quarta-feira, 30 de abril de 2014

O livro de orações de São João Paulo II

Ontem, dia 29 de abril, dirigi-me ao quiosque onde compro jornais quase todos os dias. Como era terça-feira, afiz-me ao Público, como é usual, e pedi também O Diabo, um semanário que leio com regularidade, não porque goste ou porque me identifique com o seu estatuto editorial, mas porque tem colunistas que sabem o que outros não sabem ou fingem não saber e sobretudo dizem o que outros não ousam dizer.
Ao olhar para a esquerda de quem se abeira do balcão e materiais expostos, deparei como o livrinho, formato de livro de bolso, subordinado ao título O livro de orações de São João Paulo II. Tão perto do ato de canonização, a edição despertou-me a curiosidade, até porque no canto inferior direito da capa se lê, em carateres relativamente diminutos, a referência “Santificado a 27 de abril de 2014”. Abri, folheei e perguntei ritualmente “quanto custa?”. Perante resposta elucidativa, decidi-me pela compra. E tenho a dizer que gostei.
Nunca escondi quanto aprecio o papa polaco pela lucidez doutrinal, pela coragem e determinação, pela cruzada em prol dos direitos humanos e da paz, pela liberdade política, pela entrega às causas sociais, pela intervenção geoestratégica, pela peregrinação quase constante pelo mundo dos homens, pelo apelo galvanizador à juventude, pela espiritualidade vivida entre duas colunas-modelo, Maria de Nazaré e são Luís de Monfort. Também não escondi algum desencanto por algum retrocesso doutrinal, pela indução a que se tenham confundido algumas questões predominantemente disciplinares com o âmago do depositum fidei, pela ostracização a que foram votadas algumas opções teológicas. Refiro, a título de exemplo, Hans Kung, Bernard Haring e, sobretudo, os corifeus da Teologia da Libertação – os das periferias gravosas da América Latina – num contexto de uma investigação e de um ensino demasiado “policiados” pela Congregação da Doutrina da Fé. Também me parece que a dinâmica da colegialidade terá sofrido alguma contenção desnecessária, sem falar da alegada incúria pela Cúria Romana.
Mas as pessoas são o que são; e os santos, para serem luzeiros relativamente aos seus irmãos na fé, não têm necessariamente de lhes iluminar o caminho todo: basta que o iluminem de modo que os caminhantes não percam de vista a meta e se sintam sempre atraídos por ela. E, quando rezam, não se enganam nem enganam. E a lex orandi desde há muito tempo foi assumida como lex credendi, ou seja, pela forma como se reza em Igreja se vê como se crê em Igreja. Não sei mesmo se um dos motivos por que O Credo do Povo de Deus, de Paulo VI, não é rezado e pronunciado mais vezes nas comunidades cristãs não será o facto de, de vez em quando, seguir por formulações pessoais, embora pertinentes, e consignar aspetos em discussão ao tempo. É certo que o texto é extenso e não foi elaborado consensualmente pelo episcopado depois de perscrutado o sensus fidelium. Porém, se a peça de fórmula de fé se integrasse totalmente na lex orandi lex credendi, ela seria rezada por muitos em determinadas ocasiões consideradas mais significativas para a Igreja.
Porém, voltando ao livrinho, aí a rezar João Paulo II é inquestionável. É a fé de um homem que não vacila. É a oração de ação de graças e a de petição; é a oração de substância ou a de circunstância; é a oração dos grandes momentos ou a do dia que passa; é a oração que toca a todos ou a oração que perpassa específicos momentos da vida, profissões e estados de vida; é a oração universal ou a oração localizada numa comunidade, num país, num continente.
O livro resulta do trabalho de organização e fixação do texto por Joaquim Soares. A edição é da Glaciar e da Cofina Media sob a égide da PAULUS Editora. Num conjunto de cerca de duas centenas e meia de páginas, as orações, originariamente pronunciadas pelo Papa João Paulo II em diversos lugares que foram palco das suas intervenções pastorais, vêm agrupadas em quatro blocos, a saber: Pela Humanidade; Orações a Deus que é misericórdia e amor; Orações a Maria, terna Mãe de Deus e da Igreja; e Orações para diversas ocasiões.
Sem querer abrir o livro de par em par, destaco quatro títulos de orações em cada um dos quatro blocos. Assim, em Pela Humanidade, temos orações pela dignidade da pessoa, pelo progresso técnico-científico, contra a escravidão, pelo trabalho e dignidade da mulher…; em Orações a Deus que é misericórdia e amor, as orações, entre outras intenções, contemplam os jovens do mundo, Deus de ternura e compaixão, a Igreja, um compromisso generoso…; em Orações a Maria, terna Mãe de Deus e da Igreja, temos orações à Mãe dos homens e dos povos, à Protetora dos cristãos, à Amorosa consoladora, o Ato de confiança a Nossa Senhora de Fátima…; e em Orações para diversas ocasiões, podemos rezar Pelas vocações do terceiro milénio, Pelos direitos do homem, Pela investigação científica, Por uma cultura não violenta….
E gosto de respigar alguns segmentos: “A informática e a automação potenciam a ação humana, reduzindo drasticamente o cansaço em muitos setores. Não podemos escutar os ‘profetas da desgraça’ que só veem catástrofes em tudo.” (1.º bloco, pg 21); “Ó Cristo, que o poder da Tua Cruz se mostre maior que o autor do pecado, a que chamam ‘o príncipe deste mundo’” (2.º bloco, pg 102); “Ó Mãe da unidade, ensina-nos sempre os caminhos que a ela conduzem!” (3.º bloco, pg 169); “Ajuda-nos, São Francisco de Assis, a aproximar Cristo da Igreja e do mundo atual” (4.º bloco, pg 253).
Os segmentos respigados constituem uma amostra muito diminuta da riqueza temática do florilégio oracional que preenche o livrinho e testemunham a diversidade de preocupações do ilustre orante, que as passou de viva voz à memória da Igreja viva em desvelo pelo mundo. E as orações, mesmo que algumas possam e devam ser descontextuadas, poderão alimentar o espírito na autorreflexão, na relação ativa com Deus em Si mesmo considerado e/ou enquanto recetor atento das nossas preocupações com o mundo e aprendizes da vida quotidiana e da vida dos grandes momentos.
Apetece-me a terminar com algumas afirmações do editor,
Sobre a oração:
(…) a oração restabelece o espaço da autenticidade, ilumina as vicissitudes da existência, torna segura a nossa caminhada na história comum da Humanidade inteira.

