quarta-feira, 26 de agosto de 2020

“Aprender a crer”, a postura sábia de quem almeja o dom da fé

 

A 22 de abril deste ano, a Revista IHU online publicava uma entrevista de Harald Malschitzky a Andriolli Costa a assinalar os 75 anos do martírio do alemão Dietrich Bonhoeffer, teólogo e pastor luterano, que morreu enforcado, num campo de concentração, ao lado de familiares seus, no dia 9 de abril de 1945, semanas antes do fim da 2.ª Guerra Mundial.

Este pensador e professor de teologia – que disse limitar-se a desejar “aprender a crer” e que não existe o deus ex-machina que num instante inverte as coisas, cabendo “ao ser humano secularizado assumir o seu papel no mundo etsi Deus non daretur e aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha” é considerado um dos poucos teólogos mártires do cristianismo, talvez por não raro a academia se encerrar em discussões herméticas e o teólogo mártir, no dizer de  Malschitzky, se interrogar sobre “a relação entre fé e vida como ela é e acontece, facto tantas vezes ignorado na teologia académica”.

Malschitzky, autor do livro Dietrich Bonhoeffer - Discípulo, testemunha, mártir (São Leopoldo: Sinodal, 2005), faz uma resenha histórica da sua vida, da resistência a Hitler e à luta contra a nazificação da Igreja; e, na predita entrevista, conta como o teólogo insistiu na defesa dos judeus, se envolveu na emigração clandestina e se infiltrou com um grupo com parentes e amigos no estado-maior do exército alemão para promover o derrube de Hitler, porque “a Igreja não se pode limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos”, como diz Malschitzky. Assim, a ação do teólogo ativista não passou despercebida ao Governo, o que acabou por o levar ao cárcere, onde passou a desenvolver “boa parte de sua produção mais relevante, articulando momentos de desesperança com o terror vivido com a fé”, em resposta à grande inquietação teológica como um Deus bondoso pode permitir o sofrimento de seus filhos, ou seja, como pode o todo-poderoso permitir a existência do mal.

Bonhoeffer, ao sustentar que deveríamos viver no mundo como se Deus não existisse, não nega o divino, mas propõe a assunção dos destinos do mundo sob a nossa própria responsabilidade, pois na teologia cristocêntrica, onde a cruz tem grande importância simbólica, dizia:

Cristo ajuda-nos não pela sua omnipotência, mas pela sua debilidade e sofrimentos”.

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Harald Malschitzky, de 74 anos, pastor e professor aposentado da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB e que foi orientador de estudos na Escola Superior de Teologia – EST, em São Leopoldo, refere que Bonhoeffer figura entre os ícones ortodoxos numa igreja ortodoxa de Nürnberg (Alemanha) e é reconhecido como mártir para além da Igreja, com uma trajetória de vida estribada em diversas raízes, tendo vivido num momento em que um bom segmento da teologia se interrogava sobre “a relação entre fé e vida como ela é e acontece”.

Da sua teologia radicalmente cristocêntrica brotava a pergunta pelo significado e papel de Cristo na vida, a que respondia dizendo que “o cristão coloca a sua vida ao serviço dos outros e a Igreja só tem razão de ser se está aí para os outros”, pois “não tem um fim em si mesma”. Daí decorre outrossim a atuação noutros países e o envolvimento ecuménico. Assim, em 1930, estabeleceu um intercâmbio com um seminário em Nova Iorque para conhecer as comunidades negras (em tempo de segregação racial), que passaria a frequentar, tendo “o canto alegre, os testemunhos, mas principalmente a ligação da fé com a realidade e a esperança de novos tempos aqui e agora” causado tanto impacto, que Bonhoeffer classificou esse tempo como “uma espécie de conversão”.

Com a ascensão de Hitler, aplicava-se à Igreja o parágrafo do arianismo à luz do qual seriam demitidos os pastores e padres de ascendência judia, avizinhando-se a tomada da Igreja pelos teuto-cristãos e o crescente cerceamento e perseguição aos judeus. Ora, regressado à Alemanha, já em 1933 Bonhoeffer refletia sobre o poder ilimitado de Hitler e os seus riscos. Nesse sentido, ocupou-se com a questão dos judeus, empenhou-se na criação da Igreja Confessante, coordenou a formação clandestina de pastores, envolveu-se no mundo ecuménico para que a Igreja estatal alemã não fosse reconhecida e esforçou-se por abrir os olhos de outros países para a tormenta no horizonte alemão. Neste cenário de enorme empenho teológico, cristalizava cada vez mais a ideia-força de que o empenho cristão pelo ser humano pode implicar ações políticas radicais. Por isso, foi categórico em afirmar que “só tem direito a cantar gregoriano aquele que defender os judeus”, envolveu-se na emigração clandestina dum grupo de judeus e, em relação à loucura de Hitler, concluiu que “a Igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos”, mas que é preciso arrancar do volante do carro “aquele que machuca e mata”. Depois, com parentes e amigos no estado-maior do exército alemão, infiltrou-se nesse grupo para promover o derrube do führer. E era um agente da causa no mundo ecuménico.

