segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A realização da Festa do Avante continua na berlinda

 

Não promoveria a Festa do Avante num contexto de pandemia e numa área metropolitana que está em situação de contingência. Sei que se trata duma iniciativa política, mas que não se esgota nessa dimensão e, por outro lado, dá-se, mal ou bem, ao país a ideia dum regime de exceção. Não obstante, é de anotar que poucas organizações têm a capacidade de disciplinar eventos como o PCP e que muitos artistas terão, de 4 a 6 de setembro, na Quinta da Atalaia, no Seixal, espaço para mostrarem que estão vivos e arrecadarem algumas receitas em tempo de crise económica para todos, mas em especial para este género de atividades.

Todavia, sabe-me a hipocrisia tanto alarido criado em torno da festa e, ultimamente, contra a Direção-Geral da Saúde (DGS). Rui Rio vem exigir que a DGS publique as regras que determinou para o evento; Marques Mendes reitera a sua oposição ao evento e compara-o com Fátima a 13 de maio, esquecendo que não são comparáveis e que aquele evento religioso foi anulado pela própria CEP e pelo Santuário de Fátima com intenção pedagógica, não pela DGS; e o Presidente da República veio, a 30 de agosto, lamentar que a DGS, a cinco dias da Festa do Avante, não tenha dado a conhecer “as regras do jogo” sobre como vão ser implementadas as medidas de segurança de saúde na festa do PCP.

A posição de Marcelo merece mais alguma atenção de momento. Disse o Chefe de Estado que ainda não se conhecia “a posição das autoridades sanitárias sobre as regras que entendem que devem presidir à [sua] realização”, ou seja, “não há conhecimento atempado, não há clareza, pois, para haver clareza, é preciso saber quais são as regras”, não se podendo saber que “há respeito pelo princípio de igualdade em relação ao que vai acontecer”. E concluiu:

Acho que isto não é bom. Não é bom para o Estado. No fundo, a DGS significa Estado. É uma Direção-Geral enquadrada no Estado.

Mais disse que esta indefinição de regras não é boa “para quem organiza”, como, “em geral, para a credibilidade que é fundamental neste momento”. E justifica:

Estamos no meio de uma pandemia. Ultimamente os valores têm subido um bocado. Mais do que noutras ocasiões, impunha-se que se soubessem as regras do jogo com clareza. E que se pudesse comparar com outras situações. Não é possível. E isso preocupa-me. Não é um bom augúrio a esta distância.”.

Marcelo, que falou aos jornalistas quando visitava as termas de Monchique, no Algarve, abordou outros assuntos, como o do corredor aéreo do Governo britânico para o Algarve, frisando não haver agora “circunstâncias que justifiquem uma inversão da última decisão, que tem dez dias, do Reino Unido em relação a Portugal”, pois “não se pode dizer que o número de casos no Algarve tenha peso significativo no número nacional”.

Sobre as declarações do Primeiro-Ministro Expresso em que pressionou os antigos parceiros da ‘geringonça’ para um acordo na aprovação do Orçamento de Estado, dizendo que no dia em que a subsistência do Governo depender do PSD, este executivo acabou, Marcelo atirou:

Cada um dos políticos tem a sua agenda mediática, a sua tática. O plano do Presidente é acima disso. E, como o Presidente tem a faca e o queijo na mão, crise que envolva dissolução não haverá. Isso depende do Presidente, não depende de mais ninguém.”.

O Presidente não quis falar da sua recandidatura a Belém, nem sobre a opinião de Costa de que seria “dramático” se Marcelo não se recandidatasse. Apenas deu a entender que até outubro não avançaria com a recandidatura, pois as eleições presidenciais só se realizam em janeiro do próximo ano e há uma pandemia pelo meio.

Considerando que a recandidatura está de vento em popa, cumpre comentar a questão da DGS.

O Presidente já sabia há muito que a questão da igualdade em relação ao Avante não se coloca ou fará ruir tudo pela base. Porém, é de relembrar que foi ele quem, na sua explicação interpretativa aquando da promulgação do diploma que entre, outras restrições, proibia os festivais, abriu generosamente a porta para este tipo de eventos. Só que os responsáveis religiosos resolveram não arriscar e os outros responsáveis políticos também não.

Depois, parece-me nada curial que o titular dum órgão de soberania venha publicamente criticar um departamento dependente de outro órgão de soberania, departamento que está a trabalhar em condições muito difíceis, marcadas pelo melindre dos números e pela síndrome da incerteza. Talvez as pressões presidenciais devessem ser feitas em privado e junto do Primeiro-Ministro ou junto da DGS. Ademais, as regras gerais de segurança sanitária são conhecidas de todos, nomeadamente: uso de máscara, distanciamento físico, lugares marcados, corredores, percursos, ajuntamento até 20 pessoas no mesmo espaço físico e redução da lotação do espaço a um terço. E, em pormenor, os organizadores devem-nas patentear no local, sendo que não é necessário que todo o país (do cima ao fundo) conheça as regras específicas dum evento e que, dada a incerteza da evolução da pandemia, não era possível defini-las com a desejada antecedência.       

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Entretanto, logo no dia 30, a DGS garantiu que já entregou as suas recomendações ao PCP e atira para os comunistas a responsabilidade de as divulgar. Reza o respetivo comunicado:

A Organização da Festa do Avante solicitou à Direção-Geral da Saúde (DGS) um parecer técnico para a realização da habitual Festa do Avante, cuja versão final foi hoje entregue à organização, tal como estava previamente previsto”.

A DGS justifica o atraso na fixação das regras para o evento com a “multivariedade da componente social do evento, assim como a participação de cidadãos de várias gerações”, o que torna a análise mais demorada e complexa que noutros casos. Evoca as várias reuniões com a organização do Avante para adequar as condições do evento às medidas de saúde pública e às circunstâncias inerentes ao contexto da pandemia de covid-19. E adianta que o recinto na Quinta da Atalaia tem “múltiplos espaços” a que se aplicam regras de restauração, eventos culturais e circulação de pessoas, sendo necessário que “estejam assegurados todos os aspetos que permitam salvaguardar não só a saúde dos participantes, mas também da comunidade, como um todo, uma vez que, epidemiologicamente, cada evento comporta riscos”. E conclui:

A multivariedade da componente social do evento, assim como a participação de cidadãos de várias gerações, faz com que este seja um evento cuja análise é demorada e mais complexa do que os inúmeros eventos que a DGS tem analisado. O parecer final, que foi hoje entregue à Organização da Festa do Avante, condensa toda a informação.”.

Os detalhes do parecer técnico só poderão ser conhecidos se o Avante (o PCP) os quiser divulgar, já que a DGS afirma que “não divulgará o conteúdo”. Mas afinal o PCP e a DGS já o fizeram.

Por seu turno, questionado sobre as críticas do Presidente e sobre a eventualidade da não publicitação das regras a DGS para a Festa do Avante, o Primeiro-Ministro indicou que as mesmas seriam divulgadas no briefing deste dia 31 de agosto. E sabe-se que a DGS impôs a redução para metade do número de pessoas presentes em simultâneo na Quinta da Atalaia. Assim, em vez das 33 mil, estarão apenas pouco mais de 16 mil presentes em simultâneo.  

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Em todo o caso, sob o espectro da Festa do Avante, mais de 40 comerciantes (agências imobiliárias, oficinas de automóveis, cabeleireiros, ginásios, restaurantes, pastelarias e outros) da zona envolvente à Quinta da Atalaia, na freguesia de Amora (Seixal) vão encerrar os seus estabelecimentos durante a Festa do Avante, por “precaução” e para “mitigar o risco” de contágio pelo novo coronavírus. Em declarações à agência Lusa, Maria Carvalho, responsável (com os filhos, marido e noras) pela cozinha do Restaurante Rota dos Petiscos Terra e Mar, estabelecimento que deu início ao movimento, no dia 30, disse ter apelado ao “bom senso dos comerciantes para que encerrassem portas”, entre 4 e 6 de setembro, dias em que decorre a 44.ª edição da Festa do Avante, dizendo que prefere fechar três dias, ainda que com sacrifício, a fechar três semanas, já que a “movimentação de pessoas durante ‘o Avante’ envolve toda a freguesia de Amora, e não apenas a Quinta da Atalaia”, onde decorre o evento anual organizado pelo PCP.

Justificando-se, Maria Carvalho frisou que “esta decisão não tem nenhuma conotação político-partidária”, pois, como disse, não tem nada contra a Festa do Avante”; apenas optou por “salvaguardar a família”. E afirmou à Lusa que vários os moradores de Amora ponderam sair de casa durante os dias da Festa do Avante por não quererem “correr riscos de saúde pública”.

