domingo, 24 de janeiro de 2016

Francisco reitera a visão da Igreja sobre a família

No seu discurso na Inauguração do Ano Judiciário do Tribunal da Rota Romana, no passado dia 22 de janeiro, o Papa reiterou a visão da Igreja sobre a família, advertindo que “não pode haver confusão entre a família querida por Deus e qualquer outro tipo de união”.

Tais palavras foram tidas por alguns como ponto de reflexão oportuno, já que está na mesa de discussão parlamentar em Itália um projeto de lei sobre uniões civis.

O Pontífice começa por recordar a dupla missão do Tribunal da Rota Romana: um “tribunal da família” e um “tribunal da verdade do vínculo sagrado” – “dois aspetos complementares” duma missão “sempre atual”, mas com peculiar relevância nos tempos de hoje. Nesta sua dupla missão, este tribunal apostólico funciona sempre como auxílio ao Sucessor de Pedro, de modo que “a Igreja, indissociavelmente conexa com a família, continue a proclamar o desígnio de Deus Criador e Redentor sobre a sacralidade e beleza da instituição familiar”.

O tribunal da Rota desempenha a sua missão assumindo uma postura espiritual e pastoral e apoiando e promovendo o “opus veritatis” tanto quando exerce o múnus de julgar como quando empreende ações de formação num dinamismo de aposta na formação permanente. Mas Francisco não deixa de apontar para o que tem como missão urgente da Igreja: “mostrar o infalível amor misericordioso de Deus com as famílias, sobretudo as feridas pelo pecado e pelas provações da vida”. E é “um serviço confiado em primeiro lugar ao Papa e aos Bispos”.

Em torno desta missão eclesial no cumprimento do desígnio divino, procederam a ampla reflexão os representantes dos bispos de todo o mundo, “em espírito e estilo de efetiva colegialidade”, nos dois Sínodos de outubro do ano 2014 e do ano 2015, onde realizaram “um profundo discernimento sapiencial, graças ao qual a Igreja, entre outras coisas, indica ao mundo que não pode haver confusão entre a família querida por Deus e qualquer outro tipo de união”.

