Sob pretexto
da proximidade do dia em que Francisco iria discursar perante a Cúria Romana
por ocasião da apresentação dos votos natalícios, Sandro Magister, diretor
de Focus, no seu blogue Settimo
Cielo, postou uma carta dirigida ao Papa em 11 de dezembro de 2015. Em
contraponto às 15 doenças que o Pontífice apontou à Cúria, o ora autor
epistolar – supostamente sem conhecer os 12 pares de antibióticos que o líder da
Igreja colocou à disposição de todos, já que o discurso papal evoluiu para a
extensão daquelas doenças a todos os agentes pastorais, políticos, sociais e
económicos – enunciou as presumíveis 10 tentações em que julga o Papa ter
caído.
No
pressuposto de que o Advento é tempo propício ao exame de consciência que o
Papa argentino recomenda aos outros e que ele também deve fazer (e faz,
reconheço eu), e
convicto de que Sua Santidade terá feito um julgamento “bastante duro e até
mesmo injusto contra muitos” dos que trabalham no Vaticano, falando “como
alguém que conhece o Vaticano apenas de fora ou apenas de cima”, o subscritor
da predita carta aberta lista “apenas aqueles aspetos do seu exercício do
ministério papal” que lhe “parecem problemáticos”. E são: atitude emotiva e
anti-intelectual; autoritarismo; populismo na mudança; falta
de “humildade” diante da herança dos antecessores; pastoralismo; exibição
exagerada da simplicidade do seu estilo de vida; particularismo; contínua
vontade de espontaneidade; falta de
clareza sobre a relação entre liberdade religiosa, política e económica; e metaclericalismo.
***
Passando em revista cada uma delas, talvez fique esclarecido o ponto de
vista em que o autor da carta parece ter razão e onde não a tem manifestamente.
Assim:
Atitude emotiva e anti-intelectual. É certo que a “alternativa a uma Igreja da doutrina é
uma Igreja do arbítrio, não uma Igreja do amor” e que em muitos dos
colaboradores e conselheiros do Papa, há “real falta de competência em termos
de doutrina e teologia”, dado que, sendo homens que muitas vezes “têm pelas
costas uma carreira no governo eclesial ou na administração de uma
universidade”, frequentemente são tentados a “raciocinar em termos pragmáticos
e políticos”. Porém, não é verdade que Francisco, enquanto “sumo mestre da
Igreja”, tenha descurado a clareza na apresentação do “primado da fé”. E, sendo
inquestionável que “a fé sem a doutrina não é nada”, também é verdade que a
doutrina por si só não gera a fé. Esta, como dom de Deus, vem do ouvido e alimenta-se
da oração e das obras da fé.
Autoritarismo. Não creio que o Papa se esteja a distanciar da
sabedoria que perpassa a disciplina eclesial, o direito canónico e a
práxis histórica da Cúria. Tem é de usar o seu poder para purificar a
Igreja de excessos de rigor e de comportamentos que radicam mais nas pequenas tradições
que no Evangelho. É certo que algumas declarações de Francisco parecem
demasiado purgatórias, mas também é verdade que ele se tem rodeado de
conselheiros firmes, mas atentos. Por outro lado, tem incorporado recomendações
várias, como a extensão das 15 doenças à generalidade dos operadores, o
agradecimento mais frequente do que antes aos agentes pastorais e o
reconhecimento de que deve dar mais atenção à classe média.
Populismo da mudança. É óbvio que a invocação da mudança está na moda. Porém, este sucessor de Pedro
tem recordado a si mesmo e aos outros que “as coisas se mudam apenas lentamente”,
sabe que as mudanças não são benéficas só por serem mudanças, mas pela virtude
do seu conteúdo e entende que elas necessitam de paciência e conversão de
mentalidades e de corações. No atinente à popularidade, não parece que o Papa
jogue para a opinião pública, mas aproveita o facto de dispor de uma imprensa
amiga, o que não sucedeu ao seu predecessor imediato. Também não é verdade que
este Papa alimente qualquer ideia “de que a doutrina e a disciplina da Igreja
podem e devem ser adaptadas às opiniões mutáveis da maioria”. Ao invés, tem
apontado o dedo, como o seu antecessor, à ditadura do relativismo e ao culto do
deus-dinheiro. Tal não implica que determinados pontos da disciplina não tenham
de ser modificados para garantir mais evangelho e que devam ser menos
acentuados alguns pontos de doutrina que surgiram para condenar ideais
contrárias ao sentir da Igreja e que hoje não são defendidas.
Falta de “humildade” diante da herança dos
antecessores. Se o comportamento de Bergoglio é percebido como crítica ao modo pelo qual os
antecessores viveram, falaram e agiram, devemos todos cooperar no
esclarecimento de tal postura e não alinhar com tal perceção. Ao invés, o Papa
é pródigo nas referências que faz aos predecessores, mesmo a Bento XVI, que
muitos queriam ver silenciado. E são conhecidos os gestos de amizade ente os
dois. Porém, é óbvio que Francisco, na linha dos antecessores imediatos, deve
repensar o ministério petrino, o que não obsta ao cultivo do enunciado “é preciso que o Cristo cresça e eu diminua”
(Jo 3,30).
Pastoralismo. Também não me agrada que
Francisco mostre a clara opção por ser o
pároco. Porém, julgo que o principal papel do Papa é o de pastor e o de
querer que os bispos e os padres sejam pastores com o odor das ovelhas. Também
não me apraz que ele diga que não é teólogo. Todavia, não duvido da solidez da
sua formação teológica e antropológica e bem sei que nela estriba a fé, a
espiritualidade, a pastoral e a intervenção política. Depois, o autor epistolar
deveria saber que, assim como “nem um papa
nem qualquer outro pastor deve pôr minimamente em dúvida que a Igreja segue a doutrina
de Cristo em tudo o que faz (pastoral, sacramentos, liturgia, catequese, teologia,
caridade…), porque, em última análise, tudo
depende da fé revelada”, também deve saber que uma boa teoria não passa de uma
boa teoria.
