Não promoveria a Festa do Avante num contexto de pandemia e numa área
metropolitana que está em situação de contingência. Sei que se trata duma
iniciativa política, mas que não se esgota nessa dimensão e, por outro lado,
dá-se, mal ou bem, ao país a ideia dum regime de exceção. Não obstante, é de
anotar que poucas organizações têm a capacidade de disciplinar eventos como o
PCP e que muitos artistas terão, de 4 a 6 de setembro, na Quinta da Atalaia, no
Seixal, espaço para mostrarem que estão vivos e arrecadarem algumas receitas em
tempo de crise económica para todos, mas em especial para este género de
atividades.
Todavia, sabe-me a hipocrisia tanto alarido criado em torno da festa e,
ultimamente, contra a Direção-Geral da Saúde (DGS). Rui Rio vem exigir que a DGS
publique as regras que determinou para o evento; Marques Mendes reitera a sua
oposição ao evento e compara-o com Fátima a 13 de maio, esquecendo que não são
comparáveis e que aquele evento religioso foi anulado pela própria CEP e pelo
Santuário de Fátima com intenção pedagógica, não pela DGS; e o Presidente da
República veio, a 30 de agosto, lamentar que a DGS, a cinco dias da Festa do Avante, não tenha dado a
conhecer “as regras do jogo” sobre como vão ser implementadas as medidas de
segurança de saúde na festa do PCP.
A posição de
Marcelo merece mais alguma atenção de momento. Disse o Chefe de Estado que
ainda não se conhecia “a posição das autoridades sanitárias sobre as regras que
entendem que devem presidir à [sua] realização”, ou seja, “não há conhecimento
atempado, não há clareza, pois, para haver clareza, é preciso saber quais são
as regras”, não se podendo saber que “há respeito pelo princípio de igualdade em
relação ao que vai acontecer”. E concluiu:
“Acho que isto não é bom. Não é bom para o
Estado. No fundo, a DGS significa Estado. É uma Direção-Geral enquadrada no
Estado.”
Mais disse que esta indefinição de regras não é boa “para quem organiza”,
como, “em geral, para a credibilidade que é fundamental neste momento”. E justifica:
“Estamos no meio de uma pandemia.
Ultimamente os valores têm subido um bocado. Mais do que noutras ocasiões,
impunha-se que se soubessem as regras do jogo com clareza. E que se pudesse
comparar com outras situações. Não é possível. E isso preocupa-me. Não é um bom
augúrio a esta distância.”.
Marcelo, que falou aos jornalistas quando visitava as termas de Monchique,
no Algarve, abordou outros assuntos, como o do corredor aéreo do Governo
britânico para o Algarve, frisando não haver agora “circunstâncias que
justifiquem uma inversão da última decisão, que tem dez dias, do Reino Unido em
relação a Portugal”, pois “não se pode dizer que o número de casos no Algarve
tenha peso significativo no número nacional”.
Sobre as declarações do Primeiro-Ministro Expresso em que pressionou os antigos parceiros da ‘geringonça’ para
um acordo na aprovação do Orçamento de Estado, dizendo que no dia em que a
subsistência do Governo depender do PSD, este executivo acabou, Marcelo atirou:
“Cada um dos políticos tem a sua agenda
mediática, a sua tática. O plano do Presidente é acima disso. E, como o
Presidente tem a faca e o queijo na mão, crise que envolva dissolução não
haverá. Isso depende do Presidente, não depende de mais ninguém.”.
O Presidente não quis falar da sua recandidatura a Belém, nem sobre a
opinião de Costa de que seria “dramático” se Marcelo não se recandidatasse. Apenas
deu a entender que até outubro não avançaria com a recandidatura, pois as
eleições presidenciais só se realizam em janeiro do próximo ano e há uma
pandemia pelo meio.
Considerando que a recandidatura está de vento em popa, cumpre comentar a
questão da DGS.
