segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A realização da Festa do Avante continua na berlinda

 

Não promoveria a Festa do Avante num contexto de pandemia e numa área metropolitana que está em situação de contingência. Sei que se trata duma iniciativa política, mas que não se esgota nessa dimensão e, por outro lado, dá-se, mal ou bem, ao país a ideia dum regime de exceção. Não obstante, é de anotar que poucas organizações têm a capacidade de disciplinar eventos como o PCP e que muitos artistas terão, de 4 a 6 de setembro, na Quinta da Atalaia, no Seixal, espaço para mostrarem que estão vivos e arrecadarem algumas receitas em tempo de crise económica para todos, mas em especial para este género de atividades.

Todavia, sabe-me a hipocrisia tanto alarido criado em torno da festa e, ultimamente, contra a Direção-Geral da Saúde (DGS). Rui Rio vem exigir que a DGS publique as regras que determinou para o evento; Marques Mendes reitera a sua oposição ao evento e compara-o com Fátima a 13 de maio, esquecendo que não são comparáveis e que aquele evento religioso foi anulado pela própria CEP e pelo Santuário de Fátima com intenção pedagógica, não pela DGS; e o Presidente da República veio, a 30 de agosto, lamentar que a DGS, a cinco dias da Festa do Avante, não tenha dado a conhecer “as regras do jogo” sobre como vão ser implementadas as medidas de segurança de saúde na festa do PCP.

A posição de Marcelo merece mais alguma atenção de momento. Disse o Chefe de Estado que ainda não se conhecia “a posição das autoridades sanitárias sobre as regras que entendem que devem presidir à [sua] realização”, ou seja, “não há conhecimento atempado, não há clareza, pois, para haver clareza, é preciso saber quais são as regras”, não se podendo saber que “há respeito pelo princípio de igualdade em relação ao que vai acontecer”. E concluiu:

Acho que isto não é bom. Não é bom para o Estado. No fundo, a DGS significa Estado. É uma Direção-Geral enquadrada no Estado.

Mais disse que esta indefinição de regras não é boa “para quem organiza”, como, “em geral, para a credibilidade que é fundamental neste momento”. E justifica:

Estamos no meio de uma pandemia. Ultimamente os valores têm subido um bocado. Mais do que noutras ocasiões, impunha-se que se soubessem as regras do jogo com clareza. E que se pudesse comparar com outras situações. Não é possível. E isso preocupa-me. Não é um bom augúrio a esta distância.”.

Marcelo, que falou aos jornalistas quando visitava as termas de Monchique, no Algarve, abordou outros assuntos, como o do corredor aéreo do Governo britânico para o Algarve, frisando não haver agora “circunstâncias que justifiquem uma inversão da última decisão, que tem dez dias, do Reino Unido em relação a Portugal”, pois “não se pode dizer que o número de casos no Algarve tenha peso significativo no número nacional”.

Sobre as declarações do Primeiro-Ministro Expresso em que pressionou os antigos parceiros da ‘geringonça’ para um acordo na aprovação do Orçamento de Estado, dizendo que no dia em que a subsistência do Governo depender do PSD, este executivo acabou, Marcelo atirou:

Cada um dos políticos tem a sua agenda mediática, a sua tática. O plano do Presidente é acima disso. E, como o Presidente tem a faca e o queijo na mão, crise que envolva dissolução não haverá. Isso depende do Presidente, não depende de mais ninguém.”.

O Presidente não quis falar da sua recandidatura a Belém, nem sobre a opinião de Costa de que seria “dramático” se Marcelo não se recandidatasse. Apenas deu a entender que até outubro não avançaria com a recandidatura, pois as eleições presidenciais só se realizam em janeiro do próximo ano e há uma pandemia pelo meio.

Considerando que a recandidatura está de vento em popa, cumpre comentar a questão da DGS.

O Presidente já sabia há muito que a questão da igualdade em relação ao Avante não se coloca ou fará ruir tudo pela base. Porém, é de relembrar que foi ele quem, na sua explicação interpretativa aquando da promulgação do diploma que entre, outras restrições, proibia os festivais, abriu generosamente a porta para este tipo de eventos. Só que os responsáveis religiosos resolveram não arriscar e os outros responsáveis políticos também não.

Depois, parece-me nada curial que o titular dum órgão de soberania venha publicamente criticar um departamento dependente de outro órgão de soberania, departamento que está a trabalhar em condições muito difíceis, marcadas pelo melindre dos números e pela síndrome da incerteza. Talvez as pressões presidenciais devessem ser feitas em privado e junto do Primeiro-Ministro ou junto da DGS. Ademais, as regras gerais de segurança sanitária são conhecidas de todos, nomeadamente: uso de máscara, distanciamento físico, lugares marcados, corredores, percursos, ajuntamento até 20 pessoas no mesmo espaço físico e redução da lotação do espaço a um terço. E, em pormenor, os organizadores devem-nas patentear no local, sendo que não é necessário que todo o país (do cima ao fundo) conheça as regras específicas dum evento e que, dada a incerteza da evolução da pandemia, não era possível defini-las com a desejada antecedência.       

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Entretanto, logo no dia 30, a DGS garantiu que já entregou as suas recomendações ao PCP e atira para os comunistas a responsabilidade de as divulgar. Reza o respetivo comunicado:

A Organização da Festa do Avante solicitou à Direção-Geral da Saúde (DGS) um parecer técnico para a realização da habitual Festa do Avante, cuja versão final foi hoje entregue à organização, tal como estava previamente previsto”.

