quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Veto do Presidente da República aos Decretos n.º 46/XIV e n.º 59/XIV

 

A 10 de agosto, nos termos do n.º 1, in fine, do art.º 136.º da Constituição, o Presidente da República devolveu, sem promulgação, dos 19 que apreciou, os dois diplomas da Assembleia da República (AR) mencionados em epígrafe, acompanhados das convenientes mensagens dirigidas ao seu Presidente.

O Decreto n.º 46/XIV configura a 3.ª alteração à Lei n.º 43/2006, de 25 de agosto, alterada pelas Leis n.os 21/2012, de 17 de maio, e 18/2018, de 2 de maio relativa ao acompanhamento, apreciação e pronúncia pela AR no âmbito do processo de construção da União Europeia (UE); e o Decreto n.º 59/XIV configura a 1.ª alteração à Lei n.º 17/2014, de 10 de abril, que estabelece as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional.

Nos termos do Decreto n.º 46/XIV, a AR procede ao acompanhamento e à apreciação da participação portuguesa no processo de construção da UE, designadamente, através da realização de debate semestral em plenário, com a participação do Primeiro-Ministro, iniciado pela sua intervenção, para preparação e avaliação dos Conselhos Europeus (CE) a realizar em cada presidência, sem prejuízo da realização de debate adicional, a pedido da Comissão de Assuntos Europeus, quando circunstâncias excecionais o justifiquem. Além disso, a AR procede ao acompanhamento e à apreciação da participação portuguesa no processo de construção da UE, através da Comissão de Assuntos Europeus através da realização de debate na Comissão de Assuntos Europeus, com a presença de membro do Governo, a realizar antes de cada CE, exceto quando o debate se encontre agendado para sessão plenária; de reuniões, nas semanas posteriores à data da realização do CE, entre a Comissão de Assuntos Europeus e membro do Governo, para avaliação das respetivas conclusões; e de reuniões conjuntas entre a Comissão de Assuntos Europeus, a comissão parlamentar competente em razão da matéria e o membro do Governo competente sobre os diversos instrumentos de governação económica da UE, que integram o Semestre Europeu.

Já o Decreto n.º 59/XIV estabelece que “a política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional define e integra as ações promovidas pelo Estado português e pelas regiões autónomas, visando assegurar uma adequada organização, gestão e utilização do espaço marítimo nacional, na perspetiva da sua valorização e salvaguarda, tendo como finalidade contribuir para o desenvolvimento sustentável do País”.

Estabelece também a “gestão conjunta entre a administração central e regional dos poderes de gestão sobre as águas interiores e o mar territorial que pertençam ao território regional e que sejam compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado”, bem como a “gestão partilhada, com as regiões autónomas, do espaço marítimo sob soberania ou jurisdição nacional adjacente aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, exercida entre os órgãos da administração central e regional competentes em razão da matéria, salvo quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado”.

É da competência do Governo “promover políticas ativas de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional e prosseguir as atividades necessárias” à aplicação desta lei e legislação complementar, sem prejuízo das competências dos governos regionais no quadro de uma “gestão conjunta ou partilhada”. E cabe ao competente membro do Governo “desenvolver e coordenar as ações necessárias ao ordenamento e à gestão do espaço marítimo nacional, sem prejuízo dos poderes exercidos no quadro de uma gestão conjunta ou partilhada com as regiões autónomas, e, sempre que necessário, assegurar a devida articulação e compatibilização com o ordenamento e a gestão do espaço terrestre”.

Nos termos do art.º 8.º, “os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional são elaborados e aprovados pelo Governo”, sem prejuízo das competências dos órgãos regionais”; e, desses instrumentos, os que respeitem à plataforma continental além das 200 milhas marítimas são elaborados e aprovados pelo Governo, mediante parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas, “salvo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado”.

Estes instrumentos “são publicados em Diário da República e, no caso das regiões autónomas, no jornal oficial da respetiva região”.

À lei que altera o presente decreto adita o artigo 31.º-A, que estabelece que as matérias referentes aos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional, utilização do espaço marítimo nacional, articulação e compatibilização com outros instrumentos de ordenamento e de planeamento, utilização de águas do litoral e salobras para fins aquícolas, disponibilização de informação e relatórios sobre o estado do ordenamento e utilização do espaço marítimo nacional, “são desenvolvidas, nas Regiões Autónomas, mediante decreto legislativo regional, sempre que em causa estejam áreas do espaço marítimo nacional sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes aos respetivos arquipélagos até às 200 milhas marítimas, mediante a emissão de parecer da administração central”, que é obrigatório e vinculativo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado, sendo desenvolvido com base nos princípios do art.º 3.º (abordagem ecossistémica; gestão adaptativa e integrada; coordenação e compatibilização com o ordenamento do espaço marítimo com as demais políticas públicas; valorização e fomento das atividades económicas a longo prazo; coerência; e coordenação regional e transfronteiriça).

Os termos de definição do ordenamento e gestão das áreas do espaço marítimo nacional sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, comporta: a transferência para as regiões autónomas de competências da administração central quanto ao espaço marítimo sob soberania ou jurisdição nacional adjacente aos respetivos arquipélagos até às 200 milhas marítimas, salvo quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado; a participação dos serviços da administração central no procedimento prévio dirigido à aprovação dos planos de ordenamento e gestão do espaço marítimo até às 200 milhas marítimas, mediante parecer, obrigatório e vinculativo, nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado; a constituição de procedimentos de codecisão, no âmbito da gestão conjunta ou partilhada, entre a administração central e regional autónoma, quando esteja em causa o regime económico e financeiro associado à utilização privativa dos fundos marinhos; e a competência exclusiva das regiões autónomas para licenciar, no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado, designadamente, atividades de extração de inertes, pesca e produção de energias renováveis.