O Presidente já sabia há muito que a questão da igualdade em relação ao
Avante não se coloca ou fará ruir tudo pela base. Porém, é de relembrar que foi
ele quem, na sua explicação interpretativa aquando da promulgação do diploma
que entre, outras restrições, proibia os festivais, abriu generosamente a porta
para este tipo de eventos. Só que os responsáveis religiosos resolveram não
arriscar e os outros responsáveis políticos também não.
Depois, parece-me nada curial que o titular dum órgão de soberania venha publicamente
criticar um departamento dependente de outro órgão de soberania, departamento
que está a trabalhar em condições muito difíceis, marcadas pelo melindre dos
números e pela síndrome da incerteza. Talvez as pressões presidenciais devessem
ser feitas em privado e junto do Primeiro-Ministro ou junto da DGS. Ademais, as
regras gerais de segurança sanitária são conhecidas de todos, nomeadamente: uso
de máscara, distanciamento físico, lugares marcados, corredores, percursos, ajuntamento
até 20 pessoas no mesmo espaço físico e redução da lotação do espaço a um terço.
E, em pormenor, os organizadores devem-nas patentear no local, sendo que não é
necessário que todo o país (do cima ao fundo) conheça as regras específicas dum evento e que, dada a incerteza da
evolução da pandemia, não era possível defini-las com a desejada antecedência.
***
Entretanto, logo no dia 30, a DGS garantiu que já entregou as suas
recomendações ao PCP e atira para os comunistas a responsabilidade de as
divulgar. Reza o respetivo comunicado:
“A Organização da Festa do Avante solicitou
à Direção-Geral da Saúde (DGS) um parecer técnico para a realização da habitual
Festa do Avante, cuja versão final foi hoje entregue à organização, tal como
estava previamente previsto”.
A DGS justifica o atraso na fixação das regras para o evento com a “multivariedade
da componente social do evento, assim como a participação de cidadãos de várias
gerações”, o que torna a análise mais demorada e complexa que noutros casos. Evoca
as várias reuniões com a organização do Avante para adequar as condições do
evento às medidas de saúde pública e às circunstâncias inerentes ao contexto da
pandemia de covid-19. E adianta que o recinto na Quinta da Atalaia tem “múltiplos
espaços” a que se aplicam regras de restauração, eventos culturais e circulação
de pessoas, sendo necessário que “estejam assegurados todos os aspetos que
permitam salvaguardar não só a saúde dos participantes, mas também da comunidade,
como um todo, uma vez que, epidemiologicamente, cada evento comporta riscos”. E
conclui:
“A multivariedade da componente social do
evento, assim como a participação de cidadãos de várias gerações, faz com que
este seja um evento cuja análise é demorada e mais complexa do que os inúmeros
eventos que a DGS tem analisado. O parecer final, que foi hoje entregue à
Organização da Festa do Avante, condensa toda a informação.”.
Os detalhes
do parecer técnico só poderão ser conhecidos se o Avante (o PCP) os quiser divulgar, já que a DGS afirma que “não
divulgará o conteúdo”. Mas afinal o PCP e a DGS já o fizeram.
Por seu turno, questionado sobre as críticas do Presidente e sobre a
eventualidade da não publicitação das regras a DGS para a Festa do Avante, o
Primeiro-Ministro indicou que as mesmas seriam divulgadas no briefing deste dia 31 de agosto. E
sabe-se que a DGS impôs a redução para metade do número de pessoas presentes em
simultâneo na Quinta da Atalaia. Assim, em vez das 33 mil, estarão apenas pouco
mais de 16 mil presentes em simultâneo.
