O
Papa Francisco fez duas intervenções discursivas adequadas ao dia de hoje,
Solenidade da Epifania nas Igrejas que não a deslocaram para o domingo passado.
Uma foi a homilia da Missa na Basílica Vaticana e a outra por ocasião da
recitação do Angelus na Praça de São
Pedro.
***
Na
homilia, comentando as palavras de Isaías endereçadas a Jerusalém (Is 60,1), sublinha o dever que
temos de “sair dos nossos fechamentos” a fim de podermos receber “a luz
esplendorosa que ilumina a nossa existência”.
Por
outro lado, na esteira de Santo Ambrósio, declara que “a Igreja não pode
iludir-se de que pode brilhar com luz própria” e, retomando “a lua como
metáfora da Igreja”, explicita:
“Verdadeiramente como a lua é a Igreja
(...) brilha, não com luz própria, mas com a de Cristo. Recebe o seu próprio
esplendor do Sol de Justiça, podendo assim dizer: Já não sou eu que vivo, é Cristo vive em mim” (Exameron, IV,
8, 32; Gl 2,20).
Depois,
assumindo o enunciado patrístico mysterium lunae, distingue:
“Cristo é a luz verdadeira, que ilumina; e
a Igreja, na medida em que permanece ancorada n’Ele, na medida em que se deixa
iluminar por Ele, consegue iluminar a vida das pessoas e dos povos”.
Mas
essa luz, “que vem do Alto”, torna-se-nos necessária não só para iluminar a
nossa mente, o nosso coração e o nosso caminho, mas também para correspondermos
“coerentemente à vocação que recebemos”, uma vez que “anunciar o Evangelho de
Cristo não é uma opção que podemos fazer de entre muitas, nem é uma profissão”.
E, dado que para a Igreja, ser missionária não significa “fazer proselitismo”,
mas “equivale a exprimir a sua própria natureza: ser iluminada por Deus e
refletir a sua luz” – este é “o seu serviço”, “estrada” e “vocação”. É serviço
que as pessoas esperam porque “precisam de conhecer o rosto do Pai”.
Da
perícopa do Evangelho da Missa da Epifania, Francisco salienta o facto de os
magos constituírem um símbolo e “um testemunho vivo” da presença, por todo o
lado, das “sementes da verdade” como “dom do Criador que, a todos, chama a
reconhecê-Lo como Pai bom e fiel”.
Este
dado da reflexão papal sugere, por um lado, a obrigação da leitura dos sinais
do tempo inscritos no firmamento e nas estrelas, mas sobretudo os sinais dos
tempos (vd Mt
16,3), como
fez o Vaticano II, sobretudo com a Gaudium
et Spes e a Nostra Aetate; e, por
outro, a releitura da doutrina de Justino, o filósofo e mártir sobre o “verbo
seminal e disperso” pelo mundo.
***
Sobre
o verbum seminale et sparsum ou λόγος σπερματικός και
διεσπαρμενός, é interessante um artigo de Lucas Oliveira na resposta à questão:
“Como pode alguém que nunca ouviu falar do Evangelho se salvar”? – texto que seguirei de perto.
Os Padres da
Igreja atestam que “fora da Igreja não há salvação”. Ora, formulada de forma
positiva, esta asserção significa que “toda a salvação vem de
Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é seu Corpo:
“Apoiado na Sagrada Escritura e na Tradição, [o Concílio] ensina
que esta Igreja peregrina é necessária para a salvação. O único mediador e
caminho da salvação é Cristo, que se nos torna presente em seu Corpo, que é a
Igreja. Ele, porém, inculcando com palavras expressas a necessidade da fé e do
batismo, ao mesmo tempo confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens
entram pelo Batismo como que por uma porta. Por isso, não podem salvar-se
aqueles que, sabendo que a Igreja católica foi fundada por Deus por meio de
Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso, não quiserem nela
entrar ou nela perseverar” (LG,14).
Esta
asserção não visa os que, sem culpa, desconhecem Cristo e a Igreja, pois quem ignora
inculpavelmente o Evangelho, mas busca Deus de coração sincero e tenta, sob o influxo da graça, cumprir a sua vontade conhecida por meio da consciência pode conseguir a salvação. Não
há dúvida de que Deus pode, por seus insondáveis
caminhos, levar todos os homens à fé. Mesmo assim, cabe à Igreja “o dever e o
direito sagrado de evangelizar” todos os homens. Há, pois, que distinguir, neste sentido, entre o
“Verbo total”, ingénito, inefável, o próprio Cristo, e o “Verbo seminal e
disperso” que habita os homens, especialmente os verdadeiramente sábios.
