Sou dos
tempos em que os livros de piedade fora da caixa recusavam o Deus pensado pelos
filósofos por ser poderoso, distante e inacessível, talvez por confiarem
demasiado no raciocínio de quem, olhando para a admirável obra da criação, não
vê mais do que o arquiteto, o demiurgo, o motor imóvel, na linha da
transcendência, ou mesmo o deus confundido com o universo, o deus ex machina, na linha da imanência
do panteísmo.
Deus
assim entendido dava azo a que muitos questionassem a sua presença no mundo e
mesmo a sua existência, o que, face à cómoda tentação do ateísmo despertava nos
crentes a busca de argumentos para provar a existência de Deus. Mesmo havendo
filósofos que afastavam a possibilidade de chegar ao conhecimento de Deus pela
razão, restando a via da fé, a maior parte dos filósofos cristãos encontrou
caminhos racionais de chegar ao conhecimento da existência de Deus, obviamente
vias indiretas, e às suas caraterísticas, a estas pela via da negação dos
defeitos humanos em Deus e pela exaltação e sublimação da qualidade conhecidas
pelo ser humano.
Aliás, o
conhecimento de Deus pela obra criada é atestado na Carta de Paulo aos Romanos:
“Porque o conhecido de Deus (tò
gnóstòn toû Theoû) está manifesto
entre eles (os homens), pois Deus lho manifestou. As coisas invisíveis (aórata) d’Ele desde a criação do mundo são vistas enquanto coisas inteligíveis
(noûmena) nas suas obras, sendo elas o seu eterno poder e divindade, pelo que eles
(os pagãos) não se podem desculpar.
Porque, tendo conhecido Deus, não O glorificaram como Deus nem lhe deram
graças. Pelo contrário, tornaram-se fúteis nos seus pensamentos e obscureceu-se
o seu coração insensato. Afirmando-se como sábios, tornaram-se absurdos (emôránthêsan – de móros, tolo) e
transformaram a glória de Deus incorrutível numa parecença de figura humana
corrutível de aves de quadrúpedes e de répteis.” (Rm 1,19-23).
Mais
tarde, surgiu o agnosticismo que, estribado na negação do conhecimento racional
de índole positivista reservando aos sentidos o monopólio do conhecimento, não
queria saber se Deus existe ou não, o que praticamente dá na atitude ateísta.
E, não contentes com isso, surgiram as correntes antiteístas a combater Deus.
Porém, com o laicismo, na versão tendente a proscrever a religião ou a
remetê-la para o campo da consciência, começou a campear o indiferentismo.
Entretanto,
no campo das ciências, que em certos momentos se opôs à existência Deus e sua
intervenção no mundo por não haver mostras no campo da observação e da
simulação, surge, pelos vistos com Einstein, a ideia de provar a existência de
Deus pela via científica.
Einstein,
com muitos outros, não cria no Deus da Bíblia por alegadamente campear guerras,
destruições e mortes e permitir o mal no mundo. Até se enuncia o trilema: se é
bom, não pode permitir o mal; se não permite o mal, não dá liberdade ao homem;
se não dá liberdade ao homem, não é liberal e omnipotente. Isto é entendível,
se se ler o Antigo Testamento somente pela vertente mais escura e desligado da
cultura em que foi gerado e fixado ao longo do tempo.
É a
insuficiência da mecânica, da termodinâmica, da eletromecânica e da eletrodinâmica, que põe os
cientistas na rota da descoberta de Deus para explicar a génese, manutenção e
destino do universo. A isto ajudaram paradoxalmente as teorias da relatividade,
o princípio da incerteza, a física quântica e a teoria do tudo. Não obstante, o
que os cientistas buscam não é o Deus transcendente, mas uma partícula que
tenha gerado o universo, o explique na vertente determinista e indeterminável,
nas leis e nos aspetos não lineares. Enfim, trata-se de um Deus matéria, massa,
energia. Chegaram a proclamar, há uns anos a esta parte, que estava descoberta
a partícula de Deus, o bosão, que é a chave explicativa do universo. Não são
fáceis em aceitar o Deus que ajuda e de quem nos lembramos apenas quando nos
sentimos impotentes ou aflitos perante as agruras e fragilidades com que a vida
presenteia a humanidade.