E sobre São João Paulo II:
Também nós, como discípulos de Jesus, dizemos: ‘Senhor, ensina-nos a orar. Mas, quando nos faltam as palavras, unimo-nos a João Paulo II e rezamos com ele; usando as suas palavras, podemos voltar-nos para Deus, para Jesus, para o Espírito Santo e para Maria.


Sim, que São João Paulo II faça voltar para Deus todos os homens e mulheres deste mundo, que desejamos mais fraterno, mais justo e mais humano, segundo o coração de Deus e como os homens anseiam.

terça-feira, 29 de abril de 2014

O direito à desconexão

O telemóvel, o correio eletrónico e as diversas plataformas da Internet facilitaram a relação interpessoal e as relações profissionais e políticas. No entanto, como em tudo quando há falta de moderação, levaram a algumas situações que ou denotam verdadeiros disparates ou configuram mecanismos de verdadeira escravização.
Recordo-me do caso de um sacerdote que, alegando que a proposta hora de um funeral não lhe convinha, o transferiu para o fim da tarde, aparentemente com o consentimento dos familiares do defunto. Quando efetivamente chegou para a celebração exequial, já ela tinha decorrido, com surpresa sua, há bastantes horas. Perante a estranheza da situação, declararam que lhe tinham mandado uma mensagem para o telemóvel a referir que tinham encontrado um colega que se disponibilizou para o ato. Um membro do atual governo afirmou que soubera da nomeação de um(a) determinado(a) ministro(a) por SMS do primeiro-ministro. Um bispo, aquando da visita de Bento XVI a Portugal, aparecia muitíssimas vezes em imagem televisiva a falar ao telemóvel, tendo sido o facto assinalado por uma das repórteres de serviço.
A cada passo, os programas televisivos de notícia e reportagem, de documentário e novela nos dão o espetáculo do uso e abuso do telemóvel por parte dos diversos intervenientes. Gente flagelada pelo desemprego e por outras misérias sociais exibe-se em televisão agarrada ao telemóvel. Crianças, jovens e adultos usam e abusam do telemóvel e aparelhos similares. Que o digam os professores das nossas escolas, contra o preceituado no famoso Estatuto do Aluno, a que este governo apôs a Ética Escolar. É frequente depararmo-nos com jovens e crianças entretidos com os ouvidos ocupados com os auriculares. Estudantes há que beneficiam da ação social escolar, mas têm o telemóvel de última geração e o conveniente tablet.
Apesar das insistentes advertências, o telefone toca em sessões públicas e celebrações litúrgicas. E não obstante a proibição inscrita no código da estrada, muitos automobilistas usam o mágico aparelho colado aos ouvidos, ao mesmo tempo que infringem um ou outro artigo da lei.
Porém, o motivo desta reflexão tem a ver com o teleuso dos meios informáticos on line para liderar as relações de trabalho e as relações hierárquicas na Administração Pública.
E este é um dos instrumentos de controlo dos passos dos trabalhadores e/ou subordinados, que pode levar a uma verdadeira escravização, já que, a todo o momento, se podem receber ordens, alteração de agenda, indicação de tarefas, instruções, decisões. Isto cria instabilidade social e política (no caso dos agentes desta ordem) e mina a relação familiar.
Se não, vejamos. Dirigentes são convocados por telemóvel e/ou e-mail para reunião imediata, inclusive para tomar posse de cargo de dirigente; dispensa-se a afixação de convocatórias, avisos, editais a tempo e horas nos lugares de estilo; expiram prazos, não à hora do expediente, mas em hora alegadamente “conveniente” em termos informáticos. Chefes mandam mensagens por correio eletrónico para as quais exigem resposta, mesmo que seja noite, feriado ou fim de semana. E mesmo professores têm de fazer sumários de aula em casa quando a escola em que trabalham não tem plataforma informática eficiente.
A França, após estudos que levaram a concluir pelo descontentamento, ansiedade, depressão, esgotamento e outras situações patológicas numa considerável franja de trabalhadores, resolveu cortar o mal pela raiz. E “sindicatos e patrões do setor da tecnologia, engenharia e consultoria assinaram, no princípio deste mês [de abril], um acordo que reconhece o direito do trabalhador a ficar offline” (vd Público, de 28 de abril). Ora, se o cidadão tem direito ao trabalho, por toda a minha gente reconhecido, o trabalhador tem direito ao necessário e retemperador descanso. Porém, descanso que seja perturbável sistematicamente deixa de ser descanso por não conseguir as suas características fundamentais: a reparação de forças físicas e psíquicas; e a entrega a uma ocupação diferente da habitual, mormente espiritual, cultural ou filantrópica (E, porque não, sociocaritativa!). Aos teólogos, que expuseram, como Chenu e Escrivá de Balaguer, uma teologia e uma espiritualidade do trabalho, contrapuseram – e bem – outros, como S. João Paulo II e Valdir José de Castro, uma teologia e uma espiritualidade do tempo livre (o que na década de 70 Georgino Rocha denominava espiritualidade do ócio). E Filipe Rocha publicou um livro, que vale a pena reler e ter em conta, “Cibernética e Liberdade: uma nova maneira de pensar o homem?”.