Não
é questionável em si a matéria do CIC (Catecismo
da Igreja Católica),
846-848, segundo a qual “não existe salvação fora da Igreja” no sentido de que “não
há salvação fora de Cristo”, já que a Igreja Católica é o próprio Corpo de Cristo. Por outro lado, temos o enunciado paulino, que não podemos
olvidar: “Eis o que é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, que
quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da Verdade” (ITm 2,4).
Sendo
a vocação do ser humano o céu, a salvação, o Senhor incute em cada ser humano as
como que “sementes do Verbo”, segundo São Justino de Roma, que ensina:
“Alguns que professaram a doutrina estoica foram odiados e mortos.
Pelo menos na ética eles mostram-se moderados, assim como os poetas em
determinados pontos, por causa da semente do Verbo,
que se encontra ingénita em todo o género humano. Assim foi Heráclito, e entre
os de nosso tempo, Musónio e outros que conhecemos”.
E
prossegue:
“Os demónios sempre se empenharam em tornar odiosos aqueles que,
de algum modo, quiseram viver conforme o Verbo e fugir da maldade. Portanto,
não é de se admirar se eles, desmascarados, procuram também tornar odiosos, e
com mais empenho ainda, os que vivem não apenas de acordo com uma parte do
Verbo seminal, mas conforme o conhecimento e contemplação do Verbo total, que é
Cristo. Eles receberam merecido tormento e castigo, aprisionados no fogo
eterno. Se eles agora são vencidos pelos homens em nome de Jesus Cristo, isso é
aviso do futuro castigo no fogo eterno que os espera, juntamente com os que os
servem. Todos os profetas já anunciaram isso de antemão e isso também nos
ensinou o nosso mestre Jesus”.
E
conclui:
“Portanto, a nossa religião mostra-se mais sublime que todo o
ensinamento humano pela simples razão de que possuímos o Verbo inteiro, que é
Cristo, manifestado por nós, tornando-se corpo, razão e alma. Com efeito, tudo o que
os filósofos e legisladores disseram e encontraram de bom foi elaborado por eles
pela investigação e intuição conforme a parte do Verbo que lhes coube. Todavia, como eles não conheceram o
Verbo inteiro, que é Cristo, eles frequentemente se contradisseram uns aos
outros.”.
(vd
SANTO JUSTINO DE ROMA, I e II apologias:
diálogo com Trifão / [introdução e notas Roque Frangiotti; tradução Ivo
Storniolo, Euclides M. Balancin] – São Paulo: Paulus, 1995. – (Patrística)
p. 98. 100-101).
É natural que se fale do
Verbo simultaneamente seminal e disperso, já que a semente tem germinar e para
germinar tem de se inocular. Ora é para a inoculação que ela é lançada e, com o
lançamento, ela espalha-se, dispersa-se.
Justino
assegura, pois, que todos possuem, pelo menos em parte, uma participação no
verbo seminal (Logos spermatikós), por via da
vocação de todo ser humano, de viver a vida divina (ser salvo) e também em razão do que propala o
Apóstolo João, ao dizer que o “Verbo ilumina todo homem que vem ao mundo” (Jo 1,9). Bento XVI, por sua vez, explica a doutrina de
Justino:
“Cada homem, como criatura racional, é partícipe do Logos, leva em si uma “semente”,
e pode colher os indícios da verdade. Assim, o mesmo Logos, que
se revelou como figura profética aos Judeus na Lei antiga, manifestou-se
parcialmente, como que em “sementes de
verdade”, também na filosofia grega. Mas, conclui Justino, dado
que o cristianismo é a manifestação histórica e pessoal do Logos na
sua totalidade, origina-se que “tudo o que foi expresso de positivo por quem
quer que seja pertence a nós cristãos” (2
Apol. 13, 4). (…)” (Bento XVI. São Justino,
filósofo e mártir. Audiência Geral, Quarta-feira, 21 de março 2007).
OLIVEIRA, Lucas H. Firmat Fides: São Justino e a semente do Verbo.
