A 22 de abril deste ano, a Revista
IHU online publicava uma entrevista de Harald Malschitzky a Andriolli Costa a assinalar os 75
anos do martírio do alemão Dietrich Bonhoeffer, teólogo e
pastor luterano, que morreu enforcado, num campo de concentração, ao lado de
familiares seus, no dia 9 de abril de 1945,
semanas antes
do fim da 2.ª Guerra Mundial.
Este pensador e professor de teologia – que disse limitar-se a desejar
“aprender a crer” e que não existe o deus ex-machina que num instante inverte
as coisas, cabendo “ao ser humano secularizado assumir o seu papel no
mundo etsi Deus non daretur e aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha” – é considerado um dos poucos teólogos mártires do
cristianismo, talvez por não raro a academia se encerrar em discussões
herméticas e o teólogo mártir, no dizer de Malschitzky, se interrogar sobre “a relação entre fé e vida como ela é e acontece, facto
tantas vezes ignorado na teologia académica”.
Malschitzky, autor do livro “Dietrich Bonhoeffer - Discípulo, testemunha, mártir” (São Leopoldo: Sinodal, 2005), faz uma resenha histórica da sua
vida, da resistência a Hitler e à luta contra a nazificação
da Igreja; e, na predita entrevista, conta como o teólogo insistiu na defesa
dos judeus, se envolveu na emigração clandestina e se infiltrou com um grupo
com parentes e amigos no estado-maior do exército alemão para promover o
derrube de Hitler, porque “a Igreja não se pode limitar a cuidar de feridos e
enterrar mortos”, como diz Malschitzky. Assim, a ação do teólogo ativista
não passou despercebida ao Governo, o que acabou por o levar ao cárcere, onde
passou a desenvolver “boa parte de sua produção mais relevante, articulando
momentos de desesperança com o terror vivido com a fé”, em resposta à grande
inquietação teológica como um Deus bondoso pode permitir o sofrimento de seus
filhos, ou seja, como pode o todo-poderoso permitir a existência do mal.
Bonhoeffer, ao sustentar que deveríamos viver no mundo como se Deus não
existisse, não nega o divino, mas propõe a assunção dos destinos do mundo sob a
nossa própria responsabilidade, pois na teologia cristocêntrica, onde a cruz
tem grande importância simbólica, dizia:
“Cristo
ajuda-nos não pela sua omnipotência, mas pela sua debilidade e sofrimentos”.
***
Harald Malschitzky, de 74 anos, pastor
e professor aposentado da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil – IECLB e que foi orientador de estudos
na Escola Superior de Teologia – EST, em São Leopoldo, refere que Bonhoeffer figura entre os ícones
ortodoxos numa igreja ortodoxa de Nürnberg (Alemanha)
e é reconhecido como mártir para além da Igreja, com uma trajetória de vida
estribada em diversas raízes, tendo vivido num momento em que um bom segmento da
teologia se interrogava sobre “a relação entre fé e vida como ela é e
acontece”.
Da sua teologia radicalmente
cristocêntrica brotava a pergunta pelo significado e papel de Cristo na
vida, a que respondia dizendo que “o cristão coloca a sua vida ao serviço dos
outros e a Igreja só tem razão de ser se está aí para os outros”, pois “não tem
um fim em si mesma”. Daí decorre outrossim a atuação noutros países e o
envolvimento ecuménico. Assim, em 1930, estabeleceu um intercâmbio com um
seminário em Nova Iorque para conhecer as comunidades negras (em tempo de segregação racial), que passaria a frequentar, tendo “o canto alegre, os testemunhos, mas
principalmente a ligação da fé com a realidade e a esperança de novos tempos
aqui e agora” causado tanto impacto, que Bonhoeffer classificou esse tempo
como “uma espécie de conversão”.
Com a ascensão de Hitler, aplicava-se
à Igreja o parágrafo do arianismo à luz do qual seriam demitidos os pastores e
padres de ascendência judia, avizinhando-se a tomada da Igreja pelos teuto-cristãos
e o crescente cerceamento e perseguição aos judeus. Ora, regressado à Alemanha,
já em 1933 Bonhoeffer refletia sobre o poder ilimitado de Hitler e os seus riscos. Nesse sentido, ocupou-se com a questão dos judeus,
empenhou-se na criação da Igreja Confessante, coordenou a formação clandestina de
pastores, envolveu-se no mundo ecuménico para que a Igreja estatal alemã não
fosse reconhecida e esforçou-se por abrir os olhos de outros países para a
tormenta no horizonte alemão. Neste cenário de enorme empenho teológico,
cristalizava cada vez mais a ideia-força de que o empenho cristão pelo ser
humano pode implicar ações políticas radicais. Por isso, foi categórico em
afirmar que “só tem direito a cantar
gregoriano aquele que defender os judeus”, envolveu-se na emigração clandestina
dum grupo de judeus e, em relação à loucura de Hitler, concluiu que “a Igreja
não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos”, mas que é preciso
arrancar do volante do carro “aquele que machuca e mata”. Depois, com parentes
e amigos no estado-maior do exército alemão, infiltrou-se nesse grupo para
promover o derrube do führer. E
era um agente da causa no mundo ecuménico.