Tempo livre é aquele momento que ajuda o ser humano a não deixar que o trabalho se torne um peso excessivo e escravizador: o tempo dedicado ao repouso, ao lazer, à cultura, ao turismo, às relações interpessoais e, no caso do crente, à relação com Deus. É momento que ajuda o ser humano a “humanizar-se”, a cultivar as relações humanas. Se o trabalho é atividade humana e divina, também o é o descanso. Também o tempo livre é lugar de espiritualidade. (cf Valdir Castro, in “A espiritualidade no cotidiano”: http://vidapastoral.com.br/artigos/espiritualidade/a-espiritualidade-no-cotidiano).
Afirmei que a França resolveu cortar o mal pela raiz. Como se depreende, não fui exato, porquanto não está abrangida toda a relação laboral, ainda que o setor em que isso sucedeu seja significativo e até extenso. Mas França levou a carga para o lado contrário, pois, além do direito, o acordo assinado entre as partes prescreve um direito-dever. Ou seja, os trabalhadores passam a ter de desligar os seus telefones de serviço entre as seis da tarde e as nove da manhã do dia seguinte, devendo ignorar, durante o mesmo período, qualquer mensagem de correio eletrónico.
E é aqui que bate mal a bola. O trabalhador deve ter direito reconhecido à desconexão, a que deve corresponder o dever de respeito desse direito da parte do patrão ou do superior hierárquico. Julgo, porém, que a desconexão não havia de ser imposta como dever ao trabalhador. Deveria, a meu ver, tornar-se obrigatório o respeito desse direito por parte de todos e ser prevista sanção adequada a quem prevaricasse. Teria de ficar salvaguardada a possibilidade de comunicação em caso de manifesta emergência, sendo igualmente penalizada a pseudoemergência. Não sei mesmo se, por causa disso, o governo francês vai mesmo homologar tal acordo e torná-lo público no Journal Officiel.
É pena que Portugal tenda a copiar tudo o que se passa lá por fora e, nestas coisas, seja tão surdo, tão cego, tão insensível! É que o panorama detetado em França no grau de insatisfação dos trabalhadores não é menos dramático em Portugal. Segundo o citado periódico, 15% dos trabalhadores portugueses evidenciavam no ano transato sinais de esgotamento; 62% enfrentavam situações de stress; 78% apresentavam a situação psicológica de turnover, ou seja, o desejo de mudar de emprego no horizonte temporal de cinco anos; e 83% estavam em risco de exaustão. Não seria de olhar apara isto com olhos de ver?! Não são apenas os reformados que não vislumbram futuro de céu azul!
E perante isto, o governo aumenta horário de trabalho; facilita despedimento; suprime feriados; corta drasticamente em salários, pensões, subsídios e suplementos; aumenta brutalmente contribuições, impostos, taxas e tarifas; incita a aposentação antecipada (em condições de progressiva degradação) ou a rescisão amigável os funcionários públicos (com contrapartidas indemnizatórias de avareza). Paira o espectro do desemprego, da precariedade e da possibilidade da perda de emprego. Os trabalhadores, por consequência, aceitam resignados a sobrecarga brutal de trabalho, o incómodo nos tempos livres e o silêncio – contra o que a consciência crítica impõe. Falam pelas costas e autojustificam-se com a inevitabilidade que lhes é pregada…
Há que repensar, contra tudo o que possa ser exigido pelos alegados credores, que afinal são, ou deveriam ser, gestores de mutualidade (o país é contribuinte de há longo tempo do FMI, da CE e do BCE, desde que desses organismos se fez membro!). Governo que não zele pelo moral dos seus cidadãos e pelo prestígio das suas instituições não merece ser governo.
Direito à desconexão, sim, mas deve ser conjugado com o direito à conexão e aos seus serviços. É bom o cidadão dispor dos meios de comunicação informática para serviço útil e na hora; mas não tem o direito de exigir a outrem o impossível nem de se sujeitar a condições desumanas só por que existem meios que facilitam isso. O homem tem de ser sempre o senhor da máquina e não seu escravo. E nunca o homem pode usar a máquina para escravizar ou desprezar outro homem!