Exibição exagerada da simplicidade
do seu estilo de vida. Aqui, parece-me haver algum exagero. Com efeito, pouco importa se o
Papa usa sapato preto ou vermelho, se ele transporta ou não a sua pasta preta
com objetos de uso pessoal, se vive no Palácio Apostólico ou em Santa Marta (ocupa o lugar de 2 clientes), se usa ou não a mozeta papal.
Mas também aqui o Papa não despreza os tesouros que estão à guarda do Vaticano,
declarando que são património da humanidade e que a Igreja tem o dever de zelar
pela sua conservação, manutenção e exposição.
Particularismo. É óbvia a existência da
tentação de subordinar os objetivos da Igreja universal (ou da
comunidade em geral) aos pontos
de vista do indivíduo ou duma parte da comunidade, mesmo que se trate do líder.
E alguns cardeais têm dito que a Igreja não tem de se referenciar apenas no
Papa. Todavia, Francisco tem remado contra a maré e tem promovido a ideia
eficaz de que a Igreja Católica, para lá das diferenças, é “sempre a mesma em
todo o mundo” e tem querido que “os católicos em todos os países vivam, rezem e
pensem de modo similar e, juntos, uns com os outros, correspondam à realidade
global da vida”.
Contínua vontade de espontaneidade. É verdade que “uma falta de profissionalismo não é um sinal da obra do Espírito Santo” (embora o
excesso de profissionalismo também não o seja) e não havia necessidade do uso de expressões como “proliferar como
coelhos” ou “quem sou eu para julgar”, mesmo que em ambiente informal de
conferência de imprensa. Também é temerário criarem-se situações em que “outros
têm de correr a explicar” o que o líder queria realmente dizer. Não obstante, é
de apreciar o tom coloquial com que o Pontífice usa da palavra. Já estávamos
saturados de que nos falassem quotidianamente ex cathedra. No entanto, é oportuno frisar que “agir fora do
programa e fora do protocolo tem os seus tempos e lugares”, sem que se torne a
norma. Trata-se também do devido respeito para com os “colaboradores em Roma e
em todo o mundo”. Para o Papa, “a medida da espontaneidade deve ser mais
cautelosa que a dos demais pastores. Por outro lado, o Papa tem referido que
alguns gestos são espontâneos, mas outros são convenientemente estudados e
preparados.
Falta de clareza sobre a relação
entre liberdade religiosa, política e económica. O autor epistolar pensa
que muitas das declarações
papais, preconizam que “o Estado deveria sempre governar mais, controlar mais e
ser mais responsável, em particular no campo económico e social”. Opina, em
contraponto, que “o facto de que o Estado pode cuidar de tudo é refutado pela
história” e entende que “a Igreja deve defender organizações não governamentais
(ONG) que podem fornecer bens que o Estado não pode
fornecer do mesmo modo” e, “contra a tendência de esperar tudo da parte do
Estado”, sentencia que “a Igreja deve ajudar as pessoas a cuidar da própria
vida”, acautelando que “o estado de bem-estar social também se pode tornar
poderoso demais e, com isso, paternalista, autoritário e não liberal”. Penso
que, neste sentido, o Papa, que se tem notabilizado na exaltação do trabalho
feito pela Igreja e por muitas ONG, mais não tem feito que puxar pelas
responsabilidades dos Estados para com todos, sobretudo para com os mais
esquecidos e que salientar o seu dever/poder moderador contra a ambição do
lucro à custa de tudo e de todos e contra a onda cada vez mais generalizada da
corrupção. Não parece que Francisco tenha incitado ao Estado totalitário ou ao
Estado Liberal, mas tem acentuado o seu poder/dever de regulação. Mais: nem
hostilizou o Estado cubano nem o Estado americano!
Metaclericalismo. De facto, a princípio,
Francisco parecia exigir mais do clero que tornar-se-lhe grato. Porém, o seu
discurso evoluiu com os périplos que tem feito pelo mundo. Por outro lado, tem criticado
um clericalismo mais real do que
imaginário. Tudo depende do que se entende por clericalismo. Se é o facto de os
clérigos se meterem por tudo quanto é sítio ocupando lugares que os leigos bem
podem ocupar, isso é condenável; se querem que os leigos sirvam de padres em
miniatura, isso será desvirtuar tanto o papel do leigo como o do clérigo.
Porém, nem se pode impedir que um clérigo desempenhe o papel de cidadão que lhe
cabe nem se pode dispensar os clérigos de orientarem doutrinal e pastoralmente
a função dos leigos, incitando-os a imiscuírem-se em todos os campos por onde
passa a vida do mundo. Por fim, “os bispos e os sacerdotes precisam de saber
que o Papa está às suas costas quando defendem o Evangelho, no tempo e fora do tempo”. E “não é bom
que algumas pessoas pensem que o Papa vê muitas coisas de um modo diferente do Catecismo, e que outras o imitem para
fazerem carreira neste pontificado”.
***
Com efeito o
Papa, presta um serviço necessário à continuidade e à verdadeira tradição da
Igreja, mas tem de proceder às ruturas que, segundo o seu modo de ver, o
conselho dos colaboradores e a lucidez do Espírito, se lhe afigurem necessárias.
Ele é efetivamente o representante de Cristo e o mestre supremo da nossa fé. E
Cristo manteve e inovou.
Ademais, as ditas
tentações não são exclusivas do ministério papal. Todos as devem ponderar.
2016.01.02 –
Louro de Carvalho
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