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Para lá destas medidas de precaução, após a interposição duma providência cautelar entrada no tribunal de Setúbal e por este remetida a Lisboa, onde o PCP tem a sede, mais uma providência cautelar está a ser ponderada, bem como cartas abertas, discussões entre vereadores e acusações de promiscuidade, abusos e perseguições. Assim, enquanto o país discute a Festa do Avante, o Seixal prepara-se para receber os milhares de pessoas que se prevê que visitem a festa. No município que alberga a Quinta da Atalaia, o clima vai ficando visivelmente mais tenso à medida que a festa se aproxima. São várias as forças políticas que acusam a Câmara, liderada por Joaquim Santos, de prestar informações insuficientes sobre o megaevento ou de, por preferência partidária, favorecer a rentrée do PCP.

Depois de Carlos Valente, empresário com ligações antigas ao PSD, ter interposto, na semana passada, uma providência cautelar para travar o evento, Paulo Edson, antigo candidato autárquico e ex-vereador do PSD, confirmou ao Expresso estar a ponderar tomar análoga medida, caso esta providência seja indeferida, apontando:

É escandaloso fazerem a festa. Este ano, isto representa um perigo para qualquer cidadão do Seixal, com tanta gente a vir de fora”.

Por isso, na carta, lembra a sua experiência como vereador da Proteção Civil (pelouro que tinha a responsabilidade de aplicar os planos de segurança da festa) e promete que, se o número local de casos se agravar nas semanas seguintes, tomará a iniciativa de apresentar “uma queixa-crime contra os responsáveis por esta festa, pelo crime de propagação de doença”.

E a polémica sobre a Festa do Avante tem aquecido as reuniões de Câmara há meses, com os vereadores socialistas a acusar o presidente, comunista, de promiscuidade com os organizadores da festa e este a sentir a perseguição reacionária, que está no centro da argumentação comunista.

As críticas são feitas à dimensão da rentrée, semelhante à dum grande festival de verão. Mas este ano as atenções estarão viradas para o conteúdo político da festa: o PCP terá um congresso em novembro, sem quebrar para já o tabu sobre a saída ou a permanência de Jerónimo de Sousa como secretário-geral, e prometeu anunciar o nome do candidato presidencial em setembro. E o comício de encerramento da festa, tradicionalmente o momento que marca o início do ano político do PCP, acontecerá dias depois de os comunistas terem adiado uma reunião com o PS a propósito do OE-2021. Com mais ou menos gente, política não faltará ao Avante.

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A festa faz-se. A discordância é legítima e pertinente, mas as pedradas às instituições não o são. E não vale a pena perder a cabeça por causa disto. Há tantos problemas a discutir e a resolver!

2020.08.31 – Louro de Carvalho

domingo, 30 de agosto de 2020

Cristo continuará a usar de paciência com os membros da sua Igreja

 Quem diria que o Simão Pedro que, na passagem evangélica lida no XXI domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 16,13-20), confessou resolutamente, em nome de todos, que Jesus “é o Messias, o Filho do Deus vivo” – vindo a receber a aprovação de Jesus e a promessa de que naquela pedra constituiria a Igreja e disporia do poder das chaves –, na perícopa seguinte (Mt 16,21-27), havia de tentar dissuadir o Mestre do núcleo basilar do seu ser e missão messiânicos?

Estas duas perícopas formam uma preciosa unidade, porquanto a primeira, que representa um percurso pedagógico a partir do “diz-se” e do “eu digo” para a profissão da fé messiânica e a génese fundacional da Igreja, termina com o recado de Jesus aos discípulos de que não dissessem a ninguém que Ele é o Cristo (hína mêdenì hóti autòs estín ho Khristós). E, na segunda, o Messias, autorrevelado aos discípulos, mas oculto em relação às multidões, marca a agenda comum da subida a Jerusalém para ali consumar a missão messiânica: a paixão e ressurreição. Com efeito, a fé em Cristo tem de nos aproximar do mistério da cruz e ressurreição e fazer-nos participantes deste mistério, bem como nas consequências que ele traz para a vida do mundo.

Continuamos nos colóquios de Jesus a sós com os discípulos, longe da vista das multidões e tendo os líderes judaicos tomado a decisão de eliminar fisicamente Jesus.

Não podemos olvidar que Mateus se dirige a comunidades cristãs do final do século I (anos 80/90) instaladas, que já esqueceram o fervor inicial e se acomodaram num cristianismo morno. Ora, com a aproximação de tempos difíceis (estão no horizonte próximo as grandes perseguições do final do século I), devem os crentes recordar que o caminho cristão não é fácil, mas percorrido entre êxitos e aplausos, um caminho difícil que exige diariamente a entrega e o dom da vida.

Na perícopa evangélica ora em questão, veem-se dois momentos. No primeiro (vv 21-23), Jesus anuncia aos discípulos a sua paixão; no segundo (vv 24-28), apresenta uma instrução sobre o significado e as exigências do discipulado.  

 “Começou a mostrar aos seus discípulos que é necessário (deî) que Ele vá para Jerusalém, sofra muito da parte dos anciãos e dos sumo-sacerdotes e dos escribas, seja morto, e ressuscite ao terceiro dia”. Comentando o versículo, Dom António Couto sublinha que “este ‘deî implica necessidade divina ou teológica”, a que o Messias não pode furtar-se.

Mais uma vez Pedro sente a obrigação de intervir: agora não a contento de Jesus, mas em oposição. Escutando estes dizeres impensáveis de Jesus, chamou à parte e começou a recriminá-lo: “Isso não te há de acontecer(híleôs soi, Kýrie, ou mê éstai soi toûto – Mt 16,21). Simão, na sua determinação momentânea e inconsistência habitual, desdiz a confissão de fé que fez em Cesareia de Filipe, ou seja, mostra não ter assumido as suas palavras de então como provindas, por graça, do Pai, mas como sua produção própria no quadro da sua cultura e religiosidade radicadas na corrente da tradição religiosa judaica, que apontava para a espera de um Messias eminentemente político, com o eclipsamento do servo sofrente descrito pelo profeta Isaías.  

A previsão de que o caminho para a ressurreição passa pelo sofrimento e pela morte na cruz não é uma previsão arriscada, mas certa: efetivamente, depois do confronto de Jesus com os líderes judeus e de estes terem rejeitado de forma absoluta a proposta do Reino que Jesus apresenta, é óbvio que o judaísmo medita a eliminação física de Jesus, facto de que Jesus tem plena consciência. Não obstante, não se demite do projeto do Reino e anuncia que vai prosseguir, até ao fim, nos planos do Pai. Pedro, em desacordo, opõe-se decididamente a que Jesus caminhe em direção ao seu destino de cruz. A oposição de Pedro e dos discípulos (Pedro é o porta-voz do colégio discipular) significa que a sua compreensão do mistério de Jesus é muito imperfeita. Para ele, a missão do “Messias, Filho de Deus” é uma missão gloriosa e vencedora; e, na sua lógica – que é a lógica do mundo – a vitória não pode estar na cruz e na dádiva generosa da vida.

E aqui Jesus responde a Pedro com este duríssimo corretivo: “Vai para trás de mim (hýpage opísô mou), Satanás. És uma pedra de tropeço (skándalon, escândalo) para mim, porque não pensas as coisas de Deus, mas as coisas dos humanos” (Mt 16,23). Esta frase denota o sentido originário de ‘escândalo’ como empecilho. Por outro lado, como refere Dom António Couto, “atrás de mim” é o lugar do discípulo, o lugar para que Pedro foi chamado e que deve ocupar. Em português corrente, diríamos: “Põe-te no teu lugar”. Ou: “Cresce e aparece”. Na verdade, não cabe ao remendão apreciar a estátua para cima da chinela. Efetivamente, Jesus chamou Pedro e André com as seguintes palavras: “Vinde atrás de mim(deûte opísô mou Mt 4,19). Portanto, Pedro deve seguir atrás de Jesus (como o cireneu – Lc 23,26), e não pôr-se à sua frente a barrar-lhe o caminho. Não convém tentar que Jesus siga as ideias que Pedro colheu sobre o Cristo na tradição cultural e religiosa. O apelativo “Satanás” tem aqui o significado hebraico de “separador” e “adversário”.

Num segundo momento, Jesus apresenta uma instrução sobre as atitudes do discípulo. Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de “renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e seguir Jesus no seu caminho de amor, entrega e dom da vida.

Renunciar a si mesmo significa abandonar o seu egoísmo e autossuficiência para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado em si, preocupado apenas em concretizar os seus sonhos pessoais e projetos de riqueza, segurança, bem-estar, domínio, êxito, triunfo. Deve, antes, fazer da sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos. Só assim poderá ser discípulo de Jesus e integrar a comunidade do Reino. A cruz, que é a expressão de um amor total, radical, que se dá até à morte, significa a entrega da própria vida por amor e, nessa medida, passa de instrumento de suplício a troféu de vitória. Tomar a cruz é, pois, ser capaz de gastar a vida – de forma total e completa – por amor a Deus e para felicidade dos irmãos.