No âmbito da vigilância das suas
ações e passos, foram sucessivamente cassados os seus campos de atuação na
universidade, a publicação dos seus livros, o seminário clandestino de Finkelwalde (que
seria reaberto na Pomerânia). Em 1943, foi preso, passou por algumas
prisões e campos de concentração até que, a 9 de abril de 1945, foi executado,
com outras pessoas do grupo, em Flossenbürg, no sul da Alemanha.
Segundo Malschitzky, Bonhoeffer não desenvolveu uma teologia
específica na prisão. Não obstante, as centenas de cartas “revelam uma enorme
confiança em Deus e a clareza de que os cristãos e a Igreja só têm razão de
existir em função dos outros”. Parte da sua Ética,
publicada de forma fragmentada, foi escrita na prisão, tal como alocuções de
casamento e batismo, textos que expressam uma tremenda confiança em Deus. E orações
escritas para outros prisioneiros dão conta de uma fé enorme num Deus que
cuida da sua criatura. Isso não quer dizer que não houvesse dúvidas e
questionamentos. E a poesia “Quem sou” eu expressa bem as duas
coisas.
Para Bonhoeffer, para quem não há
deus ex-machina, o ser humano secularizado
precisa de assumir o seu papel no mundo como se Deus não existisse e incumbe
aos cristãos “apontar rumos éticos de convivência e partilha” – mais um motivo
para a decisão pessoal e radical de Bonhoeffer como cristão. Assim, nos campos
de concentração, passava muito tempo a conversar com funcionários e guardas que
o vigiavam, porque eram criaturas amadas por Deus e muitos sofriam com o que
acontecia. Por conseguinte, os horrores do nazismo e outros tantos têm de ser
debitados na conta do ser humano que se brutaliza e se deixa brutalizar.
Grande número de leigos e pastores na
igreja evangélica identificava-se com o nacional-socialismo e concordava com as
medidas de Hitler com base no parágrafo ariano
extensivas à Igreja. Assim, uma eleição convocada à última hora, em 1933,
elegeria um bispo identificado com o nazismo. Bonhoeffer e outros empenharam-se,
com forte panfletagem, por outro candidato. Porém, 70% dos votantes escolheram Ludwig Müller, o candidato da situação. Em seguida, o
grupo de Bonhoeffer elaborou um documento, conhecido
como Confissão de Bethel, a base para a “Confissão de Barmen”, que esteve na origem da Igreja Confessante. É certo que, nesse período, Bonhoeffer aceitou o
convite para trabalhar durante algum tempo numa comunidade em Londres,
mas acompanhava atentamente os acontecimentos na Alemanha e na sua Igreja pelas
notícias e pelas visitas a Berlim. Não participou diretamente da
elaboração na “Declaração de Barmen”, mas identificou-se com os seus
propósitos. E, de 29 a 31 de maio de 1934, reuniu-se uma assembleia que, em 6
pontos, condenou a doutrina dos teuto-cristãos (cristãos alemães) e criou a Igreja
Confessante em
oposição à Igreja Protestante que se identificava com o nazismo. O ponto
fundamental da declaração e a base da Igreja Confessante estão traduzidos nas seguintes palavras da Confissão de Barmen:
“Condenamos
a falsa doutrina segundo a qual a Igreja pode e deve reconhecer como fonte da sua
pregação, além e ao lado da única palavra de Deus, ainda outros acontecimentos
e poderes, figuras ou verdades como se fossem revelações de Deus”.
A princípio, a Igreja Confessante era tolerada, o que não durou muito. Logo em 1934, no
mundo ecuménico, Bonhoeffer empenhou-se em que ela fosse
reconhecida como a única representante legítima do protestantismo da Alemanha.
E, como o CMI (Conselho
Mundial de Igrejas) convidara
representantes das duas Igrejas para uma conferência na Dinamarca,
em 1934, o desafio para a Igreja Confessante foi preparar pastores e pregadores
para as comunidades. Com efeito, saíam dos bancos da universidade sem qualquer
prática, pelo que foram criados 5 seminários de pregadores, ficando um deles, o
da Pomerânia, sob orientação de Bonhoeffer,
que tinha criado um primeiro à beira do Mar Báltico, que transferiu para Finkenwalde.
Esta Igreja Confessante esteve
sempre em minoria e todos os seus passos começaram logo a ser controlados e
cerceados até à proibição final. Muitos dos seus elementos foram parar a campos
de concentração. Terminada a guerra, em outubro de 1945, alguns dos cristãos
que tinham raízes na Igreja Confessante elaboraram e publicaram a Confissão de Culpa de Stuttgart, em que assumem a culpa, entre outros, por omissão
face ao nazismo.