Em suma, tem de ser assumido o direito ao trabalho, mas também o direito ao justo e efetivo repouso, garantindo-se o respeito pelos períodos mínimos de descanso dos trabalhadores previstos na legislação e nos instrumentos contratuais.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

O dia dos quatro papas

O Dia 27 de fevereiro de 2014 – dizem alguns – ficará para a História como o “dia dos quatro papas”. E porque não? Ou porque não o “dia de mais de quatro Papas”?
Os factos ficaram à vista. Efetivamente dois dos sumos pontífices que marcaram historicamente, pela postura e pela doutrina (não sua, porque de Jesus, que dizia que não era dele, mas do Pai), a segunda metade do século XX e um deles, também a entrada da Igreja no terceiro milénio (até com a publicação da carta apostólica Novo Millennio Ineunte) – ingressaram no cânone oficial dos santos. A autoridade apostólica com que tal facto se efetuou reside em Francisco, o papa do presente da Igreja Católica, que recebeu como que em herança o processo de condução daqueles, antes denominados, Beatos João XXIII e João Paulo II das mãos do papa emérito, Bento XVI, que integrou a celebração com a plenitude do poder de ordem, que não deixa de deter relativamente à Eucaristia (e atualmente autodespojado do poder de condução da Igreja, poder odegético). Pode dizer-se que até do ponto de vista humano o centro eclesiástico funcionou bem, dando ao mundo um exemplo de concórdia nas diferenças, que as há. A própria multidão apreciou, com os visíveis aplausos, a chegada do emérito e a saudação que ambas as altas figuras da rocha petrina trocaram entre si.
Teoricamente, em vez de quatro, poderiam ter sido presentificados mais de quatro. Alguns humoristas sérios pensaram a atribuir ao bom papa João, o da docilidade ao Espírito Santo, a autointerrogação “Porque só nós os dois?”. Sim, dirão alguns, porque não também Pio XII, o homem da Igreja-corpo místico de Cristo, a testemunha dramática dos sofrimentos da humanidade, o papa das radiomensagens e da Assunção de Maria? Sim, digo eu, porque não Paulo VI, o homem da paciência na continuidade dos trabalhos conciliares e pós-conciliares, da promulgação dos seus documentos finais, da promulgação dos documentos executivos das opções conciliares (alguns à luz de novas situações), o concretizador da abertura intuída e preconizada por João XXIII. Vêm a talho de foice: a colegialidade, com a instituição do sínodo dos bispos, a transferência de competências para as conferências episcopais e para os bispos diocesanos; a deposição da tiara e da sedes gestatoria; o diálogo, com a encíclica Ecclesiam Suam e gestos subsequentes; o ecumenismo (quem não se lembra do abraço trocado entre ele e o patriarca de Constantinopla?) e o diálogo inter-religioso, com a ida à Terra Santa e à Índia; a questão social, com a Populorum Progressio e a Octagessiama adveniens; o Ano da Fé, com o Credo do Povo de Deus, no centenário do martírio dos apóstolos Pedro e Paulo; a nova evangelização, com a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi; a política da aceitação da autodeterminação dos povos, com a receção aos líderes dos denominados movimentos de libertação e o discurso na ONU; e as viagens fora de Roma e as visitas pastorais a paróquias da diocese – que pararam por causa da artrose. Não é lícito fixarmo-nos somente nos aspetos de que não gostamos!
E porque não repescar a memória de mais alguns daqueles Servos de Deus, que efetivamente gozam da visão beatífica junto do Pai (ou, como diziam os judeus, no seio de Abraão) e que têm algo que sirva de exemplo a seguir nos tempos que correm, merecendo, por isso, a veneração dos católicos?
Depois, convém que se assuma em escala a memória e a História de toda a Igreja e de todos os seus santos padres (é certo, com luzes bem radiantes e sombras bem escuras; mas qual é o povo que deita fora o seu passado?), tal como fez o Bispo do Porto em relação à sua nova Comunidade, no ato de entrada na diocese. É a herança do Evangelho, com os apóstolos, mártires e confessores da fé que, interpretada à luz do que o Tempo permitiu, faz o “hoje” da Igreja, que é o “hoje” de Deus, feito semente de futuro. E é um futuro não hipotecado, porque é construído na esperança de quem tem os pés assentes na Terra, caminho aberto à frente e olhos no Alto.
Gosto daqueles santos, dos canonizados a 27 de abril. Agora são mais gente como Deus e como nós. Antes, referíamo-nos a eles como “Sua Santidade”, “Santíssimo” ou “Beatíssimo” (e talvez a santidade deles, embora maiusculizada, era tão pobre). Hoje participam em pleno da santidade de Cristo, aquele que aclamamos como “Solus Sanctus”. E, porque mais iguais a nós, a partir de agora, podemos imitá-los e deixar-nos guiar por eles, que foram “guias guiados pelo Espírito” e que sabem das nossas misérias e esforços de virtude, aquilo de que antes talvez ninguém lhes desse verdadeiro conhecimento. É provável que Francisco de Assis tivesse razão quando tratava o Chefe da Igreja Católica por “Senhor Papa” (o “senhor pai” das aldeias tradicionais do Portugal rural).