Porém, em nome dos nossos princípios cómodos adquiridos, ignoramos ou não queremos saber da graça de Deus que nos indica outros rumos. Por isso, o texto prossegue no mesmo tom determinado, com Jesus a dizer aos seus discípulos que, para O seguirem, têm que dizer não a si mesmos (aparnéomai) e carregar a cruz todos os dias, perder a vida para a ganhar. Dizer não a si mesmos e seguir Jesus implica pôr a confiança em Jesus, e não nos bens, que nos bradam todos os dias. “Perder a vida por causa de mim(Mt 16,25): Perder a vida deste modo é perder-se nos caminhos de Jesus, “imitando-o verdadeiramente, e não segui-Lo só com os pés” (palavras de Erasmo de Roterdão – 1469-1536. Apud António Couto, Jornal da Madeira, de 30 de agosto).

No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões por que devem abraçar a “lógica da cruz” (Mt 16, 25-27). Em primeiro lugar, convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la, pois quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos não fracassa, mas ganha a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive consoante as suas propostas. Em segundo lugar, os discípulos são convidados a perceber que a vida que gozam neste mundo não é a vida definitiva. Não devem, portanto, preocupar-se em preservá-la a qualquer custo, mas procurar encontrar, aqui e agora, essa vida definitiva que passa pelo amor total e pelo dom a Deus e aos outros. É essa a grande meta que todos devem procurar alcançar. E, em terceiro lugar, os discípulos devem pensar no seu encontro final com Deus, em que Deus lhes dará a recompensa: “O Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus Anjos, e então dará a cada um segundo as suas obras(Mt 16,27). Esta alusão ao momento do juízo não é rara em Mateus, que recorre, com alguma frequência, a esta motivação para fundamentar as exigências éticas da vida cristã.

Com razão Jesus ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que Ele era o Cristo. Pedro dissera-o. Mas, fosse qual fosse a ideia que Pedro tivesse de Cristo, nela não cabia o sofrimento, a rejeição, a morte, a ressurreição, e muito menos a adesão pessoal de Pedro a um Cristo como este. Pedro pensava que o Messias vinha para triunfar, ter sucesso, estabelecer um mundo de excelência para os judeus, libertando-os dos seus adversários. Findariam todas as necessidades, discórdias e disputas, a guerra, a doença e a velhice, tudo o que perturba e diminui os níveis da nossa vida. Viria a plenitude da vida. Assim, Pedro e os discípulos seguiam Jesus, mas não por andarem à procura de novas ideias religiosas ou encontrar novas formas de orar. Portanto, se os discípulos de Jesus fossem dizer que Ele era o Cristo, o que diriam era o que pensavam e que os circunstantes perceberiam. Criariam uma falsa onda de entusiasmo popular.

Ora, o caminho de Jesus é paradoxal e provocatório. Pedro demorou tempo a percebê-lo e equivocou-se várias vezes. Não queria que Jesus lhe lavasse os pés. No horto, alegadamente para defender o Mestre, cortou uma orelha ao criado do Sumo-sacerdote, negou Cristo, chorou e fugiu. Mas, como diz Dom António Couto, “atingido em cheio pela graça, seguiu Jesus apaixonadamente até ao sangue, não apenas com os pés”. Enfim, acabou por se deixar seduzir pelo Senhor como Jeremias e, a instâncias de Jesus, formulou a tríplice confissão de amor, a partir da qual ganhou a incumbência do pastoreio e de seguir Jesus até ao fim (cf Jo 21,15-23). Com efeito, Jeremias (vd Jr 20,7-9), olhando para o seu percurso de vida, confessa que foi irresistivelmente seduzido pelo seu Deus, para o acusar, no limite da blasfémia, de velhacaria e engano, pois o abandonou à sua sorte, pondo-lhe na boca palavras violentas e deixando-o à mercê dos opressores, que zombavam dele e o torturavam sem cessar. Jeremias confessa-se desanimado e tentado a abandonar a sua missão. Porém, a Palavra de Deus volta a assaltá-lo como fogo, uma lava ardente a que não se pode fugir, pois arde dentro de nós.

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O que sucedeu com Pedro aconteceu ao longo da História da Igreja (e continua a acontecer), onde campeiam, tantas vezes, ideias pessoais e de grupo, em lugar da nudez evangélica e seus apelos. Daí as heresias e os cismas; daí o clericalismo e o carreirismo; daí a luta e a liderança do poder ou a aliança com ele; daí a acumulação das riquezas a eclipsar a pobreza evangélica; daí os protagonismos queridos, procurados e impostos; daí o empilhamento de normas jurídicas, ritualismos e imposições morais sobre os ombros dos crentes, depauperando a ação pastoral e olvidando o essencial da Boa Nova; daí a colagem nas dioceses e paróquias; daí o relevo à palavra gongórica do pregador em detrimento da Palavra de Deus; daí a Igreja-Estado a sobrepor-se à Igreja-serviço-comunidade-comunhão; daí, em termos pessoais, tanto pecado, egoísmo e participação nas estruturas económicas, sociais e políticas de pecado, com grave divórcio entre a vida e a fé! Por isso, é pertinente que Jesus pacientemente diga à Igreja e aos seus membros que se ponham atrás dele e não queiram atravessar-se à sua frente nem superá-Lo em altura, comprimento, largura e profundidade. Que nos corrija com a sua grande paciência.

2020.08.30 – Louro de Carvalho


sábado, 29 de agosto de 2020

Escolas podem reabrir, mas teletrabalho deve continuar

 

Como refere a edição online do Dinheiro Vivo, deste dia 29 de agosto, o ECDC (Centro Europeu para Prevenção e Controlo das Doenças) – sediado na Suécia, com a missão de ajudar os países europeus a dar resposta a surtos de doenças –, considera que as escolas podem reabrir em setembro na Europa, pois não se registaram nelas muitos surtos, mas aconselha as empresas a manterem o teletrabalho. E Piotr Kramarz, seu chefe-adjunto do programa de doenças, disse, em entrevista à Lusa, que, “tendo em conta os dados disponíveis, as crianças e as escolas não são as maiores fontes de propagação desta pandemia”.

No entanto, o cientista sugere a adoção de algumas medidas, “que devem ser coerentes com as restantes regras da comunidade, como tentar aumentar o distanciamento físico entre alunos”.

Estando vários países europeus, incluindo Portugal, a preparar o regresso físico às aulas e ao trabalho presencial, que estiveram substituídos por trabalho à distância durante vários meses devido às regras de contenção mercê da covid-19, Kramarz defende que “o teletrabalho é uma medida que deve continuar a ser considerada nos próximos tempos”, sobretudo “agora que estamos a assistir a aumentos nos números”.

Porém, Kramarz sustenta que é diferente a situação dos estabelecimentos de ensino, pois, como observa, “embora haja bastante incógnitas, não houve muitos surtos em escolas, talvez porque as crianças não ficam frequentemente doentes”, o que mostra que “esta não é a maior fonte de propagação da pandemia e, por outro lado, fechar as escolas teve graves consequências no desenvolvimento das crianças, não só em termos de aprendizagem, mas também na dimensão social”. Por isso, adverte para o cumprimento de algumas regras que passam, além do máximo distanciamento físico possível, pela introdução de “horários específicos [para cada ano] para que as aulas não terminem ao mesmo tempo e o intervalo também não seja ao mesmo tempo”. Diz que “algumas escolas estão a pensar apelar a que os alunos almocem no exterior, se o tempo assim o permitir”. E, no atinente à proteção individual, frisa que “tem de haver materiais para a frequente higienização das mãos” nas salas de aula, salientando que poderá ser considerada a imposição de máscaras faciais para os estudantes mais velhos, como especifica:

O tempo também demonstrou a eficácia das máscaras faciais em evitar a propagação do vírus, mas esse é um desafio nas escolas. Há países que estão a considerar a imposição de máscaras nalguns locais das escolas, mas talvez não para os mais pequenos, mais para os mais velhos e para os funcionários e professores”.

Contudo, apesar de considerar que, adotando estas medidas, “as escolas não serão a maior origem de propagação”, assegura a constante atenção do ECDC.

Já no respeitante aos restantes locais de trabalho, nomeadamente escritórios, Kramarz entende que se torna mais difícil “aumentar o distanciamento físico”, pelo que sugere a manutenção do trabalho remoto (impossível na agricultura e pecuária). Todavia, pondera contextualizando:

Mas claro que depende muito das condições em que as pessoas trabalham […]. No caso das fábricas, [depende] se existe uma ventilação eficaz nos locais de trabalho. E depende de qual é a situação dos transportes públicos em autocarros, metro, etc., [na deslocação para o (e do) trabalho], tudo isto tem de ser tido em conta.”.

No entanto, insiste:

Consideramos o teletrabalho como uma opção que deve continuar a ser usada para reduzir a transmissão”.

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Já a FENPROF, considerando que todos defendem ensino presencial, mas o Governo não parece interessado em garantir as condições necessárias, aponta o dedo ao ME e à DGS que persistem em desvalorizar preocupações e ignorar pedidos de reunião, pelo que  irá expor a situação à AR (Assembleia da República), organizações internacionais e, se necessário, recorrer aos tribunais. A esse propósito, nos primeiros dias de setembro reunirão os órgãos de direção da FENPROF para decidir a abordagem ao início das aulas, caso continuem por garantir as adequadas condições de prevenção e segurança sanitária e os docentes de grupo de risco não sejam protegidos. 