A propósito da asserção bonhoefferiana de que deveríamos agir num mundo sem Deus, mas sem negar o
divino, o entrevistado pensa que o teólogo entendia que “o processo de secularização radical
iria às últimas consequências”. Assim, num mundo secularizado, que não negava necessariamente
Deus, mas que assumia os destinos do mundo sob a sua responsabilidade, a
questão que se levantava era como poderia a Igreja falar e agir com o mundo
secularizado. Ora, sendo na agenda dessa humanidade secularizada a paz como
única forma de sobrevivência, o papel da Igreja universal seria convocar para a
paz. Por isso, em agosto de 1934, quando era claro que Hitler queria
guerra, Bonhoeffer clama numa convenção ecuménica
na Dinamarca:
“Como
se concretiza a paz? Quem convoca para a paz de forma tal que o mundo o ouça,
seja obrigado a ouvir? Somente o grande concílio ecuménico da Santa Igreja de
Cristo de todo o planeta poderá fazê-lo de maneira que o mundo, rangendo os
dentes, tenha que ouvir a palavra da paz, e os povos fiquem felizes, porque
esta Igreja de Cristo arrancará as armas das mãos de seus filhos em nome
de Cristo, proibindo-lhes a guerra e proclamando a paz de Cristo a todo este mundo delirante.”.
Porém, como não houve concílio, nem
toda a sabedoria e capacidade diplomática e política do ser humano secularizado
evitaram a guerra, boa parte dos cristãos (protestantes e católicos) foram pela guerra e todos viram e sofreram a fúria do mal a
matar e destruir sem distinção.
Sobre a reação de Deus face ao sofrimento do seu Filho na cruz e ao nosso
sofrimento, Malschitzky aponta que “ a Bíblia conhece momentos da ausência
de Deus” e que Jesus “sentiu esse abandono na cruz”, quando
exclamou: ‘Meu Deus, meu Deus, para que me desamparaste?’. E, a este
respeito, Bonhoeffer interrogava-se como Deus podia
concordar com isso (o
sofrimento vicário do próprio filho de Deus continua em discussão), mas, apesar de não compreender o
seu Deus, “vislumbrava a sua bondosa mão também por detrás do sofrimento”. E
Malschitzky explica:
“Era
sua fé, que o mesmo Deus acompanhava seus filhos e filhas em todos os momentos.
Não vamos encontrar em Bonhoeffer a tentativa de explicar isso de
forma racional e lógica. Eu pessoalmente confesso que tenho aqui todas as
dificuldades. A ausência de Deus por vezes é
angustiante. Continuo, porém, na busca de respostas.”.
Em relação à tese de que que Cristo nos ajuda não pela omnipotência, mas pela
sua debilidade e sofrimentos”, Harald Malschitzky explicita que “o ser humano não é marioneta
de Deus”, pois “foi criado com liberdade e
recebeu a incumbência de cuidar do mundo e da criação”. Neste sentido, Deus “admoesta
e procura indicar e corrigir o rumo da humanidade através de pessoas” (por exemplo, os profetas); e não é o livre arbítrio (que não é tão livre) que é problemático, mas “a
arbitrariedade pura e simples praticada pelo nazismo” (e não só por ele). Ora, “Cristo na
sua debilidade acompanha as pessoas nas suas derrotas, dando-lhes força e ânimo
para continuarem, à revelia de tudo”; e “a sua mensagem, vivida e sofrida é de
paz e comunhão e de respeito justamente pelos seres mais debilitados”.
À questão como explicar, a partir do pensamento de Bonhoeffer, a atuação
divina nos tempos sombrios da Shoah, Malschitzky, precisando que o teólogo não conheceu o conceito
de Shoah, que seria aplicado ao genocídio perpetrado pelo nazismo só depois da guerra, assegura que não lhe era
desconhecido o que estava a acontecer, já que a Shoah “mexe nos alicerces
da fé de qualquer cristão e todos os grandes e pequenos programas de reparação
promovidos por povos e Igrejas não o mudam”, não se tratando “de defender a fé
em Deus, mas de a testemunhar para que se encontrem formas de paz duradoura
para todos os povos e crenças ou descrenças” – testemunho que não nasce duma fé
heroica, mas da debilidade que se limita a dizer: “Senhor, eu creio, ajuda-me na minha falta de fé”.
Por fim, Malschitzky diz que o martírio não era aspiração de Bonhoeffer,
pois até pensou no suicídio na prisão, não como ato de coragem, mas por medo de
não suportar as torturas e acabar a trair o movimento que queria tirar Hitler do
poder. Por outro lado, nos EUA, conheceu o teólogo
católico, Jean Lassere, pacifista decidido. E, num diálogo,
enquanto este manifestava desejar ser santo, Bonhoeffer
limitou-se a dizer que o seu desejo era “aprender a crer”.
***
Sem desmerecer da obrigação grave da
Igreja em promover a paz e outros valores caros à humanidade secularizada –
tarefa a intensificar sempre mais e melhor –, não pode deixar de explicitamente
se lhe oferecer Cristo em palavra e testemunho operativo, na certeza de que “onde
não há amor não há verdade”, como dizia o ateu humanista Ludwig Andreas Feuerbach na sua
elucubração filosófica.
2020.08.26 – Louro de Carvalho
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