Alguém levantou a questão da infalibilidade pontifícia da decisão de beatificar e de canonizar. Se pensarmos na definição originária de dogma (decidir o que parece mais certo, na ótica apostólica aliada à do Espírito Santo), é fácil de admitir. Se a nota de infalibilidade resulta de uma decisão decorrente de processo tão rigoroso e acertado, tanto quanto pode a fraqueza humana, pergunto-me pela razão das dispensas de tempo, de milagres, de algumas audições; é óbvio que a dúvida pode não ficar afastada. Pelo menos, as canonizações não decorrem daquele consenso universalmente formado a propósito do odor de santidade, mas local e circunstancial (embora coletivo e/ou de testemunhos humanamente fidedignos), não são sentidas pelos bispos do mundo católico, ouvidas as opiniões das suas comunidades, nem eles, sentindo-se vozes inteiramente livres para se manifestarem, soem pedir expressamente a decisão ao Papa. Por outro lado, se invoca a autoridade apostólico, o Papa não declara expressamente definir matéria infalível de fé e/ou costumes.
Também não parece necessário atrelar a nota de infalibilidade à decisão de beatificação e de canonização. Vejamos: os inscritos no cânone dos santos e os inscritos no catálogo dos beatos são ornados da heroicidade de virtude e nalgum ponto importante podem ser apresentados como modelos de vida cristã.
Resta saber se merecem a veneração (o culto de dulia dos fiéis). Ora, o povo cristão não canta hossanas, independentemente da existência de defeito ou pecado nele, ao Sumo Pontífice vivo, enquanto vigário de Cristo? Tempo houve em que se lhe beijava o pé e se fazia a genuflexão por duas vezes quando se entrava em sua augusta presença (Pio XII acabou com tal gesto por sugestão indignada do Padre Ricardo Lombardi!). Os cristãos não cantam ao bispo e ao sacerdote, mesmo que apareçam sem as insígnias da Ordem, como “aquele que vem em nome do Senhor”, “o eleito de Cristo”? Mais: todos veneramos os nossos catequistas, pedíamos a bênção aos pais e aos padrinhos, etc. É que se vê e/ou via neles a qualidade de representantes de Deus. E, ainda, os cristãos dos primeiros tempos eram chamados “santos”, até ao momento em que a Igreja se estabeleceu em Antioquia.
Já me apoquenta o facto de os processos se tornarem demasiado caros financeiramente e os encargos ficarem a pesar inteiramente nas dioceses, congregações ou associações interessadas. Não é justo que que tantos e tantas eventualmente tenham ficado pelo caminho por falta ou insuficiência de meios. Se é certo que tudo custa dinheiro, creio que, embora as entidades mencionadas devam contribuir segundo as suas posses, o Ministério da Economia e Finanças da Santa Sé (ou com o nome que Francisco lhe atribuiu recentemente) deveria obviar às despesas das causas para as quais não haja fundos locais. Ou se acredita que vale a pena ou não. Mas, se se acredita…
Ora, razão tem Frei Bento Domingues ao escrever em 27 abril, Público, pg 53: “nas questões de ordem teológica, o que me preocupa, em clima cristão, é saber se um determinado acontecimento, atitude, gesto ou palavra servem a dimensão imanente e transcendente dos seres humanos como criaturas de relação e de interajuda”.
O que pedimos e/ou agradecemos aos “santos” não é a intercessão em termos de cura, apoio, guia, milagre, graça? Todos sabemos que não é o santo que faz o milagre, mas Deus através dele? Todos sabemos que a fonte da Graça não é o santo, mas Deus que a distribui, com a cura, com a guia e com o apoio/ajuda através do santo.
Quanto à infalibilidade, o referido teólogo entende – e bem – que “os frutos dos incréus, nem sempre são modelos de crítica histórica”. Penso que com os ditos “incréus” se refere aos jurados que, em segmento textual anterior, formam o júri que avalia o “bom currículo” e que “não goza de nenhuma garantia digna de imparcialidade”, embora se pense que “os produtos da hagiografia, feitos por encomenda ou por devoção, pretendem ser edificantes”.
A finalizar, parece-me que tanto os canonizados a 27 de abril como os artífices da canonização concordam com o frei dominicano cronista, do domingo das canonizações (artigo citado), em que “quanto a modelos (…), no Ocidente ainda não apareceu nenhum mais interessante do que Jesus Cristo e aqueles que seguem os seus passos e recomendações: os que não procuram nem riquezas nem qualquer outro poder de dominação”.
Por isso, tal como rezam os devotos do santuário da Lapa (Sernancelhe) “Nossa Senhora da Lapa, rogai por nós a Jesus!”, digamos também:

 São João XXIII e São João Paulo II, rogai por nós a Jesus Cristo!

domingo, 27 de abril de 2014

Um político, administrador e literato

Morreu hoje, 27 de abril, Vasco da Graça Moura, um dos melhores vultos de dedicação à Língua Portuguesa no dealbar do terceiro milénio. Segundo a Universidade do Porto, que o distinguiu com um doutoramento honoris causa, enquanto reconhecimento pela sua obra e pelo seu contributo para a promoção da cultura portuguesa, o escritor portuense Vasco Graça Moura “é um dos mais produtivos escritores portugueses, com mais de 100 títulos publicados”.
Mas porque escondem alguns o seu lado profissional e político? Aliás, a maior parte dos comentários em torno do seu passamento cingem-se ao cidadão e ao homem da cultura e da Língua Portuguesa.
Efetivamente, este cidadão, nascido no Porto em 3 de março de 1942, licenciou-se em Direito e exerceu a advocacia durante 20 anos, o que, sem ser extraordinário, convenhamos não é pouco, sobretudo num homem que se sentiu realizado naquilo que fazia.
Mas ele foi um político, não de trazer por casa, mas militante partidário (goste-se ou não do seu partido, o de Passos Coelho daquele tempo!), um dos atores moderados contra a onda de radicalização de Portugal à esquerda, a par de Mário Soares e Dom Manuel de Almeida Trindade, e foi Secretário de Estado em dois governos provisórios, em tempos agitadamente engraçados, além de ter sido eleito deputado para a Assembleia constituinte. E fez dois mandatos como deputado europeu, no âmbito do PPE (Partido Popular Europeu), antes da ascensão de Barroso a Presidente da Comissão. Como ficou pobre o Parlamento Europeu sem este político culto e combativo!
Além da atividade política, desempenhou outros cargos de interesse e notoriedade pública. Neste âmbito, foi diretor da RTP2, administrador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a que deu importante impulso, presidente da Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e, a partir de 2012, presidente do Centro Cultural de Belém. Exercera, ainda, os cargos de diretor do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian e de diretor da Fundação Casa de Mateus.
Mas, não sendo aí o início, na década de oitenta enveredou definitivamente pela carreira literária, que o havia de confirmar como um nome central da literatura portuguesa da segunda metade do século XX e nos alvores do século XXI.
E a sua produção literária é vasta e multifacetada: poesia, ensaio, romance, diário e crónica, tradução e resumo. Dá-se conta, a seguir, de muita da sua obra, sem incluir aquela em que participou em regime de coautoria. Assinale-se que, lançando mão do direito que lhe assistia um persistente lutador contra a nova ortografia da Língua Portuguesa, esgrimindo denodadamente os melhores argumentos a favor das suas teses, embora, como é natural, não tenham sido aceites nem suficiente para travar essa reforma de política da Língua.
Assim, na obra poética, conta-se: Modo Mudando (1963); O Mês de Dezembro e Outros Poemas (1976); A Sombra das Figuras (1985); Sonetos Familiares (1994); Uma Carta no Inverno (1997); Testamento de VGM (2001); Antologia dos Sessenta Anos  (2002); Natal… Natais – Oito séculos de Poesia sobre o Natal (Antologia de Vasco da Graça Moura /2005); Os nossos tristes assuntos  (2006); O Caderno da Casa das Nuvens (2010); e Os Lusíadas para Gente Nova (Uma nova versão d’ Os Lusíadas de Luís de Camões /2012)