Efetivamente, a FENPROF tem instado com a Diretora-Geral da Saúde e os responsáveis do ME para uma reunião com vista à discussão e revisão de algumas orientações sobre medidas de segurança sanitária enviadas às escolas em julho. Isto, a par da recusa de soluções pretendidas pelas escolas, como o regime duplo para o 1.º CEB, que obrigaria a maior despesa na organização duma resposta social, com atividades seguras de ocupação do tempo livre na outra parte do dia. Insiste na necessidade de rastreio prévio à covid-19, envolvendo toda a população escolar, e da garantia do distanciamento físico em sala de aula, o que obriga à constituição de pequenos grupos de alunos, como recomenda a DGS. E considera necessária a revisão da idade a partir da qual é obrigatório o uso de máscara em espaço fechado, (os estudos dão conta dos níveis infeciosos que podem atingir as crianças) e a definição das medidas de proteção de docentes que integram grupos de risco, bem como de alunos e trabalhadores não docentes.

Porém, a DGS e o ME opta por não responder aos insistentes pedidos de reunião, limitando-se alguns responsáveis do Governo a afirmar que as escolas não são local de contágio e que as medidas previstas são suficientes para garantir o regresso ao ensino presencial. Ao invés de procederem de modo responsável dialogando, ouvindo preocupações e corrigindo medidas, preferem fechar-se sobre si mesmos, ignorando estudos mais antigos, como o divulgado pelo Washington Post, ou recentes, como o de investigadores do Hospital Pediátrico e do Hospital Geral de Massachusetts, que sustenta que as crianças têm um papel muito mais relevante do que se pensava na propagação da covid. E não parecem atentos ao que sucede noutros países, como a Alemanha, nem parecem atender às preocupações e recomendações da OMS. 

Há muito tempo a FENPROF vem manifestando preocupações em relação às normas divulgadas pelo ME sobre a organização do próximo ano letivo, pelo que, desde o início de julho, tenta reunir com a DGS e com responsáveis do ME, a propósito das condições de segurança sanitária previstas para o funcionamento das escolas, mas sem êxito, apesar de o Secretário de Estado Adjunto e da Educação ter assumido, a 24 de junho, que seria marcada nova reunião sobre o tema e de, um mês depois (24 de julho), a DGS ter informado que marcaria reunião. E refere que “são a falta de condições de segurança sanitária e a fuga ao diálogo que, por exemplo, em Espanha, já levaram as organizações sindicais de docentes a convocar greve para a abertura do ano letivo e, em outros países, estão a merecer forte contestação, expressa em tomadas de posição, protestos e recursos à justiça”. 

Por isso, insistiu a 21 de agosto, junto da DGS e do ME, para que se realizem as reuniões pretendidas. E garante que, a confirmar-se que essas entidades se recusam a dialogar, as preocupações de professores e educadores seriam expostas junto de todos os grupos parlamentares, a quem se solicitaria a iniciativa de assegurar o que o Governo não garantiu. Além disso, manifestará, junto de OMS, OIT, UNESCO, Internacional de Educação e OCDE, as suas preocupações e denunciará a postura dos governantes, contrária ao interesse de saúde pública e violadora dos princípios de diálogo social, interesse e princípios defendidos por aquelas organizações. E recorrerá aos tribunais, caso se justifique pela insuficiência das medidas tomadas que origine eventuais problemas de saúde e vida dos professores. 

Com efeito, “o regresso tranquilo e em segurança ao ensino presencial é muito importante”, embora, apesar do discurso, pareça “não ser essa a intenção dos governantes, pois as medidas que preveem são frouxas e não garantem as condições de segurança sanitária indispensáveis”.

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Por sua vez, a FNE (Federação Nacional da Educação) exige ao Governo confiança nas escolas e seus profissionais e pede condições sanitárias, materiais e humanas para retomar as aulas presenciais. E, querendo que o impacto do encerramento das escolas seja devidamente avaliado, observa:

É essencial retomar a escola presencial e que ela possa abranger todos os alunos. Não podemos prolongar por mais tempo este distanciamento das crianças e dos jovens em relação ao ambiente escolar, aos seus professores, aos seus colegas.”.

Por isso, pedindo atenção a estes aspetos, exige ao Governo confiança na comunidade escolar e todas as condições para que as aulas presenciais comecem a partir de setembro. E promete verificar, no início do ano letivo, se o número de docentes e não docentes, como psicólogos e assistentes operacionais, é adequado ou insuficiente.

Referindo que é necessário alargar o tempo de funcionamento da escola, retirar das salas de aula mobiliário dispensável, clarificar o distanciamento físico mínimo, organizar e definir os movimentos no espaço escolar, arejar as salas com frequência, atribuir duas máscaras por dia a cada professor e restantes profissionais, alterar os horários das cantinas e implementar o take-away, rever os horários dos transportes escolares, determinar regras especiais na utilização dos equipamentos informáticos, musicais e desportivos, bem como nos desportos que implicam contacto, define oito eixos que devem ser tidos em consideração na preparação do próximo ano letivo, a começar pela aposta na autonomia da escola, dando-lhe acesso aos recursos indispensáveis a vários níveis, seja para proteger a saúde, seja para garantir medidas de apoio essenciais. Depois, vêm a flexibilidade no desenvolvimento curricular e organização pedagógica da escola, a confiança nos profissionais do setor, dar tempo e condições adequadas para a formação tecnológica dos professores, como outros pontos considerados fundamentais.

Mais refere a FNE que é preciso, no início do ano, identificar fragilidades detetadas e acumuladas, superar obstáculos, recuperar o ritmo do processo de ensino-aprendizagem. E diz:

Estas medidas não se compadecem com prazos estabelecidos administrativamente, como o Ministério da Educação quer fazer crer ao determinar que as primeiras cinco semanas do novo ano letivo servirão para a sua concretização. (…) A ação pedagógica tem as suas especificidades e não se resume a orientações burocráticas.”.

Professores e alunos devem ter equipamentos informáticos para o ensino à distância, as férias dos docentes e não docentes devem ser inteiramente respeitadas e a escola deve ter condições físicas e materiais para a proteção da saúde de todos e todos os que pertençam a grupos de risco devem ter essa situação acautelada. Devem ser realizados “testes serológicos e de diagnóstico a docentes e não docentes ao longo do ano e, além das medidas sanitárias, são necessárias “medidas de ordem educativa, medidas sobre gestão dos recursos humanos e materiais e também medidas organizacionais” – devendo em cada escola os profissionais adaptar tais medidas à sua realidade concreta “em diálogo com as respetivas comunidades, no quadro genérico que deve ser estabelecido centralmente”.

Em setembro, a FNE lançará três manifestos para melhoria do sistema educativo e valorização dos docentes e pessoal não docente; no 1.º período, promoverá consulta nacional sobre o ensino à distância e teletrabalho no setor educativo para apresentar propostas ao Governo. Até fins de outubro, fará um estudo sobre a situação dos trabalhadores não docentes. E até ao fim do ano, marcará evento comemorativo do 30.º aniversário do Estatuto da Carreira Docente.

2020.08.29 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A LOL e os Grupos de Cidadãos Eleitores

 

Entrou em vigor, no passado dia 24, a Lei Orgânica n.º 1-A/2020, de 21 de agosto, que procede à 9.ª alteração à Lei Orgânica (LOL) n.º 1/2001, de 14 de agosto, que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, alterada pelas Leis Orgânicas n.os 5-A/2001, de 26 de novembro, 3/2005, de 29 de agosto, 3/2010, de 15 de dezembro, e 1/2011, de 30 de novembro, pela Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho, e pelas Leis Orgânicas n.os 1/2017, de 2 de maio, 2/017, de 2 de maio, e 3/2018, de 17 de agosto.

O pressente diploma reformula o texto em torno das seguintes inelegibilidades:

- Os membros dos corpos sociais, os gerentes e os sócios de indústria ou de capital de sociedades comerciais ou civis, bem como os profissionais liberais em prática isolada ou em sociedade irregular que prestem serviços ou tenham contrato com a autarquia não integralmente cumpridos ou de execução continuada, salvo se os mesmos cessarem até ao momento da entrega da candidatura (art.º 7.º, n.º 2, al. c);

- Nenhum cidadão pode candidatar-se simultaneamente: a) a órgãos representativos de autarquias locais territorialmente integradas em municípios diferentes; b) a mais de uma assembleia de freguesia integradas no mesmo município; c) à câmara municipal e à assembleia municipal do mesmo município (novo) (art.º 7.º, n.º 3).

Quanto a candidaturas de grupos de cidadãos eleitores, o art.º 19.º estabelece como novidade:

- Os grupos de cidadãos eleitores que apresentem diferentes proponentes consideram-se distintos para todos os efeitos da presente lei, mesmo que apresentem candidaturas a diferentes autarquias do mesmo concelho (n.º 4).