Mais: o Decreto-Lei n.º 38/2015, de 12 de março, que desenvolve a lei ora alterada deve ser alterado de acordo com a presente lei, no prazo de 60 dias a contar da entrada em vigor desta.

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Na mensagem enviada à AR sobre o Decreto N.º 46/XIV, o Presidente da República chama a atenção para o facto de o regime em vigor prever um debate sobre temas europeus, em plenário antes de cada reunião do CE, ou seja, em média, 6 ou mais debates anuais, normalmente, a seguir aos até há pouco existentes debates quinzenais com o Primeiro-Ministro; anota que, aduzindo a valorização os debates em plenário sobre os citados temas europeus, o novo regime prevê dois debates por ano, um no início de cada Presidência semestral do CE, autónomos e mais longos, remetendo os restantes para Comissão Parlamentar, a menos que esta, por razões excecionais, proponha a inscrição em plenário ou este chame o Governo para debate.

Não obstante, pensa que a solução se não afigura feliz na perceção pública nem no tempo escolhido. Com efeito, dois debates sabem a pouco, a comissão parlamentar não é plenário, a prática revela que a velocidade dos acontecimentos ultrapassa sempre “a visão simplificadora de que um debate semestral é suficiente para abarcar uma presidência” e a leitura mais óbvia é a da desvalorização dos temas europeus e do papel da AR perante eles. E o tempo escolhido não é adequado, a 4 meses antes do começo da presidência portuguesa do CE é o pior momento, pois esperar-se-ia maior importância da perceção pública do caráter nuclear do envolvimento nacional na UE. Por isso, solicita à AR que pondere “se não é, no mínimo, politicamente mais adequado prever mais um debate em plenário, a meio de cada semestre, ou seja, a meio de cada presidência do Conselho da União Europeia”.

Na mensagem enviada à AR sobre o Decreto N.º 59/XIV, o Presidente da República começa por declarar que não vê razões “para, à luz da jurisprudência constitucional, aliás acompanhada, de forma claramente maioritária, pela doutrina, suscitar a fiscalização preventiva da inconstitucionalidade de qualquer das suas normas”, já que estas “ressalvam a primazia da integridade e da soberania do Estado, que tornam indelegáveis os poderes primários sobre o domínio público marítimo. Com efeito, exclui-se a necessidade de parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas nas matérias relativas aos princípios cuja observância cabe à República e comete-se ao Governo a elaboração e aprovação dos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional; e exige-se parecer obrigatório e vinculativo da administração central para os decretos legislativos regionais de desenvolvimento das matérias referentes que envolvam os princípios da integridade e da soberania do Estado. Mesmo assim, o Chefe de Estado entende que o atinente ao art.º 31.º.-A nos aspetos respeitantes a poderes secundários, entendidos como delegáveis, deve merecer reflexão complementar e precisão acrescida. Mais entende que se deve exigir que os procedimentos de codecisão constem dos instrumentos de ordenamento previstos no n.º 3 do artigo 8.º (os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional que respeitem à plataforma continental para além das 200 milhas marítimas), garantindo assim a conjugação entre Estado e regiões autónomas na definição desse traçado; e que será importante ressalvar explicitamente as matérias relativas à integridade e à soberania do Estado, para atenuar problemas subsequentes, criados pelo caráter exemplificativo da enumeração das atividades objeto de licenciamento para utilização privativa, que pode incluir outras, além das mencionadas, de potencial relevância para a soberania. Por isso, devolve o diploma para os ajustamentos que a AR considerar pertinentes.

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Os partidos mais à direita já vieram congratular-se com o veto presidencial, sendo que o CDS entende que essa atitude não é suficiente para garantir o apoio à recandidatura de Marcelo. O BE já declarou que há outras soluções, sobretudo no âmbito da lei que estabelece as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional. Ana Paula Vitorino, ex-ministra do Mar e integrante do grupo de socialistas que estão contra o teor das alterações à Lei n.º 17/2014, de 10 de abril, saúda o veto e diz que o país não pode ter três mares, como sugere o decreto da AR. E o PS já veio publicamente dizer que vai ponderar as razões do Presidente.

Devo dizer que é excrescente a explicação que apresenta sobre os motivos por que não submeteu ao Tribunal Constitucional o Decreto 59/XIV. Se não viu motivos para suspeitar da inconstitucionalidade das suas normas, não viu. Não tem que dar lições aos deputados.

Todavia, parece-me que tem razão em opor o veto político – aliás é direito que lhe assiste – aos dois decretos em causa. Penso, no entanto, que sugerir o aumento de dois debates com o Governo sobre assuntos europeus continua curto. O Presidente, enquanto moderador não tem de se colocar na posição comedida do in medio virtus. O argumento do tempo escolhido vale pouco, pois, uma coisa má é-o em todo o tempo. E o debate em plenário deve ser reforçado com aumento e valorização do debate e não com a sua diminuição. Ora, sem desprimor pelas comissões, que trabalham e afinam as matérias, a AR manifesta a sua força no plenário.

No atinente à lei do mar, Marcelo tem razão na sustentação do veto, sendo que essa lei, a meu ver, merecia reformulação maior, sobretudo se tivermos em conta a “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, de Costa e Silva. Onde está na lei, por exemplo, Portugal como líder marítimo ou o respaldo para a criação da universidade atlântica?

Porém, o Presidente da República não tem de criticar o regimento da AR, como já fez embora se interferir, nem a substitui. E o que esta fará melhor será deixar cair os preditos decretos – o primeiro por descabido, o segundo por insuficiente – e enveredar pela formulação de uma nova lei de “Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional”.   

2020.08.12 – Louro de Carvalho

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