Porém,
Einstein, não aceitando o Deus bíblico, entendia que a chave estava no Génesis:
“no princípio, em seis dias, Deus criou o mundo…”. E atribuía a cada um dos
dias uns bons milhões de anos segundo a contagem hodierna.
***
Ora, já
a linha veterotestamentária evidenciava a tutela providente de Deus para com o
povo escolhido, com o qual estabelecera uma aliança ante todos os povos, mas
que o povo britava a cada passo caindo na idolatria. E, ao mesmo tempo, o Deus
de Israel mostrava que também inspirava outros povos e outras entidades na via
do bem como é o caso de Ciro II, da Pérsia.
Assim, a
passagem do livro de Isaías (Is 55,1-3), proclamada no XVIII domingo do
Tempo Comum no Ano A, mostra o profeta a convidar
os exilados a cumprirem um novo êxodo, deixando a Babilónia, que se tornara
terra da escravidão, e dirigindo-se para a terra da liberdade – a nova
Jerusalém que Deus vai reconstruir para o seu Povo, onde Judá redescobrirá o
Deus pessoal e libertador, que faz abundar a justiça, a prosperidade, a
abundância e a paz. Através da imagem dum “banquete”, à roda da mesa de Deus, o
Povo sofredor, encontrará trigo, “vinho”, “leite” e “manjares suculentos”. Por
isso, o convite à aquisição, gratuita e abundante, de água, vinho e leite para
que, saciados, prestem atenção a Deus e as suas almas vivam.
Não era fácil deixar a relativa segurança babilónica de 40
anos para encarar uma terra devastada e recomeçar. Com efeito, muitos exilados,
correspondendo ao apelo de Jeremias (cf Jr
29),
tinham construído as suas casas e refeito as suas vidas no solo babilónico. Por
isso, agora Isaías faz referência ao gasto do “dinheiro no que não alimenta” e
ao “trabalho no que não sacia”, o que parece dizer respeito ao facto de muitos
exilados pretenderem continuar na Babilónia, em vez de arriscarem o regresso às
raízes. E o profeta adverte para a necessidade da coragem de arriscar e partir
ao encontro do sonho. E aos que forem capazes de abrir o coração ao dom, Deus
oferecerá, gratuita e incondicionalmente, a vida em abundância, a felicidade
infinita, apoiada numa aliança eterna, que nada nem ninguém poderão romper. Quem
aceitar o dom de Deus viverá uma relação nova com Deus e integrará, em definitivo,
a comunidade do Povo de Deus.
E o
Evangelho, que é tão abundante nas manifestações do cuidado que Deus tem com as
suas criaturas, também na perícopa mateana proclamada na liturgia desta dominga
(Mt
14,13-21), nos
apresenta Cristo como o rosto misericordioso e providente do Pai que ama
efetiva e afetivamente os seus filhos. E este Deus interessa muito mais que o
dos filósofos e os dos cientistas, porque apostar n’Ele e com Ele, gera vida que
não acaba, felicidade que não falha.
Na
verdade, Mateus anota que Jesus se retirou para
o deserto, seguido por uma “grande multidão”, e, impressionado pela fome de
vida dessa gente, Se encheu “de compaixão e curou os seus doentes”. Era, de
facto, necessário que o novo Moisés libertasse o Povo da escravidão e o
conduzisse pela mão paterna e materna à terra da liberdade e da vida.
O deserto por onde Moisés levou o Povo ficou na memória pessoal
e coletiva como tempo e espaço do encontro com Deus. Aí, Israel soube despir-se
de suas seguranças e autossuficiência e descobriu que cada passo rumo à
liberdade é um “milagre” que é preciso acolher de coração agradecido ao amor de
Deus. Mais: o deserto é o lugar e o tempo da partilha e da igualdade. É a
experiência de deserto que Jesus convida os discípulos a fazer, ensinando-lhes
que tudo é um dom e que o dom de Deus é para ser partilhado, colocado ao
serviço dos irmãos. E, deste processo de dom, nascerá a comunidade do Reino. A primeira
multiplicação dos pães – ou melhor, a divisão, condivisão ou partilha –
realizada, neste caso, no mundo judaico apresenta todas as caraterísticas duma
lição destinada a mostrar como deve viver quem adere ao Reino na fidelidade ao
projeto de salvação oferecido pelo Pai em Jesus.
