No seu discurso na Inauguração do
Ano Judiciário do Tribunal da Rota Romana, no passado dia 22 de janeiro, o Papa
reiterou a visão da Igreja sobre a família, advertindo que “não pode haver
confusão entre a família querida por Deus e qualquer outro tipo de união”.
Tais palavras foram tidas por
alguns como ponto de reflexão oportuno, já que está na mesa de discussão
parlamentar em Itália um projeto de lei sobre uniões civis.
O Pontífice começa por recordar a
dupla missão do Tribunal da Rota Romana: um “tribunal da família” e um
“tribunal da verdade do vínculo sagrado” – “dois aspetos complementares” duma
missão “sempre atual”, mas com peculiar relevância nos tempos de hoje. Nesta
sua dupla missão, este tribunal apostólico funciona sempre como auxílio ao
Sucessor de Pedro, de modo que “a Igreja, indissociavelmente conexa com a
família, continue a proclamar o desígnio de Deus Criador e Redentor sobre a
sacralidade e beleza da instituição familiar”.
O tribunal da Rota desempenha a
sua missão assumindo uma postura espiritual e pastoral e apoiando e promovendo
o “opus veritatis” tanto quando
exerce o múnus de julgar como quando empreende ações de formação num dinamismo
de aposta na formação permanente. Mas Francisco não deixa de apontar para o que
tem como missão urgente da Igreja: “mostrar o infalível amor misericordioso de
Deus com as famílias, sobretudo as feridas pelo pecado e pelas provações da
vida”. E é “um serviço confiado em primeiro lugar ao Papa e aos Bispos”.
Em torno desta missão eclesial no
cumprimento do desígnio divino, procederam a ampla reflexão os representantes
dos bispos de todo o mundo, “em espírito e estilo de efetiva colegialidade”,
nos dois Sínodos de outubro do ano 2014 e do ano 2015, onde realizaram “um
profundo discernimento sapiencial, graças ao qual a Igreja, entre outras
coisas, indica ao mundo que não pode haver confusão entre a família querida por
Deus e qualquer outro tipo de união”.
Por meio do
serviço do Tribunal da Rota Romana por si ou, conforme os casos, em articulação
os tribunais diocesanos, interdiocesano e metropolitanos, a Igreja propõe-se “declarar a verdade sobre o matrimónio em
caso concreto, para o bem dos fiéis”. Por outro lado e ao mesmo tempo, “tem
sempre presente que todos aqueles que, por livre escolha ou por circunstâncias
infelizes da vida, vivem num estado objetivo de erro, continuam a ser objeto do
amor misericordioso de Cristo e, por isso, da própria Igreja”.
Ao invés
daquilo que muitos esperavam ou do que outros temiam, Francisco não se arreda
uma vírgula sequer da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família, na
esteira de Paulo VI: “Fundada no
matrimónio indissolúvel, unitivo e procriativo”, a família “pertence ao ‘sonho’
de Deus e da sua Igreja para a salvação da humanidade” – Igreja que “sempre dirigiu um olhar particular, cheio
de preocupação e de amor, à família e aos seus problemas”. Ela “é e deve
ser a família de Deus. E o Papa argentino insiste:
“Porque mãe e mestra, a Igreja sabe
que, entre os cristãos, alguns têm uma fé forte, formada pela caridade,
reforçada pela boa catequese e nutrida pela oração e pela vida sacramental, ao
passo que outros têm uma fé fraca, negligenciada, não formada, pouco educada,
ou esquecida”.
O Pontífice
esclarece que “a qualidade da fé não é uma condição essencial do consentimento
matrimonial, que, de acordo com a doutrina de todos os tempos, pode ser extraído
apenas em um nível natural”, declarando:
“Não é incomum que os nubentes,
levados ao verdadeiro matrimónio pelo instinctus
naturae, no momento da celebração tenham uma consciência limitada da
plenitude do projeto de Deus, e somente depois, na vida de família, descubram
tudo o que Deus Criador e Redentor estabeleceu para eles”.
E –
esclarecendo algo de importante que poderia ter subsistido com a publicação das
cartas apostólicas em forma de ‘Motu Proprio” Mitis Iudex Dominus Iesus e Mitis
et misericors Iesus, de 15 de agosto de 2015, sobre a reforma do processo
de declaração de nulidade do matrimónio – explicita:
“As deficiências da
formação na fé e também o erro relacionado com a unidade, a indissolubilidade e
a dignidade sacramental do matrimónio viciam o consentimento matrimonial apenas
se determinam a vontade”.
Por
isso, o Papa não hesita em aclarar a posição da Igreja:
“Continua a propor o
matrimónio, nos seus elementos essenciais – prole, bem dos cônjuges, unidade,
indissolubilidade, sacramentalidade –, não como um ideal para poucos, apesar
dos modelos modernos centrados no efémero e no transitório, mas como uma
realidade que, na graça de Cristo, pode ser vivida por todos os fiéis
batizados”.
Daqui
resulta, como consequência, o reconhecimento de, cada vez com mais razão, haver
uma “urgência pastoral” que envolve todas as estruturas da Igreja e que “leva a
convergir para um objetivo comum ordenado à preparação adequada para o
matrimónio” – uma espécie de “novo catecumenato”, fortemente desejado por
alguns Padres Sinodais.
***
Entretanto
e não obstante, é de referir que não só as causas de matrimónio e família e da
sagrada ordenação sobem ao tribunal da Rota, fundamentalmente um tribunal de
recurso ou apelo.
A
missão e funções do Tribunal da Rota Romana foram redefinidas pela Constituição
Apostólica Pastor Bonus, de João
Paulo II, de 28 de junho de 1988 (artigos 126 a 130).