Para ele, a poesia “é uma questão de técnica e de melancolia”, crescendo d’ A Furiosa Paixão pelo Tangível através de uma densa rede metafórica que combina a intertextualidade, relacionada especialmente com Camões, Jorge de Sena, Dante, Shakespeare e Rilke, objetos privilegiados de estudo deste autor, e uma tendência ironicamente discursivista assente na agilidade sintática.
Por seu turno, no atinente ao ensaio, publicou Luís de Camões: Alguns Desafios  (1980); Camões e a Divina Proporção  (1985); Sobre Camões, Gândavo e Outras Personagens (2000); Lusitana Praia (2005); Anotações Europeias (2008); Acordo Ortográfico: A Perspectiva do Desastre (2008); O Binómio de Newton & A Vénus de Milo – Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa – Uma Antologia (2011); e A Identidade Cultural Europeia (2013).
No respeitante ao romance e novela, registam-se os seguintes títulos: Quatro Últimas Canções (1987); Partida de Sofonisba às seis e doze da manhã  (1993); A Morte de Ninguém  (1998); Meu Amor, Era de Noite  (2001); Enigma de Zulmira  (2002); Morte no Retrovisor (2008); a trilogia O vermelho e as sombras (constante das novelas: O Pequeno-Almoço do Sargento Beauchamp, 2008; O Mestre de Música, 2010; e Os Desmandos de Violante, 2011); e Naufrágio de Sepúlveda (2009).
Em termos de diário e crónica, referem-se: Circunstâncias Vividas  (1995); Contra Bernardo Soares e Outras Observações  (1999). Isto sem contar as crónicas regulares no Diário de Notícias e as eventuais em vários jornais e revistas.
No quadro da tradução e resumo, temos: Fedra, Andromaca e Berenice, as três obras de Racine; O Cid, de Corneille; A Divina Comédia, de Dante Alighieri; Cyrano de Bergerac, de Edmond de Rostand; O misantropo, de Moliére; Sonetos, de Shakespeare; Rimas, de Petrarca; e O Poema sobre o Desastre de Lisboa, de Voltaire (edição bilingue); Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves; Os Triunfos, de Petrarca; Alguns Amores, de Ronsard; e A Vita Nuova, de Dante Alighieri.
Foi galardoado com vários prémios, de que se destacam: o Struga Poetry Evenings; O Prémio Pessoa; o Prémio Vergílio Ferreira; o Prémio David Mourão-Ferreira, os prémios de Poesia do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Escritores, que também lhe atribuiu o Grande Prémio de Romance e Novela; sem esquecer o premio que Itália lhe atribuiu como o melhor tradutor de italiano do mundo.
O Estado Português reconheceu-lhe o mérito ao atribuir-lhe a Grã-Cruz da Ordem de Santiago de Espada, ao mesmo tempo que a comunidade literária o homenageou ao perfazer 50 anos de carreira.

Concorde-se ou não com toda a sua panóplia de opções, a Madre Língua sente-se reconhecida pelo tributo que este homem do saber e da ação lhe prestou, quer em termos de criatividade quer em termos de recriação e divulgação. Venham muitos com este para a ribalta do conhecimento e da atividade pela nossa pátria, que é a Língua Portuguesa!

