De acordo com um balanço da agência francesa AFP, Portugal contabiliza pelo menos 1.772
mortos associados à covid-19 em 53.783 casos confirmados de infeção,
segundo o último boletim da Direção-Geral da Saúde (DGS), tendo pandemia de covid-19 já provocado, no mundo,
mais de 754 mil mortos e infetado quase 21 milhões de pessoas.
Em Portugal, o caso que sobressai nas pantalhas da crítica veiculada pelas
redes sociais e pela comunicação social é o surto de Reguengos de Monsaraz,
que vitimou 17 idosos de um lar, uma funcionária de 42 anos e um motorista da
autarquia, que foi dado como findo há mais de uma semana, depois de ativo durante
um mês e meio, mas cujo impacto só agora atingiu o Governo.
Em entrevista ao Expresso, publicada no passado
dia 15, Ana Mendes Godinho, Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
(MTSSS), sustentou não fazer sentido falar de
casos concretos de surtos de covid-19 em lares e sobre a situação de Reguengos
de Monsaraz (80
de 84 apanharam covid), lembrando que está a decorrer um inquérito por parte
do Ministério Público (MP) e que é
preciso esperar pelas conclusões.
A governante admitiu que faltam funcionários nos lares e relevou que há um
programa para colmatar a falha, mas considerou que a dimensão
dos surtos de covid-19 ali “não é demasiado grande em termos de proporção”. E adiantou:
“No caso de Reguengos, a grande dificuldade
foi encontrar funcionários quando muitos ficaram doentes. É preciso aumentar a
aposta nos recursos humanos do setor social. Em abril criámos um programa
especial [do IEFP], inicialmente previsto por um período de três meses e que
decidimos prolongar até ao fim de dezembro.”.
Segundo os números de que deu conta, foram aprovadas até agora
5.800 pessoas para instituições do setor social, sendo que o objetivo é colocar
cerca de 15 mil até ao final do ano.
Sobre o relatório que a Ordem dos Médicos (OM) lhe enviou e em que são denunciadas situações de abandono terapêutico dos
utentes do lar, a Ministra
revelou não ter lido o relatório, tendo pedido “que o analisassem”. E,
alegando ser essa “uma valência da Saúde”, escusou-se a comentar, pois o seu papel à frente do Ministério é o de apoiar e não o de
procurar culpados.
A governante sublinhou ainda a evolução positiva da pandemia nos lares
explicitando:
“Tivemos 365 surtos [em abril] e temos 69
agora. Claramente, temos menos incidência. Temos 3% do total dos lares e
temos 0,5% das pessoas internadas em lares que estão afetadas pela doença! A
dimensão dos surtos não é demasiado grande em termos de proporção. Mas, claro,
isto não significa que não devamos estar preocupados.”.
Além disso, Mendes Godinho frisou que foi criada em março uma taskforce para “acompanhar as instituições para
perceber onde são precisos mecanismos adicionais de ajuda” e que “os reforços
financeiros já ultrapassam os 200 milhões de euros”.
As reações à sua declaração de
falta de leitura não tardaram. Antes do
primeiro mergulho de mar em férias no Algarve, o Presidente da República (PR) aos jornalistas que o aguardavam junto à praia do Alvor,
afirmou que “é preciso ler todos os relatórios”, que já existem
quatro sobre este surto, que os analisou todos, o que é visto como um claro
recado à Ministra, e que haverá muita matéria para a Justiça apreciar. Miguel Guimarães,
bastonário da OM, classificou como um gesto de “grande
insensibilidade a Ministra não ter perdido 15 a 20 minutos
a ler a auditoria”. O PSD quer que Mendes Godinho vá à Assembleia da
República (AR), com caráter de urgência, explicar a situação. Rui Rio fala mesmo
duma “teia de relações partidárias entre a administração de saúde e a segurança
social no Alentejo para exigir o apuramento de responsabilidades pela morte dos
18 doentes, “que não são redutíveis a percentagens”, e pedir também a presença
da Ministra da Saúde na AR, quando se regista novo surto regional, agora em
Mora, com 39 casos positivos na vila. O CDS apresenta idêntico pedido, mas
acrescenta a Diretora-Geral da Saúde, Graça Freitas, ao rol de presenças na AR.
E Francisco Rodrigues dos Santos pediu a demissão da Ministra do
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, na sequência da entrevista ao Expresso. Também Marques Mendes, no seu
espaço de comentário semanal na SIC, foi muito crítico ao afirmar que “Ana Mendes Godinho tem
sido uma desilusão”, parecendo “um caso de inadaptação ao posto de trabalho”.
Na entrevista, a titular das pastas
do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social garante ter tido sempre o
apoio dos membros do Governo, mas o certo é que nenhum apareceu para a
defendê-la. A oposição, por seu lado, reagiu bem cedo e com
exigências concretas, como ficou dito. O PR disse abertamente que é preciso ler
tudo. E António Lacerda Sales, Secretário de
Estado da Saúde, questionado
se leu o relatório da OM sobre o surto de covid-19 num lar em Reguengos garantiu
que “o Ministério da Saúde
analisa todos os documentos e todos os relatórios que lhe chegam”,
pois, como vincou, “ninguém faz uma
análise sem ler documentos e relatórios”.