Funciona
ordinariamente como “instância superior no grau de apelo junto da Sé
Apostólica, para tutelar os direitos na Igreja, provê à unidade da
jurisprudência e, mediante as próprias sentenças, serve de ajuda aos tribunais
de grau inferior” (art. 126).
Os
seus juízes, “dotados de comprovada doutrina e experiência e escolhidos pelo
Sumo Pontífice das várias partes do mundo, constituem um colégio”, a que
preside “o Decano nomeado por um determinado período pelo Sumo Pontífice, que o
escolhe entre os mesmos juízes” (art. 127).
Julga:
“em segunda instância, as causas julgadas pelos tribunais ordinários de
primeira instância e remetidas à Santa Sé por legítimo apelo; em terceira ou
ulterior instancia, as causas já tratadas pelo mesmo Tribunal Apostólico e por
algum outro tribunal, a não ser que tenham transitado em julgado” (cf art. 128). E julga em primeira
instância e, a não ser que seja previsto o contrário, também em segunda e
ulterior instância: os Bispos nas causas contenciosas, contanto que não se
trate dos direitos ou dos bens temporais de uma pessoa jurídica representada
pelo Bispo; os Abades primazes, ou os Abades superiores de Congregações
monásticas e os Superiores-Gerais de Institutos Religiosos de direito
pontifício; as dioceses ou outras pessoas eclesiásticas, quer físicas quer
jurídicas, que não têm um superior abaixo do Romano Pontífice; e as causas que
o Romano Pontífice tenha confiado ao mesmo Tribunal (cf art.129).
“O
Tribunal da Rota Romana é regido por lei própria” (cf art.130).
Posteriormente,
em 30 de agosto de 2011, pela Carta
Apostólica Quaerit semper, Bento XVI transferiu algumas
competências da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos para o novo Departamento para os procedimentos
de dispensa do matrimónio rato e não consumado e as causas de nulidade da
Ordenação sacra, constituído no Tribunal da Rota Romana.
Para
tanto, invocando o princípio de que os dicastérios da Cúria Romana devem
organizar-se de acordo com as necessidades da Igreja aqui e agora, aduziu o
facto de “nas circunstâncias atuais”, resultar “conveniente” que a referida
Congregação se dedique,
principalmente, a dar novo impulso à promoção da Sacra Liturgia na Igreja,
segundo a renovação desejada pelo Concílio Vaticano II, a partir da
Constituição Sacrosanctum Concilium. Assim, foram revogados os
artigos 67 e 68 da citada Constituição Apostólica Pastor Bonus, que atribuíam à mencionada Congregação as
competências ora transferidas para a Rota. Foram acrescentados dois
parágrafos ao artigo 126 da Pastor
Bonus:
§ 2. Neste Tribunal [da
Rota], é constituído um Departamento ao qual compete julgar acerca do facto da
não consumação do matrimónio e acerca da existência de uma justa causa para
conceder a dispensa. Por isso, ele recebe todas as atas, juntamente com o voto
do Bispo e com as observações do Defensor do Vínculo, pondera atentamente,
segundo o procedimento especial, a súplica visando obter a dispensa e, se for o
caso, submete-a ao Sumo Pontífice.
§ 3. Tal Departamento é
competente também para tratar as causas de nulidade da Ordenação sacra, segundo
a norma do direito universal e próprio, congrua
congruis referendo.
Foi
ainda estatuído que “o Departamento para os procedimentos de dispensa do
matrimónio rato e não consumado e as causas de nulidade da Ordenação sacra é
moderado pelo Decano da Rota
Romana, assistido por Oficiais, Comissários deputados e Consultores.
***
Apesar de tudo, não pode subestimar-se o conteúdo do discurso
papal e deixar de reconhecer que as questões do matrimónio e família pesam
imenso no desempenho da Rota Romana.
A
família, “fundada no matrimónio indissolúvel, unitivo e procriativo”, é sonho
salvífico de Deus e da Igreja em prol da humanidade. Já Paulo VI afirmara:
“A Igreja volveu sempre um
olhar particular, cheio de solicitude e de amor, para a família e seus
problemas. Por meio do matrimónio e da família, estão sabiamente unidas duas
das maiores realidades humanas: a missão de transmitir a vida; e o amor mútuo e
legítimo do homem e da mulher, pelo qual eles são chamados a completarem-se
mutuamente numa doação recíproca não apenas física, mas sobretudo espiritual.
Ou para dizer melhor: Deus quis tornar os esposos participantes do seu amor –
do amor pessoal que Ele oferece a cada um deles e pelo qual os chama a
ajudarem-se e doarem-se mutuamente para alcançarem a plenitude da sua vida
pessoal; e do amor que Ele dedica à humanidade e a todos os seus filhos e pelo
qual deseja multiplicar os filhos dos homens para os tornar partícipes da sua
vida e da sua felicidade eterna.”
Quanto à interconexão de papéis da família
e da Igreja, o Papa explicita:
“Em planos diversos, concorrem para acompanhar o ser humano para o fim [último]
da sua existência. E fazem-no certamente com os ensinamentos que transmitem,
mas também com a sua própria natureza de comunidade de amor e de vida. De
facto, se a família pode com propriedade chamar-se ‘igreja doméstica’, à Igreja
aplica-se justamente o título de família de Deus. Portanto, ‘o espírito
familiar’ é uma carta constitucional para a Igreja: assim, o cristianismo deve
aparecer e assim deve ser.”
***
Em suma, um discurso programático, a
pretexto das funções do Tribunal da Rota Romana por ocasião da inauguração do
ano judicial, sobre a doutrina e a pastoral da família no alinhamento com a
tradição eclesial e na abertura à mitigação dos dramas humanos suscitados em e
pela família.
2016.01.24 – Louro de Carvalho
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