No âmbito da vigilância das suas ações e passos, foram sucessivamente cassados os seus campos de atuação na universidade, a publicação dos seus livros, o seminário clandestino de Finkelwalde (que seria reaberto na Pomerânia). Em 1943, foi preso, passou por algumas prisões e campos de concentração até que, a 9 de abril de 1945, foi executado, com outras pessoas do grupo, em Flossenbürg, no sul da Alemanha.

Segundo Malschitzky, Bonhoeffer não desenvolveu uma teologia específica na prisão. Não obstante, as centenas de cartas “revelam uma enorme confiança em Deus e a clareza de que os cristãos e a Igreja só têm razão de existir em função dos outros”. Parte da sua Ética, publicada de forma fragmentada, foi escrita na prisão, tal como alocuções de casamento e batismo, textos que expressam uma tremenda confiança em Deus. E orações escritas para outros prisioneiros dão conta de uma fé enorme num Deus que cuida da sua criatura. Isso não quer dizer que não houvesse dúvidas e questionamentos. E a poesia “Quem sou eu expressa bem as duas coisas.

Para Bonhoeffer, para quem não há deus ex-machina, o ser humano secularizado precisa de assumir o seu papel no mundo como se Deus não existisse e incumbe aos cristãos “apontar rumos éticos de convivência e partilha” – mais um motivo para a decisão pessoal e radical de Bonhoeffer como cristão. Assim, nos campos de concentração, passava muito tempo a conversar com funcionários e guardas que o vigiavam, porque eram criaturas amadas por Deus e muitos sofriam com o que acontecia. Por conseguinte, os horrores do nazismo e outros tantos têm de ser debitados na conta do ser humano que se brutaliza e se deixa brutalizar.

Grande número de leigos e pastores na igreja evangélica identificava-se com o nacional-socialismo e concordava com as medidas de Hitler com base no parágrafo ariano extensivas à Igreja. Assim, uma eleição convocada à última hora, em 1933, elegeria um bispo identificado com o nazismo. Bonhoeffer e outros empenharam-se, com forte panfletagem, por outro candidato. Porém, 70% dos votantes escolheram Ludwig Müller, o candidato da situação. Em seguida, o grupo de Bonhoeffer elaborou um documento, conhecido como Confissão de Bethel, a base para a “Confissão de Barmen”, que esteve na origem da Igreja Confessante. É certo que, nesse período, Bonhoeffer aceitou o convite para trabalhar durante algum tempo numa comunidade em Londres, mas acompanhava atentamente os acontecimentos na Alemanha e na sua Igreja pelas notícias e pelas visitas a Berlim. Não participou diretamente da elaboração na “Declaração de Barmen”, mas identificou-se com os seus propósitos. E, de 29 a 31 de maio de 1934, reuniu-se uma assembleia que, em 6 pontos, condenou a doutrina dos teuto-cristãos (cristãos alemães) e criou a Igreja Confessante em oposição à Igreja Protestante que se identificava com o nazismo. O ponto fundamental da declaração e a base da Igreja Confessante estão traduzidos nas seguintes palavras da Confissão de Barmen:

Condenamos a falsa doutrina segundo a qual a Igreja pode e deve reconhecer como fonte da sua pregação, além e ao lado da única palavra de Deus, ainda outros acontecimentos e poderes, figuras ou verdades como se fossem revelações de Deus”.

A princípio, a Igreja Confessante era tolerada, o que não durou muito. Logo em 1934, no mundo ecuménico, Bonhoeffer  empenhou-se em que ela fosse reconhecida como a única representante legítima do protestantismo da Alemanha. E, como o CMI (Conselho Mundial de Igrejas) convidara representantes das duas Igrejas para uma conferência na Dinamarca, em 1934, o desafio para a Igreja Confessante foi preparar pastores e pregadores para as comunidades. Com efeito, saíam dos bancos da universidade sem qualquer prática, pelo que foram criados 5 seminários de pregadores, ficando um deles, o da Pomerânia, sob orientação de Bonhoeffer, que tinha criado um primeiro à beira do Mar Báltico, que transferiu para Finkenwalde.

Esta Igreja Confessante esteve sempre em minoria e todos os seus passos começaram logo a ser controlados e cerceados até à proibição final. Muitos dos seus elementos foram parar a campos de concentração. Terminada a guerra, em outubro de 1945, alguns dos cristãos que tinham raízes na Igreja Confessante elaboraram e publicaram a Confissão de Culpa de Stuttgart, em que assumem a culpa, entre outros, por omissão face ao nazismo.

A propósito da asserção bonhoefferiana de que deveríamos agir num mundo sem Deus, mas sem negar o divino, o entrevistado pensa que o teólogo entendia que “o processo de secularização radical iria às últimas consequências”. Assim, num mundo secularizado, que não negava necessariamente Deus, mas que assumia os destinos do mundo sob a sua responsabilidade, a questão que se levantava era como poderia a Igreja falar e agir com o mundo secularizado. Ora, sendo na agenda dessa humanidade secularizada a paz como única forma de sobrevivência, o papel da Igreja universal seria convocar para a paz. Por isso, em agosto de 1934, quando era claro que Hitler queria guerra, Bonhoeffer clama numa convenção ecuménica na Dinamarca:

Como se concretiza a paz? Quem convoca para a paz de forma tal que o mundo o ouça, seja obrigado a ouvir? Somente o grande concílio ecuménico da Santa Igreja de Cristo de todo o planeta poderá fazê-lo de maneira que o mundo, rangendo os dentes, tenha que ouvir a palavra da paz, e os povos fiquem felizes, porque esta Igreja de Cristo arrancará as armas das mãos de seus filhos em nome de Cristo, proibindo-lhes a guerra e proclamando a paz de Cristo a todo este mundo delirante.”.

Porém, como não houve concílio, nem toda a sabedoria e capacidade diplomática e política do ser humano secularizado evitaram a guerra, boa parte dos cristãos (protestantes e católicos) foram pela guerra e todos viram e sofreram a fúria do mal a matar e destruir sem distinção.

Sobre a reação de Deus face ao sofrimento do seu Filho na cruz e ao nosso sofrimento, Malschitzky aponta que “ a Bíblia conhece momentos da ausência de Deus” e que Jesus “sentiu esse abandono na cruz”, quando exclamou: ‘Meu Deus, meu Deus, para que me desamparaste?’. E, a este respeito, Bonhoeffer interrogava-se como Deus podia concordar com isso (o sofrimento vicário do próprio filho de Deus continua em discussão), mas, apesar de não compreender o seu Deus, “vislumbrava a sua bondosa mão também por detrás do sofrimento”. E Malschitzky explica:

Era sua fé, que o mesmo Deus acompanhava seus filhos e filhas em todos os momentos. Não vamos encontrar em Bonhoeffer a tentativa de explicar isso de forma racional e lógica. Eu pessoalmente confesso que tenho aqui todas as dificuldades. A ausência de Deus por vezes é angustiante. Continuo, porém, na busca de respostas.”.

Em relação à tese de que que Cristo nos ajuda não pela omnipotência, mas pela sua debilidade e sofrimentos”, Harald Malschitzky explicita que “o ser humano não é marioneta de Deus”, pois “foi criado com liberdade e recebeu a incumbência de cuidar do mundo e da criação”. Neste sentido, Deus “admoesta e procura indicar e corrigir o rumo da humanidade através de pessoas” (por exemplo, os profetas); e não é o livre arbítrio (que não é tão livre) que é problemático, mas “a arbitrariedade pura e simples praticada pelo nazismo” (e não só por ele). Ora, “Cristo na sua debilidade acompanha as pessoas nas suas derrotas, dando-lhes força e ânimo para continuarem, à revelia de tudo”; e “a sua mensagem, vivida e sofrida é de paz e comunhão e de respeito justamente pelos seres mais debilitados”.

À questão como explicar, a partir do pensamento de Bonhoeffer, a atuação divina nos tempos sombrios da Shoah, Malschitzky, precisando que o teólogo não conheceu o conceito de Shoah, que seria aplicado ao genocídio perpetrado pelo nazismo só depois da guerra, assegura que não lhe era desconhecido o que estava a acontecer, já que a Shoah “mexe nos alicerces da fé de qualquer cristão e todos os grandes e pequenos programas de reparação promovidos por povos e Igrejas não o mudam”, não se tratando “de defender a fé em Deus, mas de a testemunhar para que se encontrem formas de paz duradoura para todos os povos e crenças ou descrenças” – testemunho que não nasce duma fé heroica, mas da debilidade que se limita a dizer: “Senhor, eu creio, ajuda-me na minha falta de fé”.

Por fim, Malschitzky diz que o martírio não era aspiração de Bonhoeffer, pois até pensou no suicídio na prisão, não como ato de coragem, mas por medo de não suportar as torturas e acabar a trair o movimento que queria tirar Hitler do poder. Por outro lado, nos EUA, conheceu o teólogo católico, Jean Lassere, pacifista decidido. E, num diálogo, enquanto este  manifestava desejar ser santo, Bonhoeffer  limitou-se a dizer que o seu desejo era “aprender a crer”.

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Sem desmerecer da obrigação grave da Igreja em promover a paz e outros valores caros à humanidade secularizada – tarefa a intensificar sempre mais e melhor –, não pode deixar de explicitamente se lhe oferecer Cristo em palavra e testemunho operativo, na certeza de que “onde não há amor não há verdade”, como dizia o ateu humanista Ludwig Andreas Feuerbach na sua elucubração filosófica.   

2020.08.26 – Louro de Carvalho

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