Por meio do serviço do Tribunal da Rota Romana por si ou, conforme os casos, em articulação os tribunais diocesanos, interdiocesano e metropolitanos, a Igreja propõe-se “declarar a verdade sobre o matrimónio em caso concreto, para o bem dos fiéis”. Por outro lado e ao mesmo tempo, “tem sempre presente que todos aqueles que, por livre escolha ou por circunstâncias infelizes da vida, vivem num estado objetivo de erro, continuam a ser objeto do amor misericordioso de Cristo e, por isso, da própria Igreja”.
Ao invés daquilo que muitos esperavam ou do que outros temiam, Francisco não se arreda uma vírgula sequer da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família, na esteira de Paulo VI: “Fundada no matrimónio indissolúvel, unitivo e procriativo”, a família “pertence ao ‘sonho’ de Deus e da sua Igreja para a salvação da humanidade” – Igreja que “sempre dirigiu um olhar particular, cheio de preocupação e de amor, à família e aos seus problemas”. Ela “é e deve ser a família de Deus. E o Papa argentino insiste:
“Porque mãe e mestra, a Igreja sabe que, entre os cristãos, alguns têm uma fé forte, formada pela caridade, reforçada pela boa catequese e nutrida pela oração e pela vida sacramental, ao passo que outros têm uma fé fraca, negligenciada, não formada, pouco educada, ou esquecida”.
O Pontífice esclarece que “a qualidade da fé não é uma condição essencial do consentimento matrimonial, que, de acordo com a doutrina de todos os tempos, pode ser extraído apenas em um nível natural”, declarando:
“Não é incomum que os nubentes, levados ao verdadeiro matrimónio pelo instinctus naturae, no momento da celebração tenham uma consciência limitada da plenitude do projeto de Deus, e somente depois, na vida de família, descubram tudo o que Deus Criador e Redentor estabeleceu para eles”.
E – esclarecendo algo de importante que poderia ter subsistido com a publicação das cartas apostólicas em forma de ‘Motu Proprio” Mitis Iudex Dominus Iesus e Mitis et misericors Iesus, de 15 de agosto de 2015, sobre a reforma do processo de declaração de nulidade do matrimónio – explicita:
“As deficiências da formação na fé e também o erro relacionado com a unidade, a indissolubilidade e a dignidade sacramental do matrimónio viciam o consentimento matrimonial apenas se determinam a vontade”.
Por isso, o Papa não hesita em aclarar a posição da Igreja:
“Continua a propor o matrimónio, nos seus elementos essenciais – prole, bem dos cônjuges, unidade, indissolubilidade, sacramentalidade –, não como um ideal para poucos, apesar dos modelos modernos centrados no efémero e no transitório, mas como uma realidade que, na graça de Cristo, pode ser vivida por todos os fiéis batizados”.
Daqui resulta, como consequência, o reconhecimento de, cada vez com mais razão, haver uma “urgência pastoral” que envolve todas as estruturas da Igreja e que “leva a convergir para um objetivo comum ordenado à preparação adequada para o matrimónio” – uma espécie de “novo catecumenato”, fortemente desejado por alguns Padres Sinodais.
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Entretanto e não obstante, é de referir que não só as causas de matrimónio e família e da sagrada ordenação sobem ao tribunal da Rota, fundamentalmente um tribunal de recurso ou apelo.
A missão e funções do Tribunal da Rota Romana foram redefinidas pela Constituição Apostólica Pastor Bonus, de João Paulo II, de 28 de junho de 1988 (artigos 126 a 130).
Funciona ordinariamente como “instância superior no grau de apelo junto da Sé Apostólica, para tutelar os direitos na Igreja, provê à unidade da jurisprudência e, mediante as próprias sentenças, serve de ajuda aos tribunais de grau inferior” (art. 126).
Os seus juízes, “dotados de comprovada doutrina e experiência e escolhidos pelo Sumo Pontífice das várias partes do mundo, constituem um colégio”, a que preside “o Decano nomeado por um determinado período pelo Sumo Pontífice, que o escolhe entre os mesmos juízes” (art. 127).
Julga: “em segunda instância, as causas julgadas pelos tribunais ordinários de primeira instância e remetidas à Santa Sé por legítimo apelo; em terceira ou ulterior instancia, as causas já tratadas pelo mesmo Tribunal Apostólico e por algum outro tribunal, a não ser que tenham transitado em julgado” (cf art. 128). E julga em primeira instância e, a não ser que seja previsto o contrário, também em segunda e ulterior instância: os Bispos nas causas contenciosas, contanto que não se trate dos direitos ou dos bens temporais de uma pessoa jurídica representada pelo Bispo; os Abades primazes, ou os Abades superiores de Congregações monásticas e os Superiores-Gerais de Institutos Religiosos de direito pontifício; as dioceses ou outras pessoas eclesiásticas, quer físicas quer jurídicas, que não têm um superior abaixo do Romano Pontífice; e as causas que o Romano Pontífice tenha confiado ao mesmo Tribunal (cf art.129).
“O Tribunal da Rota Romana é regido por lei própria” (cf art.130).
Posteriormente, em 30 de agosto de 2011, pela Carta Apostólica Quaerit semper, Bento XVI transferiu algumas competências da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos para o novo Departamento para os procedimentos de dispensa do matrimónio rato e não consumado e as causas de nulidade da Ordenação sacra, constituído no Tribunal da Rota Romana.
Para tanto, invocando o princípio de que os dicastérios da Cúria Romana devem organizar-se de acordo com as necessidades da Igreja aqui e agora, aduziu o facto de “nas circunstâncias atuais”, resultar “conveniente” que a referida Congregação se dedique, principalmente, a dar novo impulso à promoção da Sacra Liturgia na Igreja, segundo a renovação desejada pelo Concílio Vaticano II, a partir da Constituição Sacrosanctum Concilium. Assim, foram revogados os artigos 67 e 68 da citada Constituição Apostólica Pastor Bonus, que atribuíam à mencionada Congregação as competências ora transferidas para a Rota. Foram acrescentados dois parágrafos ao artigo 126 da Pastor Bonus:
§ 2. Neste Tribunal [da Rota], é constituído um Departamento ao qual compete julgar acerca do facto da não consumação do matrimónio e acerca da existência de uma justa causa para conceder a dispensa. Por isso, ele recebe todas as atas, juntamente com o voto do Bispo e com as observações do Defensor do Vínculo, pondera atentamente, segundo o procedimento especial, a súplica visando obter a dispensa e, se for o caso, submete-a ao Sumo Pontífice.
§ 3. Tal Departamento é competente também para tratar as causas de nulidade da Ordenação sacra, segundo a norma do direito universal e próprio, congrua congruis referendo.
Foi ainda estatuído que “o Departamento para os procedimentos de dispensa do matrimónio rato e não consumado e as causas de nulidade da Ordenação sacra é moderado pelo Decano da Rota Romana, assistido por Oficiais, Comissários deputados e Consultores.
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Apesar de tudo, não pode subestimar-se o conteúdo do discurso papal e deixar de reconhecer que as questões do matrimónio e família pesam imenso no desempenho da Rota Romana.
A família, “fundada no matrimónio indissolúvel, unitivo e procriativo”, é sonho salvífico de Deus e da Igreja em prol da humanidade. Já Paulo VI afirmara:
“A Igreja volveu sempre um olhar particular, cheio de solicitude e de amor, para a família e seus problemas. Por meio do matrimónio e da família, estão sabiamente unidas duas das maiores realidades humanas: a missão de transmitir a vida; e o amor mútuo e legítimo do homem e da mulher, pelo qual eles são chamados a completarem-se mutuamente numa doação recíproca não apenas física, mas sobretudo espiritual. Ou para dizer melhor: Deus quis tornar os esposos participantes do seu amor – do amor pessoal que Ele oferece a cada um deles e pelo qual os chama a ajudarem-se e doarem-se mutuamente para alcançarem a plenitude da sua vida pessoal; e do amor que Ele dedica à humanidade e a todos os seus filhos e pelo qual deseja multiplicar os filhos dos homens para os tornar partícipes da sua vida e da sua felicidade eterna.”
Quanto à interconexão de papéis da família e da Igreja, o Papa explicita:
“Em planos diversos, concorrem para acompanhar o ser humano para o fim [último] da sua existência. E fazem-no certamente com os ensinamentos que transmitem, mas também com a sua própria natureza de comunidade de amor e de vida. De facto, se a família pode com propriedade chamar-se ‘igreja doméstica’, à Igreja aplica-se justamente o título de família de Deus. Portanto, ‘o espírito familiar’ é uma carta constitucional para a Igreja: assim, o cristianismo deve aparecer e assim deve ser.”
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Em suma, um discurso programático, a pretexto das funções do Tribunal da Rota Romana por ocasião da inauguração do ano judicial, sobre a doutrina e a pastoral da família no alinhamento com a tradição eclesial e na abertura à mitigação dos dramas humanos suscitados em e pela família.
2016.01.24 – Louro de Carvalho

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