- Excetuam-se do disposto no n.º anterior os grupos de cidadãos eleitores que apresentem candidatura simultaneamente aos órgãos câmara municipal e assembleia municipal, desde que integrem os mesmos proponentes (n.º 5).

- O tribunal competente para a receção da lista promove sempre a verificação, pelo menos por amostragem, da autenticidade das assinaturas e da identificação dos proponentes da iniciativa, lavrando uma ata detalhada das operações realizadas e dos proponentes confirmados (n.º 8).

Por seu turno, o art.º 23.º estabelece as seguintes novidades:

- (…) Entendem-se por elementos de identificação a denominação, sigla e símbolo do partido ou coligação, a denominação e sigla do grupo de cidadãos e o nome completo, idade, filiação, profissão, naturalidade, residência e número de identificação civil dos candidatos e dos mandatários (n.º 2).

- a) A denominação não pode conter mais de seis palavras, nem integrar as denominações oficiais dos partidos políticos ou das coligações de partidos com existência legal, expressões correntemente utilizadas para identificar ou denominar um partido político, nem conter expressões diretamente relacionadas com qualquer religião ou confissão religiosa, ou instituição nacional ou local; b) a denominação dos grupos de cidadãos eleitores não pode basear-se exclusivamente em nome de pessoa singular; c) a denominação dos grupos de cidadãos eleitores apenas pode integrar um nome de pessoa singular se este for o do primeiro candidato ao respetivo órgão, salvo no caso dos grupos de cidadãos eleitores simultaneamente candidatos aos órgãos câmara municipal e assembleia municipal, conforme previsto no n.º 5 do artigo 19.º; e) os símbolos e as siglas de diferentes grupos de cidadãos eleitores candidatos na área geográfica do mesmo concelho devem ser distintos; f) é vedada a utilização das palavras ‘partido’ e ‘coligação’ na denominação dos grupos de cidadãos eleitores. (n.º 4).

- Na declaração de propositura por grupos de cidadãos eleitores, nos casos em que a presente lei o admitir, os proponentes são ordenados, à exceção do primeiro e sempre que possível, por ordem alfabética (n.º 8).

O n.º 3 do art.º 31.º estipula que “os recursos das decisões proferidas sobre denominações, siglas e símbolos de grupos de cidadãos eleitores têm caráter urgente sobre as demais e devem ser decididos no prazo de 72 horas”.

E o n.º 2 do art.º 170.º estabelece que “quem aceitar ser proponente de mais de uma lista de candidatos de grupos de cidadãos eleitores para a eleição do mesmo órgão autárquico é punido com pena de multa até 30 dias”.

Afora as novas normas sobre inelegibilidades, comuns a partidos e grupos de cidadãos, a presente LOL visa quase exclusivamente estes.

***

Já a 10 de julho, o Público on line dava conta de que a Assembleia da República (AR) debatera, nesse dia, um projeto de lei do PSD, relativo à lei eleitoral autárquica, em que dizia querer introduzir-lhe “alterações cirúrgicas”, como “uma nova inelegibilidade”, para “aumentar a transparência na relação entre as autarquias e os seus fornecedores de serviços, “muitas das vezes concretizados por ajuste direto”, o que ficou plasmado no diploma aprovado.

Por outro lado, os sociais-democratas quiseram clarificar que “os grupos de cidadãos eleitores não se devem confundir com partidos políticos” e proceder à revogação do artigo que se refere ao cartão de eleitor, dadas as alterações promovidas no recenseamento eleitoral.

No que respeitante às candidaturas cidadãs, o PSD quis que lhes seja “vedada a utilização da palavra ‘partido'”, que não integrem “denominações oficiais dos partidos” ou “expressões correntemente utilizadas para identificar ou denominar um partido” e estabelecer que “a denominação dos grupos de cidadãos eleitores não pode basear-se exclusivamente em nome de pessoa singular ou integrar um nome de pessoa singular que não seja o do primeiro candidato à respetiva autarquia local”, o que foi acolhido na atual LOL. Todos os partidos que usaram da palavra concordaram com a alteração relativa ao cartão de eleitor, que deixou de ser emitido, mas assinalaram a necessidade de rever o projeto de lei na especialidade.

Quanto ao mais, a deputada Bebiana Cunha, do PAN, afirmava que a proposta do PSD parecia ter “destinatários bem específicos” e questionou se o proponente queria conseguir na lei o que sabe que não conseguirá nas urnas. Com efeito, como sustentou, “os cidadãos e cidadãs do Porto, quando votam no movimento de Rui Moreira, não o fazem por o mesmo ter na sua designação o termo partido, fazem-no certamente da mesma forma como quando votam no PAN ou no PSD”. Ademais, considerou a deputada que “os grupos de cidadãos eleitores são uma forma de participação na vida pública” e que, por isso, “caminho não dever ser o da restrição”.

Na verdade, Rui Moreira candidatou-se à presidência da Câmara Municipal do Porto, integrando um movimento de cidadãos intitulado “Rui Moreira: Porto, o Nosso Partido”, e está a cumprir o segundo mandato, tendo sucedido ao atual presidente do PSD, Rui Rio

O CDS disse não poder “concordar com verdadeiro objeto desta iniciativa” porque “tem um nome, a iniciativa Rui Moreira”. E Cecília Meireles salientou que “não faz sentido nenhum que se proíba por lei uma iniciativa que se sufraga nas urnas” e desafiou o PSD a “resolver esse problema nas urnas e não na lei”.

Pelo PSD, a deputada Emília Cerqueira rejeitou as acusações, frisando que “não é essa a forma de estar” do partido. E, defendendo que “não se podem confundir movimentos com partidos, seja com que pretexto for”, declarou que “não pode nunca confundir-se ou tentar-se confundir necessidade de clarificação com restrição de direitos”. Porém, admitiu “alguns ajustes” na especialidade.

O BE anunciou a “aprovação genérica” e mostrou-se disponível para contribuir para essa discussão, apontando que, no atinente às candidaturas de movimentos de cidadãos, a redação está “muito confusa e suscetível de interpretações”, pelo que “deve ser melhorada”.

Pedro Delgado Alves, do PS, anuindo a que “há matérias que podemos, na especialidade, trabalhar”, manifestou esperança de que o assunto ficasse fechado até ao final da sessão legislativa. E sustentou que “a proposta apresentada faz efetivamente sentido” porque as candidaturas “não podem tentar ser ou parecer ser as duas coisas ao mesmo tempo”.

Pelo PCP, António Filipe defendeu a necessidade de “regras que sejam claras e que não favoreça nem prejudiquem”.

E o Chega considerou positivo “estabelecer uma separação clara entre movimentos e partidos”.

***

Publicada que foi a atual LOL, o movimento independente liderado pelo Presidente da Câmara do Porto, reagiu de imediato considerando que o diploma que altera a lei eleitoral autárquica é “uma lei à medida da birra” do socialdemocrata Rui Rio. E, em comunicado, especificava: 

No âmbito do seu recente e subserviente casamento com o PS, negociou o dote e conseguiu ver aprovada a que tem como único alvo óbvio o movimento que venceu as duas últimas eleições no Porto e libertou a cidade do cinzentismo ‘riista’. Ou seja, uma lei à medida, à medida da sua birra.”.

Por isso, o independente Rui Moreira desafiou o presidente do PSD a candidatar-se ao Porto com “os poucos do PSD que ainda o apoiam”. E acrescentou:

Peça apoio aos seus compagnons de route e aliados do PS e, já agora, convide o Chega. Chame-lhe coligação Rio porque a lei permite isso aos partidos e venha a jogo. Às claras. O Porto cá os espera.”.

O movimento classificou o dia 21 como um “dia triste” para a democracia e de “júbilo biliar” para Rui Rio. E advertiu que “não é por isso” que desistirá, tendo de para isso de ser “inventado um outro proibicionismo qualquer”.

O Presidente da Câmara Municipal do Porto vincou que com esta alteração à lei o “Porto, o Nosso Movimento” fica impedido de se recandidatar com o nome com que venceu as últimas eleições, não podendo utilizar a palavra ‘partido’, nem o nome do candidato nas siglas das listas concorrentes às freguesias: “tudo isto engendrado, como é indesmentível, para enganar e confundir o eleitor e com o topete de afirmar nos considerandos que é isso que se pretende evitar”.

***

Não morro de amores pelas candidaturas de grupos de cidadãos eleitores, que normalmente são constituídos por dissidentes dos partidos ou por cidadãos que os partidos não integram ou deixaram de integrar ou que se movem por outros interesses que não os políticos e da governança, sendo de questionar donde lhes vêm os fundos para a campanha eleitoral. Todavia, entendo que, se a lei lhes reconhece esse direito de intervenção, não pode criar-lhes tantas dificuldades como tem criado.