***
Em todo o caso, sob o espectro da Festa do Avante, mais de 40 comerciantes (agências
imobiliárias, oficinas de automóveis, cabeleireiros, ginásios, restaurantes,
pastelarias e outros) da zona
envolvente à Quinta da Atalaia, na freguesia de Amora (Seixal) vão encerrar os seus estabelecimentos durante a Festa
do Avante, por “precaução” e para “mitigar o risco” de contágio pelo novo
coronavírus. Em declarações à agência Lusa,
Maria Carvalho, responsável (com os filhos, marido e noras) pela cozinha do Restaurante Rota dos Petiscos Terra e
Mar, estabelecimento que deu início ao movimento, no dia 30, disse ter apelado
ao “bom senso dos comerciantes para que encerrassem portas”, entre 4 e 6 de
setembro, dias em que decorre a 44.ª edição da Festa do Avante, dizendo que prefere fechar três dias, ainda que com sacrifício, a fechar três semanas, já que a “movimentação
de pessoas durante ‘o Avante’ envolve toda a freguesia de Amora, e não apenas a
Quinta da Atalaia”, onde decorre o evento anual organizado pelo PCP.
Justificando-se, Maria Carvalho frisou que “esta decisão não tem nenhuma
conotação político-partidária”, pois, como disse, não tem nada contra a Festa
do Avante”; apenas optou por “salvaguardar a família”. E afirmou à Lusa que vários os moradores de Amora ponderam
sair de casa durante os dias da Festa do Avante por não quererem “correr riscos
de saúde pública”.
***
Para lá destas medidas de precaução, após a interposição
duma providência cautelar entrada no tribunal de Setúbal e por este remetida a
Lisboa, onde o PCP tem a sede, mais uma providência cautelar está a ser ponderada, bem como cartas
abertas, discussões entre vereadores e acusações de promiscuidade, abusos e
perseguições. Assim, enquanto o país discute a Festa do Avante, o Seixal
prepara-se para receber os milhares de pessoas que se prevê que visitem a
festa. No município que alberga a Quinta da Atalaia, o clima vai ficando
visivelmente mais tenso à medida que a festa se aproxima. São várias as forças políticas que acusam a Câmara, liderada
por Joaquim Santos, de prestar informações insuficientes sobre o megaevento ou
de, por preferência partidária, favorecer a rentrée do PCP.
Depois de Carlos Valente, empresário com ligações antigas ao
PSD, ter interposto, na semana passada, uma providência cautelar para travar o
evento, Paulo Edson, antigo candidato autárquico e ex-vereador do PSD, confirmou
ao Expresso estar a ponderar tomar análoga
medida, caso esta providência seja indeferida, apontando:
“É escandaloso fazerem a festa. Este ano,
isto representa um perigo para qualquer cidadão do Seixal, com tanta gente a
vir de fora”.
Por isso, na carta, lembra a sua experiência como vereador da
Proteção Civil (pelouro
que tinha a responsabilidade de aplicar os planos de segurança da festa) e promete que, se o número local de
casos se agravar nas semanas seguintes, tomará a iniciativa de apresentar “uma
queixa-crime contra os responsáveis por esta festa, pelo crime de propagação de
doença”.
E a polémica sobre a Festa do Avante tem aquecido as reuniões
de Câmara há meses, com os vereadores socialistas a acusar o presidente,
comunista, de promiscuidade com os organizadores da festa e este a sentir a perseguição
reacionária, que está no centro da argumentação comunista.
As críticas são feitas à dimensão da rentrée, semelhante à dum grande festival de verão. Mas este ano as
atenções estarão viradas para o conteúdo político da festa: o PCP terá um
congresso em novembro, sem quebrar para já o tabu sobre a saída ou a
permanência de Jerónimo de Sousa como secretário-geral, e prometeu anunciar o
nome do candidato presidencial em setembro. E o comício de encerramento da
festa, tradicionalmente o momento que marca o início do ano político do PCP,
acontecerá dias depois de os comunistas terem adiado uma reunião com o PS a
propósito do OE-2021. Com mais ou menos gente, política não faltará ao Avante.
***
A festa faz-se. A discordância é legítima e pertinente, mas as
pedradas às instituições não o são. E não vale a pena perder a cabeça por causa
disto. Há tantos problemas a discutir e a resolver!
2020.08.31 – Louro
de Carvalho