A DGS justifica o atraso na fixação das regras para o evento com a “multivariedade da componente social do evento, assim como a participação de cidadãos de várias gerações”, o que torna a análise mais demorada e complexa que noutros casos. Evoca as várias reuniões com a organização do Avante para adequar as condições do evento às medidas de saúde pública e às circunstâncias inerentes ao contexto da pandemia de covid-19. E adianta que o recinto na Quinta da Atalaia tem “múltiplos espaços” a que se aplicam regras de restauração, eventos culturais e circulação de pessoas, sendo necessário que “estejam assegurados todos os aspetos que permitam salvaguardar não só a saúde dos participantes, mas também da comunidade, como um todo, uma vez que, epidemiologicamente, cada evento comporta riscos”. E conclui:

A multivariedade da componente social do evento, assim como a participação de cidadãos de várias gerações, faz com que este seja um evento cuja análise é demorada e mais complexa do que os inúmeros eventos que a DGS tem analisado. O parecer final, que foi hoje entregue à Organização da Festa do Avante, condensa toda a informação.”.

Os detalhes do parecer técnico só poderão ser conhecidos se o Avante (o PCP) os quiser divulgar, já que a DGS afirma que “não divulgará o conteúdo”. Mas afinal o PCP e a DGS já o fizeram.

Por seu turno, questionado sobre as críticas do Presidente e sobre a eventualidade da não publicitação das regras a DGS para a Festa do Avante, o Primeiro-Ministro indicou que as mesmas seriam divulgadas no briefing deste dia 31 de agosto. E sabe-se que a DGS impôs a redução para metade do número de pessoas presentes em simultâneo na Quinta da Atalaia. Assim, em vez das 33 mil, estarão apenas pouco mais de 16 mil presentes em simultâneo.  

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Em todo o caso, sob o espectro da Festa do Avante, mais de 40 comerciantes (agências imobiliárias, oficinas de automóveis, cabeleireiros, ginásios, restaurantes, pastelarias e outros) da zona envolvente à Quinta da Atalaia, na freguesia de Amora (Seixal) vão encerrar os seus estabelecimentos durante a Festa do Avante, por “precaução” e para “mitigar o risco” de contágio pelo novo coronavírus. Em declarações à agência Lusa, Maria Carvalho, responsável (com os filhos, marido e noras) pela cozinha do Restaurante Rota dos Petiscos Terra e Mar, estabelecimento que deu início ao movimento, no dia 30, disse ter apelado ao “bom senso dos comerciantes para que encerrassem portas”, entre 4 e 6 de setembro, dias em que decorre a 44.ª edição da Festa do Avante, dizendo que prefere fechar três dias, ainda que com sacrifício, a fechar três semanas, já que a “movimentação de pessoas durante ‘o Avante’ envolve toda a freguesia de Amora, e não apenas a Quinta da Atalaia”, onde decorre o evento anual organizado pelo PCP.

Justificando-se, Maria Carvalho frisou que “esta decisão não tem nenhuma conotação político-partidária”, pois, como disse, não tem nada contra a Festa do Avante”; apenas optou por “salvaguardar a família”. E afirmou à Lusa que vários os moradores de Amora ponderam sair de casa durante os dias da Festa do Avante por não quererem “correr riscos de saúde pública”.

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Para lá destas medidas de precaução, após a interposição duma providência cautelar entrada no tribunal de Setúbal e por este remetida a Lisboa, onde o PCP tem a sede, mais uma providência cautelar está a ser ponderada, bem como cartas abertas, discussões entre vereadores e acusações de promiscuidade, abusos e perseguições. Assim, enquanto o país discute a Festa do Avante, o Seixal prepara-se para receber os milhares de pessoas que se prevê que visitem a festa. No município que alberga a Quinta da Atalaia, o clima vai ficando visivelmente mais tenso à medida que a festa se aproxima. São várias as forças políticas que acusam a Câmara, liderada por Joaquim Santos, de prestar informações insuficientes sobre o megaevento ou de, por preferência partidária, favorecer a rentrée do PCP.

Depois de Carlos Valente, empresário com ligações antigas ao PSD, ter interposto, na semana passada, uma providência cautelar para travar o evento, Paulo Edson, antigo candidato autárquico e ex-vereador do PSD, confirmou ao Expresso estar a ponderar tomar análoga medida, caso esta providência seja indeferida, apontando:

É escandaloso fazerem a festa. Este ano, isto representa um perigo para qualquer cidadão do Seixal, com tanta gente a vir de fora”.

Por isso, na carta, lembra a sua experiência como vereador da Proteção Civil (pelouro que tinha a responsabilidade de aplicar os planos de segurança da festa) e promete que, se o número local de casos se agravar nas semanas seguintes, tomará a iniciativa de apresentar “uma queixa-crime contra os responsáveis por esta festa, pelo crime de propagação de doença”.

E a polémica sobre a Festa do Avante tem aquecido as reuniões de Câmara há meses, com os vereadores socialistas a acusar o presidente, comunista, de promiscuidade com os organizadores da festa e este a sentir a perseguição reacionária, que está no centro da argumentação comunista.

As críticas são feitas à dimensão da rentrée, semelhante à dum grande festival de verão. Mas este ano as atenções estarão viradas para o conteúdo político da festa: o PCP terá um congresso em novembro, sem quebrar para já o tabu sobre a saída ou a permanência de Jerónimo de Sousa como secretário-geral, e prometeu anunciar o nome do candidato presidencial em setembro. E o comício de encerramento da festa, tradicionalmente o momento que marca o início do ano político do PCP, acontecerá dias depois de os comunistas terem adiado uma reunião com o PS a propósito do OE-2021. Com mais ou menos gente, política não faltará ao Avante.

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A festa faz-se. A discordância é legítima e pertinente, mas as pedradas às instituições não o são. E não vale a pena perder a cabeça por causa disto. Há tantos problemas a discutir e a resolver!

2020.08.31 – Louro de Carvalho

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