Ora – é preciso dizê-lo – não são estas alterações à LOL de 2001 que lhes criam as verdadeiras dificuldades. Concordo que não usem a designação de “partido” ou “coligação”, mesmo que em sentido figurado, ou nomes de entidades religiosas e instituições, como concordo que não baste a designação pelo nome próprio dum candidato, mas já não concordo que o grupo deva ter designação diferente para candidaturas a assembleias de freguesia do mesmo concelho.

O que, a meu ver, dificulta a candidatura dos grupos de cidadãos é a exigência do excessivo número mínimo de proponentes, como estabelece o n.º 2 do art.º 19.º da LOL de 2001.

Por fim devo dizer que a democracia não se esgota na capacidade eleitoral, quer ativa, quer passiva. Os cidadãos, sobretudo os mais esclarecidos, têm muitas outras formas de intervir na vida pública. E as leis deveriam criar muitas mais oportunidades de intervenção.

Do meu ponto de vista, seria desejável que os cidadãos eleitores fossem propostos como independentes em listas partidárias mediante contrato de mandato, em que os independentes estariam dispensados da discussão atinente aos temas considerados fraturantes na sociedade. Seria mais claro e menos dispendioso para as bolsas dos cidadãos. Mas era preciso britar o nefasto aparelhismo partidário e promover muitas e sólidas ações de formação política.

2020.08.28 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A 15 de setembro, todo o país passará para a situação de contingência

 

Embora tudo fique na mesma nos próximos 15 dias no atinente a regras de segurança sanitária, todo o país, a meio de setembro, passará para um nível mais elevado de proteção. Ou seja, à atual situação de alerta suceder-se-á a “situação de contingência”, o que representará o endurecimento das medidas de proteção sanitária que o Governo está a preparar.

Entretanto, a Área Metropolitana de Lisboa, conforme Resolução do Conselho de Ministros aprovada na reunião deste dia 27 de agosto, manter-se-á, até às 23,59 horas do dia 14 de setembro de 2020, na situação em que atualmente está (situação de contingência), significando isto que, daqui a duas semanas, o grau de risco avaliado será igual em todo o país, que agora está na situação de alerta, uma vez que se reforçará então a volta à normalidade com o início do ano letivo, com o regresso às atividades escolares e meios a elas afetos. O anúncio foi feito após a reunião do Conselho de Ministros por Mariana Vieira da Silva, Ministra de Estado e da Presidência, que justificou nos termos seguintes:

Os números do último dia e aquilo que sabemos dos números de hoje mostram um aumento do número de casos e, por isso, apesar desta tendência decrescente na região de Lisboa e Vale do Tejo e da tendência relativamente constante ao longo da última quinzena, o Governo considera que aquilo que deve é continuar exatamente com as mesmas medidas que existiam até aqui na próxima quinzena”.

A Ministra anunciou também que as reuniões do Infarmed – que juntam técnicos e políticos na mesma sala em sessões de avaliação da situação – voltarão a 7 de setembro, com uma primeira parte aberta a jornalistas. Com efeito, Portugal regista mais duas mortes relacionadas com a covid-19 e 399 novos casos confirmados de infeção nas últimas 24 horas, segundo o boletim epidemiológico da DGS (Direção-Geral da Saúde), hoje divulgado. Desde o início da pandemia até hoje, registaram-se 56 673 casos de infeção e 1 809 mortes. A região de Lisboa e Vale do Tejo foi a que registou mais novos casos nas últimas 24 horas, com 186 infeções confirmadas, contabilizando 29 332 casos. Os dois óbitos ocorreram naquela região, que totaliza 656 mortos.

Mariana Vieira da Silva recusou antecipar as medidas que estão a ser preparadas para daqui a duas semanas, limitando-se a dizer:

As medidas serão trabalhadas ao longo dos próximos dias e apresentadas a partir da reunião entre peritos e responsáveis políticos mas também não é de deixar de dizer que o que temos em mente é um conjunto de novas regras a partir de 15 de setembro”.

Porém, adiantou que um dos temas a tratar será o dos planos de contingência para as escolas em caso de ser detetado algum caso, o que responde às solicitações que as escolas vêm fazendo. Entretanto, segundo disse, na próxima semana deverá estar pronta a aplicação Stay Away Covid.

A previsão de que, a partir de 15 de setembro, todo o país estará em estado de contingência visa, nas palavras da Ministra da Presidência, “preparar o outono e o inverno”, sendo que, na semana que se iniciará a 7 de setembro, serão anunciadas as medidas que passarão a estar em vigor no início da última quinzena desse mês.

Mariana Vieira da Silva referiu que a decisão de manter as atuais medidas na 1.ª quinzena de setembro resulta de os números se manterem estáveis e a resposta do SNS estar controlada, além de a capacidade de testes ter vindo a aumentar. De facto, em agosto, como disse, realizaram-se mais de 13 mil testes por dia, sendo que “o número de testes positivos é menor” do que acontecia até aqui. Ao invés, a resolução que prorroga a declaração da situação de contingência na Área Metropolitana de Lisboa e de alerta no restante território de Portugal continental e que foi hoje aprovada em Conselho de Ministros vigorará até 14 de setembro.

Nas Regiões Autónomas, no início do mês, o Governo da Madeira prolongou a situação de calamidade até 31 de agosto, enquanto o Governo dos Açores deliberou prorrogar até às 24 horas de 1 de setembro a situação de calamidade pública nas ilhas de Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico e Faial (as ilhas que têm ligações aéreas ao exterior do arquipélago), bem como a situação de alerta nas ilhas Graciosa, São Jorge, Flores e Corvo.

Sobre a retoma das reuniões no Infarmed, a Ministra de Estado e da Presidência explicitou:

As reuniões a que chamamos normalmente as ‘reuniões do Infarmed’, que reúnem peritos, responsáveis políticos, responsáveis de outros órgãos e atores sociais, vão retomar no dia 7 de setembro, e um dos temas fundamentais dessa reunião é precisamente o conjunto de medidas que precisamos de definir a partir de dia 15 para enfrentar este novo momento”.

Questionada sobre o formato em que decorrerão e o porquê de serem retomadas, a governante referiu que “as reuniões terão uma parte, a parte expositiva, que será de transmissão aberta, e essa é a principal diferença que as reuniões terão face ao passado”. E esclareceu:

O Primeiro-Ministro, desde o momento em que elas foram descontinuadas, disse que uma alteração das circunstâncias, dados novos sobre os inquéritos que estavam em curso ou informação nova para ser discutida fariam que regressássemos às reuniões”.

Já na conferência de imprensa subsequente ao Conselho de Ministros de há 15 dias, Mariana Vieira da Silva manifestara “abertura para retomar as reuniões” no Infarmed sobre o ponto de situação da epidemia de covid-19, mas rejeitou então falhas na informação ao Parlamento e aos partidos, que recebem “as grandes linhas” da informação disponível. E hoje observou:

Aquilo que nós temos visto um pouco por toda a Europa é um aumento dos números nos últimos dias, e o Governo naturalmente não pode ficar indiferente a esse aumento e não pode deixar de se preparar para as implicações que em cada país existem sempre que há um ressurgimento dos casos.

Por seu turno, a 13 de agosto, questionado sobre o eventual regresso das sessões com epidemiologistas no Infarmed, em Lisboa, o Presidente da República defendeu então que “cabe ao Governo no momento que entender adequado”, depois de “terminado o mês de agosto, que é o mês mais morto”, repensar um modelo de informação ao país.

Também o Conselho de Ministros de hoje aprovou um decreto-lei que altera as medidas excecionais e temporárias relativas à pandemia de covid-19, destacando: a concretização da justa proteção dos trabalhadores por conta de outrem e dos independentes do regime geral de segurança social, correspondente a 100% da remuneração de referência, até ao limite de 28 dias, no âmbito do subsídio por isolamento profilático ou do subsídio por doença, com efeitos a partir de 25 de julho; a prorrogação, até 31 de março de 2021, do período de que os prestadores de serviços de restauração e de bebidas dispõem para se adaptarem às disposições da não utilização e não disponibilização de louça de plástico de utilização única; a definição do prazo de 31 de dezembro de 2020 para clarificar e harmonizar disposições legislativas nesta matéria, no sentido de proceder à 1.ª fase de transposição da Diretiva (UE) 2019/904, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de junho de 2019; o reajustamento do regime jurídico das viagens organizadas, já que a solução que permitia a emissão de um vale de igual valor ao pagamento efetuado pelo viajante ou pelo reagendamento em caso de cancelamento se afigurava como excecional; e a alteração do decreto-lei que estabelece medidas excecionais de organização e funcionamento das atividades educativas e formativas, no âmbito da pandemia, reforçando-se o número de vagas no regime geral de acesso ao ensino superior.

Do diploma ora aprovado decorre, pois, que a baixa por covid-19 será paga a 100% nos primeiros 28 dias de isolamento, desde 25 de julho, data em que entrou em vigor o Orçamento Suplementar. Além do subsídio por doença, também os trabalhadores que tenham de cumprir o isolamento profilático recebem o correspondente 100% da remuneração de referência, durante o mesmo período máximo. E Vieira da Silva esclareceu que a medida estava contemplada em sede do Orçamento Suplementar, que entrou em vigor no dia acima referido.

