quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O discurso programático de Jesus em Nazaré

O Evangelho de Lucas coloca o início da pregação de Jesus e da sua vida pública em geral na Sinagoga de Nazaré. Depois do episódio do seu Batismo no Jordão (cf Lc 3,21-22) e da teofania trinitária subsequente à abertura do Céu e desta resultante, retirara-se para o deserto, cheio do Espírito Santo, onde foi tentado pelo diabo, tendo respondido cabalmente às seduções e insídias do tentador, que se retirou de junto dele (cf Lc 4,1-13).
Depois, impelido pelo mesmo Espírito Santo, Jesus regressou à Galileia: ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam. Assim a sua fama se propagou por toda a região (cf  Lc 4,14-15).
Segundo Lucas, o quadro das primeiras pregações de Jesus é a sinagoga e será ela também o cenário dos primeiro atos da pregação de Paulo e dos outros apóstolos tipicamente missionários (At 9,20; 13,5.14-15.44). Marcos e Mateus, embora comecem por enunciar o conteúdo nuclear da pregação – a proximidade do reino de Deus (ou reino do Céu), a vocação dos primeiros discípulos, mencionam, logo a seguir, a pregação nas sinagogas (vd Mc 1,15.16-28; Mt 4,12.17.18-22; 23ss). Porém, enquanto Mateus e Marcos destacam a pregação e os milagres em Cafarnaum, Lucas foca a sua atenção em Nazaré.
É certo que o primeiro contacto com a catequese de Jesus da parte dos doutores deu-se aos doze anos de idade do Menino no Templo (Lc 2,46ss). E, por seu turno, João assinalando o Batismo no Jordão, faz-lhe seguir a eleição dos primeiros discípulos (vd Jo 1,31-51) na Galileia, mas, depois, evidencia-o em Caná numas bodas, acompanhado da Mãe e dos discípulos. Lá não produziu uma pregação propriamente dita, mas realizou ali o primeiro dos seus sinais. Depois, passa a cafarnaum e vai ao Templo para num gesto teológico-contestatário o purificar (vd Jo 2,1-2.11.12.13-25).
Todavia, não deixa de usar o Templo para o ensino, os prodígios e a misericórdia (vd Jo 7,14; 8,1-59). Também os apóstolos, que iniciaram a pregação a partir das imediações do cenáculo, levaram a multidão dos primeiros discípulos a frequentar diariamente o Templo e ali fizeram prodígios (vd At 2, 46; 3, 1ss).
Voltando a Lucas e fixando-nos na perícopa a que o Papa chamou “o discurso programático de Jesus em Nazaré” – na sua alocução aos fiéis que a Praça de São Pedro emoldurava para a recitação do Angelus no passado dia 24 – e onde sintetiza a atividade evangelizadora, vemos o Mestre em Nazaré na sinagoga a um sábado. Como era costume, depois da proclamação das 18 bênçãos passava-se à leitura da Lei (primeira leitura) e dos Profetas (segunda leitura). Esta última era feita por um adulto versado nas Escrituras, que fazia a explanação homilética.
Naquele sábado, a leitura do Profeta coube a Jesus e processou-se do seguinte modo: “…levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito” (Lc 4,16-17):
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.” (Lc 4,18-19; cf Is 61,1-2).
“Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele.” (Lc 4,20).
Francisco designa como programático aquele texto, decalcado no texto de Isaías, em que vem sintetizada a missão do Profeta e que Jesus aplica si próprio. E os verbos são bem conotativos do messianismo: “ungiu”, o verbo da consagração profética, sacerdotal e régia; “anunciar”, o verbo da primeira ação do profeta, messias, apóstolo, missionário; “proclamar”, o verbo do arauto, pregador, cantor; e “mandar em liberdade”, a expressão verbal da auctoritas e da potestas libertadoras e não tirânicas.
Mas é a palavra explícita de Jesus que atribui às palavras de Isaías o conteúdo programático e messiânico: “Cumpriu-se hoje”.
Todos tinham os olhos fixos nele porque Ele não leu a perícopa na íntegra: omitiu o segmento discursivo “e a vingança do nosso Deus” que era em Isaías parte integrante da proclamação do ano favorável.
Ao aplicar a si mesmo o texto de Isaías, assume que o Espírito que se manifestou no Batismo O ungiu para esta missão messiânica. E mostra a sua clara opção por uma das linhas messiânicas que talvez estivesse mais no esquecimento do povo: não a do messianismo político circunscrito àquele povo, mas a do messianismo universal. Neste messianismo universal cabem todos e cada um, mas preferencialmente: os pobres, a quem será anunciada a Boa Nova; os cativos, a quem será proclamada a libertação; os cegos, a quem será oferecida a recuperação da vista; e os oprimidos, a quem será oferecida a liberdade.  
Ao ouvi-lo dizer “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir”, “todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça que Lhe saíam da boca (Lc 4,21-22). Porém, quando mostrou conhecer a curiosidade egoísta e espetacular dos circunstantes “Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum, fá-lo também aqui na tua terra” (v. 23), estes mudaram de atitude. Mas ele explicitou sem rodeios:
Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman.” (vv 24-27).
E o evangelista continua:
“Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de furor. E, erguendo-se, lançaram-No fora da cidade e levaram-No ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo. Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho.” (vv 28-30).
É significativo que Jesus tenha escapado ileso, apesar da hostilidade dos conterrâneos e tenha seguido o seu caminho. Era um caminho necessário que, embora iniciado, ainda tinha muito por andar para que a missão messiânica se realizasse em pleno.
A partir de agora, aquele “ano favorável da parte do Senhor”, que era no Antigo Testamento o ano jubilar, que se celebrava de 50 em 50 anos, passava a ser o ano sem limites temporais. O “hoje” de que fala Jesus não é o “hoje” efémero, mas o infindável tempo da graça, o “hoje” da Salvação acentuada muitas vezes por Lucas (vd Lc 2,11; 3,22; 5,26; 13,32; 19,9; 23,43).
O mau acolhimento a Jesus na sua terra é indício da rejeição com que o povo judeu viria a brindar este Messias, já que a ideia dominante e obsessiva era a da libertação de Israel dos opressores vizinhos e, naquele tempo, a libertação político-militar da ocupação romana. Esta obsessão não era compatível com a universalidade da salvação.
***
Na sua alocução dominical de 24 de Janeiro o Papa salienta a originalidade da palavra de Jesus pela força do Espírito, palavra que revela o sentido das Escrituras (cf Lc 24,27.32) e silencia os espíritos impuros, que obedecem (cf Mc 1,27).
Diferente dos mestres coevos, este insigne Mestre não abre uma escola para estudar a Lei, mas como mestre ambulante e peregrino ensina em todo o tempo e lugar: onde é possível e aproveita todos os momentos que a ambulação lhe proporciona. Torna-se diferente de João Batista – sustenta o Papa – porque “João proclama o juízo iminente de Deus, ao passo que Jesus anuncia o seu perdão de Pai”.
Francisco não deixa de proceder à transferência deste cariz messiânico de Cristo para o dever profético e missionário da Igreja e de todos os cristãos, de todos os batizados:
“Ser cristão e ser missionário é a mesma coisa. Anunciar o Evangelho, com a palavra e sobretudo com a vida, é a finalidade principal da comunidade cristã e de cada um dos seus membros.”
Por outro lado, o Pontífice sublinha que “Jesus dirige a Boa Nova a todos sem excluir ninguém, mas privilegiando os afastados, os que sofrem, os doentes, os descartados da sociedade”. E lança a questão reflexiva, Que significa evangelizar os pobres?, a que responde:
“Significa, antes de mais, aproximar-se deles, significa ter a alegria de os servir, de os libertar da sua opressão, e tudo isto no nome e com o Espírito de Cristo, porque é Ele o Evangelho de Deus, é Ele a Misericórdia de Deus, é Ele a libertação de Deus, foi Ele que Se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza”.
A seguir, Francisco ensina que o referido “texto de Isaías, reforçado por algumas pequenas adaptações da lavra de Jesus, indica que o anúncio messiânico do Reino de Deus estabelecido no meio de nós se desenvolve preferencialmente com os colocados à margem, os prisioneiros, os opressores”.
Se no tempo de Jesus, esta gente não era o centro da comunidade de fé, diz o Papa, também hoje nos devemos questionar se efetivamente os diversos espaços de vida cristã apostólica são mesmo “fiéis ao programa de Cristo”, fazendo da evangelização dos pobres e do anuncio alegre da Boa Nova “a prioridade”. E adverte:
“Não se trata apenas de prestar assistência social, muito menos  de fazer atividade política. Trata-se de oferecer a força do Evangelho que converte os corações, sara as feridas, transforma as relações humanas e sociais segundo a lógica do amor. De facto, os pobres são o centro do Evangelho.”
Finalmente, Francisco confia esta causa do Evangelho à “Virgem Maria, Mãe dos evangelizadores”, para que “nos ajude a sentir fortemente a fome e sede do Evangelho”, “especialmente no coração e na carne dos pobres”, de modo que a comunidade cristã testemunhe no concreto a misericórdia de Cristo.
***
Para que Jesus continue o seu caminho, através da Igreja e dos cristãos, na senda dos pobres, há ainda muito caminho por andar, cabendo à hierarquias liderar o processo, não constituindo travão, mas orientando a aceleração.

2016.01.26 – Louro de Carvalho

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