Apesar de ter referido especificamente o relatório da OM na resposta,
Lacerda Sales descartou comentar o caso do surto, sendo matéria que está sob investigação
do MP. Mas afirmou ser “importante” dizer que todos os documentos,
relatórios e pronúncias são “sempre bem-vindos”, “não só para nos ajudar a
apurar responsabilidades, mas, acima de tudo, para nos
ajudar a melhorar – ajudar o Governo a melhorar –, protegendo estas faixas mais
vulneráveis no caso dos idosos, bem como “para todos percebermos que é
necessário mobilizar toda a sociedade civil em volta desta questão”.
Também a Diretora-Geral da Saúde, instada a responder à questão se leu o
relatório da OM, disse, citada pela RTP:
“Temos a obrigação de ler os relatórios que
nos chegam e retirar deles os ensinamentos e fazer sobre eles comentários e
acrescentos porque nenhum relatório é completamente exaustivo”.
***
O Gabinete de Mendes Godinho emitiu um esclarecimento a garantir que a declaração
da Ministra foi “descontextualizada de forma grave” no atinente à sua asserção
de que “a dimensão dos surtos nos lares não é demasiado grande”. Com efeito, à
questão se ‘o pior ainda não passou no caso dos lares’ a resposta dada, que
nada esclarece nem acrescenta, foi:
‘Tivemos 365 surtos [em abril] e temos 69
agora! Claramente, temos menos incidência. Temos 3% do total dos lares e temos
0,5% das pessoas internadas em lares que estão afetadas pela doença! A dimensão
não é demasiado grande em termos de proporção. Mas, claro, que isto não significa
que não devamos estar preocupados e mobilizados para reforçar a guarda.”.
A entrevista, que fez manchete da última edição do Expresso (que disponibilizou online a gravação), não causou polémica apenas pelo título. No corpo da entrevista,
lê-se que a Ministra admite não ter lido o relatório da OM sobre o surto de covid-19
num lar de Reguengos de Monsaraz, tendo pedido “que o analisassem”. Mas o esclarecimento do MTSSS não aborda esta questão. Ainda
assim, aproveita o ensejo para elencar o que tem sido feito no âmbito desta
matéria.
“O Ministério do Trabalho, Solidariedade e
Segurança Social tem estado, desde o início da pandemia, a acompanhar a
situação nos lares, e tem desenvolvido mecanismos que, por um lado, permitam
antecipar surtos e dotar estas instituições dos meios necessários e, por outro,
no acompanhamento de todos os surtos e na resolução de problemas concretos na
sequência do surgimento destes. (…) Este trabalho insere-se numa
política ativa que assenta numa estratégia de atuação com várias dimensões, cujas
medidas adotadas ascendem já a 200 milhões de euros.”.
***
Em
termos de substância, a polémica não faz sentido, não havendo uma falha
governativa em si. Não repugna que a Ministra não tenha lido pessoalmente um
relatório, pois a sua equipa o terá feito e tê-lo-á analisado. Porém,
censura-se o descaramento ou a leveza de o ter dito expressamente, desculpando-se
que é uma matéria da saúde. Não é só; é também uma questão de trabalho, de
solidariedade e de segurança social. Então, se funcionários são infetados ou se
entram de baixa médica, isso é só uma questão de saúde? Se os utentes não são devidamente
acompanhados por falta de médicos, enfermeiros e outro pessoal, onde mora a
solidariedade?
Depois, a
Ministra não pode confinar-se à sua pasta, pois, como membro efetivo do
Governo, é corresponsável pelo todo da governação. Será que na sua ótica nunca
poderia em nome do Governo inaugurar uma escola, uma unidade de saúde ou um museu?
Eu já vi um Secretário de Estado da Defesa inaugurar uma escola, tal como vi um
Secretário de Estado do Emprego a fazer o mesmo. Aliás, a governante em causa
apontou a existência de equipas multidisciplinares de implantação local, em que
entra a saúde…
É verdade
que em termos percentuais o surto de Reguengos não será dos piores, mas é
inoportuno e parece insensível dizê-lo a propósito dum caso concreto. Estão
vidas em jogo.
Marques Mendes
fala de síndrome de inadaptação ao posto de trabalho. Não se trata disso a meu
ver. A mim me parece que está em causa a pretensão de sobrepor a dimensão técnica
à política. Ora, os/as escolhidos/as para o executivo deveriam passar por uns
módulos de formação efetiva em ciência política e psicologia social que lhes possibilitassem
rigor na observância dos princípios, é certo, mas também uma boa capacidade de
gestão de informação, respeito pelos cidadãos, sentido de oportunidade, visão
humanitária, capacidade de mobilização de recursos e afetos, alguma sagacidade –
enfim, um correto e eficaz sentido de antropagogia.
Infelizmente
– e é curta a memória –, não é Ana Mendes Godinho a primeira a falhar nesta
dimensão política e antropagógica. Muitos outros falharam e levaram pedradas; outros
nem isso.
Nunca digam
que não leram relatórios, jornais, petições, leis, documentos. Não façam pouco
de nós, que pouco nos importamos se leram ou se mandaram ler. O que pretendemos
é ver os problemas resolvidos e que nos representem bem e sirvam o povo longe de
oportunismos e distorções, que disso há por aí muito, não sendo este o caso!
2020.08.17 –
Louro de Carvalho
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