Na reunião de hoje, o Conselho de Ministros aprovou também a justificação de falta para os trabalhadores com filhos ou dependentes em isolamento profilático, o que não se vê explícito no comunicado respetivo, mas que a Ministra anunciou nos termos seguintes:

Quem tenha de acompanhar um filho ou dependente fica também com falta justificada durante os primeiros 14 dias”.

A medida aplica-se, por exemplo, em caso de confirmação de caso positivo em turma ou escola, em que os alunos devam cumprir o isolamento profilático em casa, possibilitando que os pais ou encarregados de educação faltem ao trabalho para os acompanhar, sem corte na remuneração.

***

Foram ainda aprovados os seguintes decretos-lei: o que atualiza a idade de acesso às pensões e elimina o fator de sustentabilidade nos regimes especiais de antecipação da idade de pensão de velhice; o que possibilita a prorrogação do contrato a termo resolutivo celebrado com pessoal não docente das escolas da rede do ME, no âmbito da pandemia da Covid-19, até ao termo do próximo ano escolar; o que define os termos da regularização do património imobiliário do IQP (Instituto Português da Qualidade) e os trâmites necessários para o efeito; o que prorroga a vigência da norma transitória de acesso à profissão de técnico de instalação e manutenção de edifícios e sistemas, bem como à adoção de medidas de simplificação administrativa para o respetivo acesso, e que prorroga a vigência da norma transitória para o legítimo prosseguimento do exercício de funções como técnico responsável e de inspetor de instalações elétricas de serviço particular, retificando os termos da formação de atualização legalmente prevista para o efeito; o que regula o exercício da pesca marítima comercial, visando a conservação e exploração sustentável dos recursos biológicos, e que estabelece o regime jurídico aplicável à autorização, registo e licenciamento dos navios ou embarcações utilizadas na atividade profissional da pesca; e a versão final do que estabelece os termos da integração dos trabalhadores dos programas operacionais regionais das CCDR (comissões de coordenação e desenvolvimento regional), prevendo a sua integração no mapa de pessoal específico da ADC (Agência para o Desenvolvimento e Coesão).

E foram aprovadas duas Resoluções: a que prorroga o apoio do Governo no âmbito do Plano de Revitalização Económica da Ilha Terceira para responder aos efeitos da pandemia, que ali se fizeram sentir de forma particularmente acentuada; a que delega no Ministro do Ambiente e da Ação Climática a competência para a homologação das propostas de delimitação do domínio público hídrico, marítimo e não marítimo; e a que autoriza o ISS (Instituto da Segurança Social) a realizar a despesa na aquisição de serviços de gestão operacional de CCSS (centro de contacto para a segurança social), para resposta a pedidos de informação submetidos por canais não presenciais.

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O tema que domina o panorama social é a covid-19. O Governo aborda também outras matérias, mas os problemas com que o confrontam têm a ver quase só com a pandemia. O SNS, frente à covid-19, eclipsa as outras patologias, que se mantêm ativas, ficando entregue o beneficiário de subsistemas aos privados, que têm limitações técnico-logísticas e que sobrevivem com recurso a quadros do SNS; e o utente do SNS fica entregue a si próprio. A oposição assobia e chama à AR ministros; e Marcelo, alegadamente solitário, lê relatórios e subestima ministros/as. Enfim…

2020.08.27 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

“Aprender a crer”, a postura sábia de quem almeja o dom da fé

 

A 22 de abril deste ano, a Revista IHU online publicava uma entrevista de Harald Malschitzky a Andriolli Costa a assinalar os 75 anos do martírio do alemão Dietrich Bonhoeffer, teólogo e pastor luterano, que morreu enforcado, num campo de concentração, ao lado de familiares seus, no dia 9 de abril de 1945, semanas antes do fim da 2.ª Guerra Mundial.

Este pensador e professor de teologia – que disse limitar-se a desejar “aprender a crer” e que não existe o deus ex-machina que num instante inverte as coisas, cabendo “ao ser humano secularizado assumir o seu papel no mundo etsi Deus non daretur e aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha” é considerado um dos poucos teólogos mártires do cristianismo, talvez por não raro a academia se encerrar em discussões herméticas e o teólogo mártir, no dizer de  Malschitzky, se interrogar sobre “a relação entre fé e vida como ela é e acontece, facto tantas vezes ignorado na teologia académica”.

Malschitzky, autor do livro Dietrich Bonhoeffer - Discípulo, testemunha, mártir (São Leopoldo: Sinodal, 2005), faz uma resenha histórica da sua vida, da resistência a Hitler e à luta contra a nazificação da Igreja; e, na predita entrevista, conta como o teólogo insistiu na defesa dos judeus, se envolveu na emigração clandestina e se infiltrou com um grupo com parentes e amigos no estado-maior do exército alemão para promover o derrube de Hitler, porque “a Igreja não se pode limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos”, como diz Malschitzky. Assim, a ação do teólogo ativista não passou despercebida ao Governo, o que acabou por o levar ao cárcere, onde passou a desenvolver “boa parte de sua produção mais relevante, articulando momentos de desesperança com o terror vivido com a fé”, em resposta à grande inquietação teológica como um Deus bondoso pode permitir o sofrimento de seus filhos, ou seja, como pode o todo-poderoso permitir a existência do mal.

Bonhoeffer, ao sustentar que deveríamos viver no mundo como se Deus não existisse, não nega o divino, mas propõe a assunção dos destinos do mundo sob a nossa própria responsabilidade, pois na teologia cristocêntrica, onde a cruz tem grande importância simbólica, dizia:

Cristo ajuda-nos não pela sua omnipotência, mas pela sua debilidade e sofrimentos”.

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Harald Malschitzky, de 74 anos, pastor e professor aposentado da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB e que foi orientador de estudos na Escola Superior de Teologia – EST, em São Leopoldo, refere que Bonhoeffer figura entre os ícones ortodoxos numa igreja ortodoxa de Nürnberg (Alemanha) e é reconhecido como mártir para além da Igreja, com uma trajetória de vida estribada em diversas raízes, tendo vivido num momento em que um bom segmento da teologia se interrogava sobre “a relação entre fé e vida como ela é e acontece”.

Da sua teologia radicalmente cristocêntrica brotava a pergunta pelo significado e papel de Cristo na vida, a que respondia dizendo que “o cristão coloca a sua vida ao serviço dos outros e a Igreja só tem razão de ser se está aí para os outros”, pois “não tem um fim em si mesma”. Daí decorre outrossim a atuação noutros países e o envolvimento ecuménico. Assim, em 1930, estabeleceu um intercâmbio com um seminário em Nova Iorque para conhecer as comunidades negras (em tempo de segregação racial), que passaria a frequentar, tendo “o canto alegre, os testemunhos, mas principalmente a ligação da fé com a realidade e a esperança de novos tempos aqui e agora” causado tanto impacto, que Bonhoeffer classificou esse tempo como “uma espécie de conversão”.

Com a ascensão de Hitler, aplicava-se à Igreja o parágrafo do arianismo à luz do qual seriam demitidos os pastores e padres de ascendência judia, avizinhando-se a tomada da Igreja pelos teuto-cristãos e o crescente cerceamento e perseguição aos judeus. Ora, regressado à Alemanha, já em 1933 Bonhoeffer refletia sobre o poder ilimitado de Hitler e os seus riscos. Nesse sentido, ocupou-se com a questão dos judeus, empenhou-se na criação da Igreja Confessante, coordenou a formação clandestina de pastores, envolveu-se no mundo ecuménico para que a Igreja estatal alemã não fosse reconhecida e esforçou-se por abrir os olhos de outros países para a tormenta no horizonte alemão. Neste cenário de enorme empenho teológico, cristalizava cada vez mais a ideia-força de que o empenho cristão pelo ser humano pode implicar ações políticas radicais. Por isso, foi categórico em afirmar que “só tem direito a cantar gregoriano aquele que defender os judeus”, envolveu-se na emigração clandestina dum grupo de judeus e, em relação à loucura de Hitler, concluiu que “a Igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos”, mas que é preciso arrancar do volante do carro “aquele que machuca e mata”. Depois, com parentes e amigos no estado-maior do exército alemão, infiltrou-se nesse grupo para promover o derrube do führer. E era um agente da causa no mundo ecuménico.

No âmbito da vigilância das suas ações e passos, foram sucessivamente cassados os seus campos de atuação na universidade, a publicação dos seus livros, o seminário clandestino de Finkelwalde (que seria reaberto na Pomerânia). Em 1943, foi preso, passou por algumas prisões e campos de concentração até que, a 9 de abril de 1945, foi executado, com outras pessoas do grupo, em Flossenbürg, no sul da Alemanha.