Disponível em: < https://firmatfides.wordpress.com/2014/08/26/sao-justino-e-a-semente-do-verbo/ > Desde 25/08/2014.
Portanto,
aquele que não ouviu o anúncio da Igreja e que sob o influxo da graça vive de acordo com o ditame da consciência,
de acordo com o Verbo que ilumina todo homem que vem ao mundo (Jo 1,9), poderá ser salvo, pois em ignorância invencível
resta-lhe a voz da consciência.
Porém,
conhecer o Verbo total confere a paz de Simeão (Lc 2,29) e a alegria dos magos (Mt 2,10).
***
Voltando
ao episódio evangélico dos magos, o Papa na predita homilia considera que
aqueles magos, no cumprimento da profecia de Isaías, “representam as pessoas”
que, provindas dos “quatro cantos da terra” se sentem “acolhidas na casa de
Deus”. Na presença de Jesus, “não há qualquer divisão de raça, língua e cultura”
(cf Gl 3,28): “naquele Menino, toda
a humanidade encontra a sua unidade”. Por isso, a Igreja “tem o dever de
reconhecer e fazer surgir, de forma cada vez mais clara, o desejo de Deus que
cada um traz dentro de si”. É o dever-serviço da Igreja de, “com a luz que ela reflete”,
provocar o nascimento daquele “desejo de Deus”. Não há dúvida de que também
hoje “há muitas pessoas que vivem”, como os magos, “com o coração inquieto”, a “questionar-se sem encontrar as respostas
certas”. Esta inquietação “nasce do Espírito Santo, que se move nos corações” e
que faz com que as pessoas andem “à procura da estrela” que indica a via de
Belém.
O
Pontífice chama também a atenção para o facto de, entre as inúmeras estrelas
que estrelam o céu, aqueles homens de longe terem seguido uma diferente e nova,
que, na sua ótica, brilhava muito mais. Depois duma longa perscrutação do
grande livro celeste na demanda de resposta às suas inquietações e questões, a
luz surgiu e a estrela mudou-os, fazendo-lhes esquecer as ocupações diárias e
pôr-se imediatamente a caminho.
Assegura
o Papa que isto constitui para nós uma lição. Como os magos, temos de nos interrogar
Onde está Ele? Vimos a sua estrela e
viemos adorá-Lo (cf Mt 2,2). “Somos chamados, sobretudo num tempo como o
nosso”, a procurar, não tanto os sinais do tempo atmosférico, mas “os sinais
que Deus oferece” (os sinais dos tempos propícios à salvação), certos e seguros “de
que se requer o nosso esforço para os decifrar e, assim, compreender a vontade
divina”.
Os
magos lançam-nos o repto de irmos a Belém encontrar o Menino e a Mãe. Para tanto,
como eles, devemos seguir “a luz que Deus nos oferece”. É uma luz pequenina que
dá para encontrar e receber a LUZ verdadeira. Como os Magos lumen requirunt
lumine, também nós, através da luz, procuramos a Luz, aquela Luz que
irradia do rosto fiel e misericordioso de Cristo, no qual se esconde “a
verdadeira sabedoria”. E, chegados até junto d’Ele, O adoraremos com todo o
coração e Lhe ofereceremos “de presente” nossa liberdade, inteligência e amor.
E
o Papa Bergoglio, venerador da simplicidade das crianças, conclui a lição da Epifania
natalina:
“É aqui, na simplicidade de Belém, que a
vida da Igreja encontra a sua síntese. Aqui está a fonte daquela luz que atrai
a si toda a pessoa no mundo e orienta o caminho dos povos pela senda da paz.”.
***
Por
ocasião do Angelus, Francisco destaca
a vertente de universalidade inerente à Epifania. E refere:
“Os magos eram homens de prestígio, de
regiões longínquas e culturas diversas e encaminharam-se para a terra de Israel
para adorar o rei que tinha nascido. A Igreja sempre viu neles a imagem da humanidade
inteira e, com a celebração de hoje, da festa da Epifania, quer como que
indicar respeitosamente a cada homem e a cada mulher deste mundo o Menino que
nasceu para a salvação de todos.”.
Esta
respiração de universalidade é uma das marcas essenciais da Igreja – que é una
santa, apostólica e católica ou universal. E, como católica ou universal,
estende-se a todo o mundo e subsiste em todas e cada uma das porções do mundo (em pujança ou em semente). E, na sua universalidade
eficaz, a Igreja “deseja que todos os povos da terra possam encontrar Jesus e fazer
a experiência do seu amor misericordioso.