O primeiro momento deste processo pedagógico é marcado pela
verificação da fome do mundo e pela responsabilização da comunidade nesse
problema. Com efeito, quando os discípulos Lhe pedem que mande a multidão
embora, para que encontre comida, Jesus desafia: “dai-lhes vós de comer”. De facto, o episódio evidencia o comportamento compassivo, acolhedor, hospitaleiro, inclusivo
e de partilha de Jesus em contraste com o comportamento insensível, não acolhedor,
exclusivista, frio, mercantilista, consumista, egoísta e egocêntrico dos
discípulos, que propõem a Jesus que mande as pessoas embora, para que cada um
compre de comer para si mesma.
Isto quer dizer que eles têm uma responsabilidade indeclinável
face ao grito dos pobres, de modo que nunca o verdadeiro discípulo de Jesus
dirá que não tem nada a ver com a fome, com a miséria, com as necessidades dos
mais desfavorecidos. Ao invés, qualquer irmão necessitado é da responsabilidade
dos discípulos de Jesus, não podendo ser votado ao “salve-se quem puder”.
Num segundo momento, Jesus ensina a responder ao desafio.
Pede aos discípulos a listagem dos bens disponíveis; depois, toma os “cinco
pães e dois peixes”, recita a bênção e manda repartir por todos os presentes. Todos
comeram até ficarem saciados e ainda houve sobras. O verbo grego usado para
dizer “sobrar” é perisseúô, que implica o excesso que ultrapassa toda
a medida e a abundância que transborda, tornando inadequadas todas as nossas
pequenas medidas.
Isto quer dizer que, face ao apelo dos pobres, a comunidade tem
de aprender a partilhar na totalidade. Efetivamente “cinco pães e dois peixes” são
sete, pelo que significam a totalidade do que se tem e com que se responde à
carência dos irmãos – totalidade fracionada e diversificada, mas que sacia a
fome do mundo, uma vez colocada ao serviço dos irmãos. A comunidade do Reino é,
pois, uma comunidade de coração aberto e que, vencida a escravidão do egoísmo,
está disposta a repartir tudo o que tem, numa dinâmica de experiência da partilha
que sacia e que torna irmãos todos os homens.
A questão está em partilhar mais, de preferência tudo. O que
Jesus ensina a estes discípulos de mentalidade consumista é que condividir,
partilhar, é a melhor maneira de multiplicar. Não é preciso produzir mais para
partilhar mais. A grande operação com o sinal de dividir é na lousa do coração
que se faz. É isto o que sublinha Dom António Couto, Bispo de Lamego.
E, num
terceiro momento, Jesus dá a razão para a
partilha. “Tomou os cinco pães e os dois
peixes, ergueu os olhos ao céu e recitou a bênção”. A bênção é uma fórmula
de ação de graças, que significa reconhecer que algo que se possui é um dom
recebido de Deus em favor de todos os filhos de Deus. Na verdade, quem recebeu
o dom não é o dono, mas um administrador a quem Deus o confiou, para que o
pusesse ao serviço dos irmãos com a mesma gratuitidade com que o recebeu. É
isto o que implica a relação pessoal entre Deus e nós.
E diz
Dom António Couto que a celebração da
Eucaristia, com Jesus sempre no meio de nós, partindo e repartindo o seu pão,
reclama de nós que ensaiemos novas maneiras de fazer, pois o milagre não
consistiu em aumentar a quantidade, mas em abrir os olhos aos discípulos que só
conhecem a lógica consumista e não saboreiam a lógica da gratuitidade, que é a
do nosso Pai celeste que faz nascer o sol para os bons e para os maus, que
cuida de todos nós e insta ao nosso cuidado para com todos, já que nos criou à
sua imagem e semelhança. Aprenderemos?
2020.08.02 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário