sábado, 2 de janeiro de 2016

Os alegadamente problemáticos 10 aspetos do ministério de Francisco

Sob pretexto da proximidade do dia em que Francisco iria discursar perante a Cúria Romana por ocasião da apresentação dos votos natalícios, Sandro Magister, diretor de Focus, no seu blogue Settimo Cielo, postou uma carta dirigida ao Papa em 11 de dezembro de 2015. Em contraponto às 15 doenças que o Pontífice apontou à Cúria, o ora autor epistolar – supostamente sem conhecer os 12 pares de antibióticos que o líder da Igreja colocou à disposição de todos, já que o discurso papal evoluiu para a extensão daquelas doenças a todos os agentes pastorais, políticos, sociais e económicos – enunciou as presumíveis 10 tentações em que julga o Papa ter caído.
No pressuposto de que o Advento é tempo propício ao exame de consciência que o Papa argentino recomenda aos outros e que ele também deve fazer (e faz, reconheço eu), e convicto de que Sua Santidade terá feito um julgamento “bastante duro e até mesmo injusto contra muitos” dos que trabalham no Vaticano, falando “como alguém que conhece o Vaticano apenas de fora ou apenas de cima”, o subscritor da predita carta aberta lista “apenas aqueles aspetos do seu exercício do ministério papal” que lhe “parecem problemáticos”. E são: atitude emotiva e anti-intelectual; autoritarismo; populismo na mudança; falta de “humildade” diante da herança dos antecessores; pastoralismo; exibição exagerada da simplicidade do seu estilo de vida; particularismo; contínua vontade de espontaneidade; falta de clareza sobre a relação entre liberdade religiosa, política e económica; e metaclericalismo.
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Passando em revista cada uma delas, talvez fique esclarecido o ponto de vista em que o autor da carta parece ter razão e onde não a tem manifestamente. Assim:
Atitude emotiva e anti-intelectual. É certo que a “alternativa a uma Igreja da doutrina é uma Igreja do arbítrio, não uma Igreja do amor” e que em muitos dos colaboradores e conselheiros do Papa, há “real falta de competência em termos de doutrina e teologia”, dado que, sendo homens que muitas vezes “têm pelas costas uma carreira no governo eclesial ou na administração de uma universidade”, frequentemente são tentados a “raciocinar em termos pragmáticos e políticos”. Porém, não é verdade que Francisco, enquanto “sumo mestre da Igreja”, tenha descurado a clareza na apresentação do “primado da fé”. E, sendo inquestionável que “a fé sem a doutrina não é nada”, também é verdade que a doutrina por si só não gera a fé. Esta, como dom de Deus, vem do ouvido e alimenta-se da oração e das obras da fé.
Autoritarismo. Não creio que o Papa se esteja a distanciar da sabedoria que perpassa a disciplina eclesial, o direito canónico e a práxis histórica da Cúria. Tem é de usar o seu poder para purificar a Igreja de excessos de rigor e de comportamentos que radicam mais nas pequenas tradições que no Evangelho. É certo que algumas declarações de Francisco parecem demasiado purgatórias, mas também é verdade que ele se tem rodeado de conselheiros firmes, mas atentos. Por outro lado, tem incorporado recomendações várias, como a extensão das 15 doenças à generalidade dos operadores, o agradecimento mais frequente do que antes aos agentes pastorais e o reconhecimento de que deve dar mais atenção à classe média.
Populismo da mudança. É óbvio que a invocação da mudança está na moda. Porém, este sucessor de Pedro tem recordado a si mesmo e aos outros que “as coisas se mudam apenas lentamente”, sabe que as mudanças não são benéficas só por serem mudanças, mas pela virtude do seu conteúdo e entende que elas necessitam de paciência e conversão de mentalidades e de corações. No atinente à popularidade, não parece que o Papa jogue para a opinião pública, mas aproveita o facto de dispor de uma imprensa amiga, o que não sucedeu ao seu predecessor imediato. Também não é verdade que este Papa alimente qualquer ideia “de que a doutrina e a disciplina da Igreja podem e devem ser adaptadas às opiniões mutáveis da maioria”. Ao invés, tem apontado o dedo, como o seu antecessor, à ditadura do relativismo e ao culto do deus-dinheiro. Tal não implica que determinados pontos da disciplina não tenham de ser modificados para garantir mais evangelho e que devam ser menos acentuados alguns pontos de doutrina que surgiram para condenar ideais contrárias ao sentir da Igreja e que hoje não são defendidas.
Falta de “humildade” diante da herança dos antecessores. Se o comportamento de Bergoglio é percebido como crítica ao modo pelo qual os antecessores viveram, falaram e agiram, devemos todos cooperar no esclarecimento de tal postura e não alinhar com tal perceção. Ao invés, o Papa é pródigo nas referências que faz aos predecessores, mesmo a Bento XVI, que muitos queriam ver silenciado. E são conhecidos os gestos de amizade ente os dois. Porém, é óbvio que Francisco, na linha dos antecessores imediatos, deve repensar o ministério petrino, o que não obsta ao cultivo do enunciado “é preciso que o Cristo cresça e eu diminua” (Jo 3,30).
Pastoralismo. Também não me agrada que Francisco mostre a clara opção por ser o pároco. Porém, julgo que o principal papel do Papa é o de pastor e o de querer que os bispos e os padres sejam pastores com o odor das ovelhas. Também não me apraz que ele diga que não é teólogo. Todavia, não duvido da solidez da sua formação teológica e antropológica e bem sei que nela estriba a fé, a espiritualidade, a pastoral e a intervenção política. Depois, o autor epistolar deveria saber que, assim como “nem um papa nem qualquer outro pastor deve pôr minimamente em dúvida que a Igreja segue a doutrina de Cristo em tudo o que faz (pastoral, sacramentos, liturgia, catequese, teologia, caridade…), porque, em última análise, tudo depende da fé revelada”, também deve saber que uma boa teoria não passa de uma boa teoria.
Exibição exagerada da simplicidade do seu estilo de vida. Aqui, parece-me haver algum exagero. Com efeito, pouco importa se o Papa usa sapato preto ou vermelho, se ele transporta ou não a sua pasta preta com objetos de uso pessoal, se vive no Palácio Apostólico ou em Santa Marta (ocupa o lugar de 2 clientes), se usa ou não a mozeta papal. Mas também aqui o Papa não despreza os tesouros que estão à guarda do Vaticano, declarando que são património da humanidade e que a Igreja tem o dever de zelar pela sua conservação, manutenção e exposição.
Particularismo. É óbvia a existência da tentação de subordinar os objetivos da Igreja universal (ou da comunidade em geral) aos pontos de vista do indivíduo ou duma parte da comunidade, mesmo que se trate do líder. E alguns cardeais têm dito que a Igreja não tem de se referenciar apenas no Papa. Todavia, Francisco tem remado contra a maré e tem promovido a ideia eficaz de que a Igreja Católica, para lá das diferenças, é “sempre a mesma em todo o mundo” e tem querido que “os católicos em todos os países vivam, rezem e pensem de modo similar e, juntos, uns com os outros, correspondam à realidade global da vida”.
Contínua vontade de espontaneidade. É verdade que “uma falta de profissionalismo não é um sinal da obra do Espírito Santo” (embora o excesso de profissionalismo também não o seja) e não havia necessidade do uso de expressões como “proliferar como coelhos” ou “quem sou eu para julgar”, mesmo que em ambiente informal de conferência de imprensa. Também é temerário criarem-se situações em que “outros têm de correr a explicar” o que o líder queria realmente dizer. Não obstante, é de apreciar o tom coloquial com que o Pontífice usa da palavra. Já estávamos saturados de que nos falassem quotidianamente ex cathedra. No entanto, é oportuno frisar que “agir fora do programa e fora do protocolo tem os seus tempos e lugares”, sem que se torne a norma. Trata-se também do devido respeito para com os “colaboradores em Roma e em todo o mundo”. Para o Papa, “a medida da espontaneidade deve ser mais cautelosa que a dos demais pastores. Por outro lado, o Papa tem referido que alguns gestos são espontâneos, mas outros são convenientemente estudados e preparados.
Falta de clareza sobre a relação entre liberdade religiosa, política e económica. O autor epistolar pensa que muitas das declarações papais, preconizam que “o Estado deveria sempre governar mais, controlar mais e ser mais responsável, em particular no campo económico e social”. Opina, em contraponto, que “o facto de que o Estado pode cuidar de tudo é refutado pela história” e entende que “a Igreja deve defender organizações não governamentais (ONG) que podem fornecer bens que o Estado não pode fornecer do mesmo modo” e, “contra a tendência de esperar tudo da parte do Estado”, sentencia que “a Igreja deve ajudar as pessoas a cuidar da própria vida”, acautelando que “o estado de bem-estar social também se pode tornar poderoso demais e, com isso, paternalista, autoritário e não liberal”. Penso que, neste sentido, o Papa, que se tem notabilizado na exaltação do trabalho feito pela Igreja e por muitas ONG, mais não tem feito que puxar pelas responsabilidades dos Estados para com todos, sobretudo para com os mais esquecidos e que salientar o seu dever/poder moderador contra a ambição do lucro à custa de tudo e de todos e contra a onda cada vez mais generalizada da corrupção. Não parece que Francisco tenha incitado ao Estado totalitário ou ao Estado Liberal, mas tem acentuado o seu poder/dever de regulação. Mais: nem hostilizou o Estado cubano nem o Estado americano! 
Metaclericalismo. De facto, a princípio, Francisco parecia exigir mais do clero que tornar-se-lhe grato. Porém, o seu discurso evoluiu com os périplos que tem feito pelo mundo. Por outro lado, tem criticado um clericalismo mais real do que imaginário. Tudo depende do que se entende por clericalismo. Se é o facto de os clérigos se meterem por tudo quanto é sítio ocupando lugares que os leigos bem podem ocupar, isso é condenável; se querem que os leigos sirvam de padres em miniatura, isso será desvirtuar tanto o papel do leigo como o do clérigo. Porém, nem se pode impedir que um clérigo desempenhe o papel de cidadão que lhe cabe nem se pode dispensar os clérigos de orientarem doutrinal e pastoralmente a função dos leigos, incitando-os a imiscuírem-se em todos os campos por onde passa a vida do mundo. Por fim, “os bispos e os sacerdotes precisam de saber que o Papa está às suas costas quando defendem o Evangelho, no tempo e fora do tempo”. E “não é bom que algumas pessoas pensem que o Papa vê muitas coisas de um modo diferente do Catecismo, e que outras o imitem para fazerem carreira neste pontificado”.
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Com efeito o Papa, presta um serviço necessário à continuidade e à verdadeira tradição da Igreja, mas tem de proceder às ruturas que, segundo o seu modo de ver, o conselho dos colaboradores e a lucidez do Espírito, se lhe afigurem necessárias. Ele é efetivamente o representante de Cristo e o mestre supremo da nossa fé. E Cristo manteve e inovou.
Ademais, as ditas tentações não são exclusivas do ministério papal. Todos as devem ponderar.
2016.01.02 – Louro de Carvalho

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