Segundo Malschitzky, Bonhoeffer não desenvolveu uma teologia específica na prisão. Não obstante, as centenas de cartas “revelam uma enorme confiança em Deus e a clareza de que os cristãos e a Igreja só têm razão de existir em função dos outros”. Parte da sua Ética, publicada de forma fragmentada, foi escrita na prisão, tal como alocuções de casamento e batismo, textos que expressam uma tremenda confiança em Deus. E orações escritas para outros prisioneiros dão conta de uma fé enorme num Deus que cuida da sua criatura. Isso não quer dizer que não houvesse dúvidas e questionamentos. E a poesia “Quem sou eu expressa bem as duas coisas.

Para Bonhoeffer, para quem não há deus ex-machina, o ser humano secularizado precisa de assumir o seu papel no mundo como se Deus não existisse e incumbe aos cristãos “apontar rumos éticos de convivência e partilha” – mais um motivo para a decisão pessoal e radical de Bonhoeffer como cristão. Assim, nos campos de concentração, passava muito tempo a conversar com funcionários e guardas que o vigiavam, porque eram criaturas amadas por Deus e muitos sofriam com o que acontecia. Por conseguinte, os horrores do nazismo e outros tantos têm de ser debitados na conta do ser humano que se brutaliza e se deixa brutalizar.

Grande número de leigos e pastores na igreja evangélica identificava-se com o nacional-socialismo e concordava com as medidas de Hitler com base no parágrafo ariano extensivas à Igreja. Assim, uma eleição convocada à última hora, em 1933, elegeria um bispo identificado com o nazismo. Bonhoeffer e outros empenharam-se, com forte panfletagem, por outro candidato. Porém, 70% dos votantes escolheram Ludwig Müller, o candidato da situação. Em seguida, o grupo de Bonhoeffer elaborou um documento, conhecido como Confissão de Bethel, a base para a “Confissão de Barmen”, que esteve na origem da Igreja Confessante. É certo que, nesse período, Bonhoeffer aceitou o convite para trabalhar durante algum tempo numa comunidade em Londres, mas acompanhava atentamente os acontecimentos na Alemanha e na sua Igreja pelas notícias e pelas visitas a Berlim. Não participou diretamente da elaboração na “Declaração de Barmen”, mas identificou-se com os seus propósitos. E, de 29 a 31 de maio de 1934, reuniu-se uma assembleia que, em 6 pontos, condenou a doutrina dos teuto-cristãos (cristãos alemães) e criou a Igreja Confessante em oposição à Igreja Protestante que se identificava com o nazismo. O ponto fundamental da declaração e a base da Igreja Confessante estão traduzidos nas seguintes palavras da Confissão de Barmen:

Condenamos a falsa doutrina segundo a qual a Igreja pode e deve reconhecer como fonte da sua pregação, além e ao lado da única palavra de Deus, ainda outros acontecimentos e poderes, figuras ou verdades como se fossem revelações de Deus”.

A princípio, a Igreja Confessante era tolerada, o que não durou muito. Logo em 1934, no mundo ecuménico, Bonhoeffer  empenhou-se em que ela fosse reconhecida como a única representante legítima do protestantismo da Alemanha. E, como o CMI (Conselho Mundial de Igrejas) convidara representantes das duas Igrejas para uma conferência na Dinamarca, em 1934, o desafio para a Igreja Confessante foi preparar pastores e pregadores para as comunidades. Com efeito, saíam dos bancos da universidade sem qualquer prática, pelo que foram criados 5 seminários de pregadores, ficando um deles, o da Pomerânia, sob orientação de Bonhoeffer, que tinha criado um primeiro à beira do Mar Báltico, que transferiu para Finkenwalde.

Esta Igreja Confessante esteve sempre em minoria e todos os seus passos começaram logo a ser controlados e cerceados até à proibição final. Muitos dos seus elementos foram parar a campos de concentração. Terminada a guerra, em outubro de 1945, alguns dos cristãos que tinham raízes na Igreja Confessante elaboraram e publicaram a Confissão de Culpa de Stuttgart, em que assumem a culpa, entre outros, por omissão face ao nazismo.

A propósito da asserção bonhoefferiana de que deveríamos agir num mundo sem Deus, mas sem negar o divino, o entrevistado pensa que o teólogo entendia que “o processo de secularização radical iria às últimas consequências”. Assim, num mundo secularizado, que não negava necessariamente Deus, mas que assumia os destinos do mundo sob a sua responsabilidade, a questão que se levantava era como poderia a Igreja falar e agir com o mundo secularizado. Ora, sendo na agenda dessa humanidade secularizada a paz como única forma de sobrevivência, o papel da Igreja universal seria convocar para a paz. Por isso, em agosto de 1934, quando era claro que Hitler queria guerra, Bonhoeffer clama numa convenção ecuménica na Dinamarca:

Como se concretiza a paz? Quem convoca para a paz de forma tal que o mundo o ouça, seja obrigado a ouvir? Somente o grande concílio ecuménico da Santa Igreja de Cristo de todo o planeta poderá fazê-lo de maneira que o mundo, rangendo os dentes, tenha que ouvir a palavra da paz, e os povos fiquem felizes, porque esta Igreja de Cristo arrancará as armas das mãos de seus filhos em nome de Cristo, proibindo-lhes a guerra e proclamando a paz de Cristo a todo este mundo delirante.”.

Porém, como não houve concílio, nem toda a sabedoria e capacidade diplomática e política do ser humano secularizado evitaram a guerra, boa parte dos cristãos (protestantes e católicos) foram pela guerra e todos viram e sofreram a fúria do mal a matar e destruir sem distinção.

Sobre a reação de Deus face ao sofrimento do seu Filho na cruz e ao nosso sofrimento, Malschitzky aponta que “ a Bíblia conhece momentos da ausência de Deus” e que Jesus “sentiu esse abandono na cruz”, quando exclamou: ‘Meu Deus, meu Deus, para que me desamparaste?’. E, a este respeito, Bonhoeffer interrogava-se como Deus podia concordar com isso (o sofrimento vicário do próprio filho de Deus continua em discussão), mas, apesar de não compreender o seu Deus, “vislumbrava a sua bondosa mão também por detrás do sofrimento”. E Malschitzky explica:

Era sua fé, que o mesmo Deus acompanhava seus filhos e filhas em todos os momentos. Não vamos encontrar em Bonhoeffer a tentativa de explicar isso de forma racional e lógica. Eu pessoalmente confesso que tenho aqui todas as dificuldades. A ausência de Deus por vezes é angustiante. Continuo, porém, na busca de respostas.”.

Em relação à tese de que que Cristo nos ajuda não pela omnipotência, mas pela sua debilidade e sofrimentos”, Harald Malschitzky explicita que “o ser humano não é marioneta de Deus”, pois “foi criado com liberdade e recebeu a incumbência de cuidar do mundo e da criação”. Neste sentido, Deus “admoesta e procura indicar e corrigir o rumo da humanidade através de pessoas” (por exemplo, os profetas); e não é o livre arbítrio (que não é tão livre) que é problemático, mas “a arbitrariedade pura e simples praticada pelo nazismo” (e não só por ele). Ora, “Cristo na sua debilidade acompanha as pessoas nas suas derrotas, dando-lhes força e ânimo para continuarem, à revelia de tudo”; e “a sua mensagem, vivida e sofrida é de paz e comunhão e de respeito justamente pelos seres mais debilitados”.

À questão como explicar, a partir do pensamento de Bonhoeffer, a atuação divina nos tempos sombrios da Shoah, Malschitzky, precisando que o teólogo não conheceu o conceito de Shoah, que seria aplicado ao genocídio perpetrado pelo nazismo só depois da guerra, assegura que não lhe era desconhecido o que estava a acontecer, já que a Shoah “mexe nos alicerces da fé de qualquer cristão e todos os grandes e pequenos programas de reparação promovidos por povos e Igrejas não o mudam”, não se tratando “de defender a fé em Deus, mas de a testemunhar para que se encontrem formas de paz duradoura para todos os povos e crenças ou descrenças” – testemunho que não nasce duma fé heroica, mas da debilidade que se limita a dizer: “Senhor, eu creio, ajuda-me na minha falta de fé”.

Por fim, Malschitzky diz que o martírio não era aspiração de Bonhoeffer, pois até pensou no suicídio na prisão, não como ato de coragem, mas por medo de não suportar as torturas e acabar a trair o movimento que queria tirar Hitler do poder. Por outro lado, nos EUA, conheceu o teólogo católico, Jean Lassere, pacifista decidido. E, num diálogo, enquanto este  manifestava desejar ser santo, Bonhoeffer  limitou-se a dizer que o seu desejo era “aprender a crer”.

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Sem desmerecer da obrigação grave da Igreja em promover a paz e outros valores caros à humanidade secularizada – tarefa a intensificar sempre mais e melhor –, não pode deixar de explicitamente se lhe oferecer Cristo em palavra e testemunho operativo, na certeza de que “onde não há amor não há verdade”, como dizia o ateu humanista Ludwig Andreas Feuerbach na sua elucubração filosófica.   

2020.08.26 – Louro de Carvalho