Bataclan e criou o pânico na estádio nacional.
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Por cá, além de várias outras manifestações de solidariedade e indignação pelos atentados que ofendem a liberdade de expressão e vitimam os autores de texto e desenho, abriram a 7 de janeiro, no Porto e em Lisboa exposições sob o título “Liberdade com Humor, Sempre!”. Resultam da iniciativa do Museu Nacional da Imprensa para evocar e relembrar o atentado ao Charlie Hebdo, acontecimento sobre o qual perfez um ano no dia 7, quinta-feira.
Trata-se de uma centena de desenhos de humor e dezenas de publicações, de autores dos cinco continentes, que evocam os valores da liberdade de expressão e de imprensa, lembram os jornalistas mortos em Paris, no dia 7 de janeiro de 2015, no atentado contra o Charlie Hebdo, e fizeram ressoar pelo mundo a frase “Je suis Charlie”, para patentear a onda de choque provocada pelo massacre ao periódico humorístico.
As preditas exposições têm a curadoria do diretor do Museu Nacional da Imprensa, Luís Humberto Marcos. E sabe-se que a exposição do Porto estará patente para visita do público até ao próximo dia 30 de abril.
É ainda de relembrar que, há um ano, tanto a Câmara Municipal do Porto, como os jornalistas portugueses, se manifestaram solidários com os profissionais do Charlie Hebdo.
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O Vaticano, através de artigo publicado no L’ Osservatore Romano a 5 de janeiro, comentando a aludida edição especial do passado dia 6, acusa Charlie Hebdo de “não respeitar os crentes de todas as religiões”, ao declarar que, “para homenagear os seus mortos, o jornal satírico volta a apontar o dedo à fé” e que o Deus da nova capa “não ajuda ao apaziguamento” tão necessário.
A antecipar a chegada às bancas da edição do Charlie Hebdo que assinala um ano do atentado que lhe dizimou a redação, o Vaticano aponta ao semanário satírico francês a obsessão de incentivar “um mundo que não quer admitir a existência ou respeitar os crentes da fé em Deus, independentemente da sua religião”.
A capa da edição especial do dia 6 – com a legenda “Um ano depois, o assassino continua à solta” a encimar uma imagem de um Deus barbudo com pintas de sangue e uma Kalashnikov às costas – não constitui um episódio novo. Sob o disfarce enganador de “uma laicidade sem compromissos”, o semanário humorístico volta a esquecer o que a generalidade dos dirigentes religiosos de todos os credos e pertenças não cessa de repetir para rejeitar a violência em nome da religião: “utilizar Deus para justificar o ódio é uma verdadeira blasfémia” – disse várias vezes o Papa Francisco”.
O órgão oficioso do Vaticano cita, a este respeito, o presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano, Anouar Kbibech, que assegura que a caricatura da capa do Charlie “fere todos os crentes das diferentes religiões”. E Kbibech insiste:
“Globalmente, precisamos de sinais de apaziguamento, de concórdia. Esta caricatura não ajuda num momento em que precisamos de nos encontrar lado a lado. É preciso respeitar a liberdade de expressão dos jornalistas mas também a liberdade de expressão dos crentes”.
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Recorde-se que, a 7 de Janeiro de 2015, os irmãos Cherif e Saïd Kouachi irromperam armados pela primeira reunião de edição do ano, matando oito membros da redação, incluindo Stéphane Charbonnier (Charb), Bernard Velhac (Tignous) e os veteranos Jean Cabut (Cabu) e Georges Wolinski, num ataque que fez ao todo 12 mortos. Riss ficou gravemente ferido. O atentado, reivindicado pela Al-Qaeda da Península Arábica, seguiu-se a inúmeras ameaças redatores, principalmente Charb, que estava na publicação desde 1992 e era diretor desde 2009.
A republicação dos cartoons de Maomé feitos pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 2006, obrigara alguns dos jornalistas a solicitar proteção policial e, em 2011, a redação foi destruída com uma bomba incendiária, depois da edição lançada com o nome Charia Hebdo – trocadilho com sharia, a lei islâmica – apresentada como obra de Maomé.
Uma semana depois do ataque de 2015, o Papa condenou como “um absurdo” os assassínios perpetrados em nome de Deus, mas também declarou que “cada religião tem a sua dignidade” e que “há limites” nos insultos aos crentes.
Ora é precisamente isso que o Vaticano continua a apontar ao semanário satírico. Segundo a crítica desta instância católica, o ponto de vista editorial do Charlie veicula “um paradoxo triste de um mundo que é cada mais sensível ao politicamente correto, quase até ao ridículo, mas que ao mesmo tempo não quer admitir ou respeitar a fé dos crentes em Deus, independentemente da religião”.
Na opção do Charlie Hebdo vence, em meu entender, a perspetiva legítima da liberdade de expressão e de crítica, que se torna obsessão alinhada com o ditame do politicamente correto quando o achincalhamento das religiões e o desrespeito pelos crentes se situa na ponta da espada da liberdade de uns contra a liberdade de outros.
Riss chegou a afirmar, em julho passado, que o jornal não voltaria a publicar caricaturas do profeta dos muçulmanos. Numa entrevista à revista alemã Stern, declarou:
“Fizemos o nosso trabalho. Defendemos o direito à caricatura. É estranho, espera-se que exerçamos uma liberdade de expressão que mais ninguém se atreve a exercer”.
Pelos vistos, a vertente satírica a qualquer custo venceu a vertente moderada, já que o diretor financeiro, Eric Portheault, declarou recentemente que, “se a atualidade nos levar a desenhar Maomé, é isso que faremos” – o que implica a revisão da decisão de Riss.
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Em suma, liberdade de expressão, incluindo a sátira, sim! Porém, exige-se o respeito pela liberdade de crenças, o que postula a limitação da crítica, mesmo que humorística. Não obstante, é de lembrar que os atropelos ao desrespeito não se resolvem à bomba, mas pelo recurso aos tribunais post factum. Por outro lado, há que perguntar onde está a educação para a liberdade equilibrada com o respeito e a tolerância.

2016.01.08 – Louro de Carvalho

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