Quem
é que ainda não deu conta do desígnio de misericórdia que o Papa encontrou na
Epifania em coerência com o âmago da economia salvífica? E Francisco recorda:
“Na noite de Natal Jesus manifestou-se aos
pastores, homens humildes e desprezados (alguns deles ladrões). Foram eles os primeiros
a trazer um pouco de calor àquela gruta de Belém. Agora, vêm os magos de longínquas
terras, também eles atraídos por aquele Menino.”.
Pastores
(de perto e
simples) e magos
(prestigiados
e de longe)
– segundo o Pontífice – “são muito diferentes entre si, mas têm uma coisa em comum:
o céu”. Explica o Papa:
“Os pastores de Belém acorreram de súbito a
ver Jesus, não porque fossem particularmente bons, mas porque estavam despertos
de noite e, volvendo os olhos para o céu, viram um sinal, escutaram a sua
mensagem e seguiram-na. Os magos perscrutavam os céus, viram uma nova estrela,
interpretaram o sinal e puseram-se a caminho desde longes terras.”.
E
daqui tira um ensinamento:
“Os pastores e os magos ensinam-nos que, para
encontrar Jesus, é preciso saber olhar para o céu, não ficarmos dobrados sobre
nós mesmos, sobre o nosso próprio egoísmo, mas ter o coração e a mente abertos ao horizonte de Deus, que nos
surpreende sempre, saber acolher as suas mensagens e responder com prontidão à
sua generosidade”.
Para
Francisco o mistério silencioso do Natal fala por si: “Apenas Cristo nasceu,
apesar de ainda não falar, já todos os povos, representados pelos magos, podem
já encontrá-Lo, reconhecê-Lo e adorá-Lo” – Vimos
despontar a sua estrela e viemos adorá-Lo (Mt 2,2).
Por
sua vez, Herodes só deu conta disto quando os magos chegaram a Jerusalém, porque
não estava atento aos sinais do céu, não possuía a esperança messiânica, andava
demasiado ocupado.
***
Depois,
o Papa não desiste das lições espirituais da Epifania a partir do episódio da
adoração dos magos. Ao verem a estrela, sentiram enorme alegria (Mt 2,20). Como para eles, também
para nós é consolador e causa de alegria sentir que não estamos entregues a um
destino cego, mas que somos guiados pela estrela do Evangelho.
Ora,
sem a escuta do Evangelho – diz-nos o Pontífice – não é possível encontrar
Cristo. Os magos, seguindo a estrela, chegaram até ao lugar onde se encontrava
Jesus. “Aqui, viram o Menino com Maria sua Mãe, prostraram-se por terra e
adoraram-No” (Mt
2,21). E, em
termos de modo de vida:
“Esta experiência dos magos exorta-nos a
não contemporizarmos com a mediocridade, a não vegetar, mas a buscar o sentido das coisas, a indagar com paixão o
grande mistério da vida. Por outro lado, não poderemos escandalizar-nos com a
pequenez e com a pobreza, mas deveremos reconhecer a majestade na humildade e saber ajoelhar perante ela.”.
Finalmente,
o Papa Francisco recomenda-nos à Virgem Maria, que acolheu os magos em Belém,
para que Ela, no seu mister pedagógico
“Nos ajude a alcançar a guarda de nós mesmos,
de modo que nos deixemos guiar pela estrela do Evangelho para encontrar Jesus e
saibamos baixar-nos para o Adorar. Assim, poderemos levar aos outros um raio da
sua luz e partilhar com eles a alegria do caminho.”.
***
Na
sequência do Natal, a Epifania é o momento da manifestação de Deus a todos porque
estamos atentos ao céu e aos seus sinais e sabemos ler e interpretar a sua
mensagem. E, se estamos perto, chegamos de súbito; se estamos longe, pomo-nos
de imediato a caminho. E adoramos humildemente e oferecemo-nos como presente a
Cristo e aos outros, iluminando e partilhando, na certeza de que a luz é para
todos e a partilha é com todos e de que é preciso descobrir as sementes da
verdade onde elas estiverem e almejar a verdade total.
2016.01.06 – Louro de
Carvalho
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