sábado, 26 de abril de 2014

Bento XVI concelebra com Francisco na canonização dos dois Papas

O comentário à informação
A agência Ecclesia dá relevo à informação do Vaticano de que, na Liturgia em que o Papa Francisco procede à canonização de João XXIII e João Paulo II, Bento XVI concelebra.
Esta será a primeira vez que o Papa emérito, que renunciou ao pontificado em fevereiro de 2013, vai concelebrar uma Missa presidida pelo seu sucessor, após ter estado pela primeira vez na Basílica de São Pedro, com Francisco, no Consistório de 22 de fevereiro” – assinala o responsável da informação na referida agência católica.
Trata-se efetivamente de facto insólito e mesmo inédito. E o responsável pela Sala de Imprensada Santa Sé revela satisfação pela notícia: “Ficaremos muito felizes por ter a sua presença”. Mas exprime uma cautela, a meu ver, desnecessária: “O Papa emérito Bento XVI aceitou o convite e comunicou ao Papa Francisco que estará presente na manhã de domingo na celebração e que concelebrará: por isso, será também concelebrante, o que não quer dizer que vá ao altar”.
E se fosse ao altar? Para concelebrar não precisa de ir ao altar. Porém, não creio que no altar assustasse o Papa Francisco. Que eu saiba, apesar de ver padres e bispos em celebrações eucarísticas em hábito talar, vestidos à civil e, no caso de padres, alguns a fazer de diácono ou de subdiácono, eles não deixam de participar, em conformidade com a doutrina de alguns teólogos, segundo a sua própria condição: são sempre padres ou sempre bispos. É óbvio que a celebração deve mobilizar as condições de validade e as de licitude, como deve espelhar ordinariamente a responsabilidade “coinonística” e hierárquica de quem a detém no momento. Sendo assim, não me parece que Bento XVI, por ter renunciado à permanência no exercício do ministério petrino, tenha perdido o caráter episcopal nem que alguma vez viesse a “inobservar” a promessa que em tempo fez de prestar obediência ao seu sucessor e de o respeitar: “E entre vós, entre o Colégio Cardinalício, está também o futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha reverência e obediência incondicionadas” – palavras aos cardeais em 28 de fevereiro de 2013. 
Por outro lado, Francisco declarou o ano passado que temos de nos habituar ao pontífice emérito, instituição de que não tínhamos experiência, como não a tínhamos em relação ao bispo emérito antes do Concílio Vaticano II e já nos habituámos a lidar com a instituição do emérito.
De facto, já a maior parte das dioceses passou pela experiência de respeitar o seu bispo diocesano e de lhe prestar obediência e, ao mesmo tempo, continuar a ver e a venerar o seu bispo emérito, que antes até era denominado de bispo resignatário. Muitos deles continuaram a ser ouvidos e lidos; alguns continuaram sabiamente a exercer do lado da vertente da solicitude por todas as Igrejas e até a assumir encargos de relevância eclesial; e outros chegam a substituir o ordinário diocesano em seus impedimentos de saúde e mesmo de agenda. É certo que, aliás como em tudo na vida, alguns eméritos, voluntária ou involuntariamente, criaram problemas aos seus sucessores imediatos, tal como alguns bispos diocesanos os criaram aos coadjutores e auxiliares. No entanto, não se pode ter a nuvem por Juno ou confundir a árvore com a floresta.
Pode, entretanto, entender-se que o sumo pontificado apresenta um outro melindre, quer pela peculiar visibilidade do ministério petrino, quer pela falta de experiência em torno da “emeritidade” papal. Todavia, duas coisas favorecem o afastamento do espectro do receio: por um lado, não é crível que Bento renuncie à discrição a que se remeteu voluntariamente ou ao juramento que espontaneamente pronunciou por antecipação; por outro, Francisco, mercê do seu carisma profético e do seu estilo de proximidade às pessoas, ganhou irreversivelmente as boas graças da opinião pública. O grupo dos descontentes, apesar de significativo e ativo, é cada vez menor e mais isolado. Pena é que o Papa seja mais admirado que ouvido e mais ouvido que seguido.
Há outrossim um duplo dado adicional a acrescentar. Se Bento XVI não tinha forças físicas e do espírito para continuar a levar por diante o múnus do sucessor de Pedro, certamente que as terá redobradas para resistir a uma eventual tentação de se imiscuir nos negócios eclesiásticos, o que não quer dizer que não desejem alguns solicitar-lho. Por seu turno, Francisco não é nem falho de Teologia profunda nem de uma sadia humanidade nem de suficiente prudência para ter a certeza de que pisa terreno seguro ao formular o convite ao predecessor emérito para assomar ao público em momentos significativos.

A importância do momento da dupla canonização como significativo
E o momento celebrado em 27 de abril é fortemente significativo. É a canonização de dois novos santos que exerceram o sumo pontificado em uma única celebração: no segundo domingo da Páscoa, o da oitava pascal, também chamado de Pascoela, ou ainda da divina misericórdia, segundo o desejo e determinação do segundo deles: João Paulo II. São dois papas que passam a ficar incluídos na lista (ou cânone) dos bem-aventurados aos quais a Igreja, depois de lhes reconhecer virtudes heroicas e o poder de interceder junto de Deus para a realização de milagres, tributa culto universal e apresenta como modelo em aspetos fundamentais da vida de relação com Deus e com o próximo.
Depois, João XXIII é, sobretudo, o grande papa que, independentemente de a ideia de um novo concílio ser ou não inteiramente sua (há quem diga que já Pio XI a teria equacionado e Pio XII teria encarregado uma comissão cardinalícia que terá concluído ou não ser necessário ou não estarem reunidas as condições), tomou audazmente a decisão solitária de anunciar o Concílio Vaticano II, de o convocar, de o inaugurar e de presidir sua à primeira sessão, por si e/ou por delegados seus. Por outro lado, assumiu oficialmente, por parte da Igreja, uma reiterada e renovada formulação dos direitos humanos (Encíclica Pacem in Terris); abordou em novos termos a questão social (Encíclica Mater et Magistra); impulsionou o ecumenismo, a que deu continuado vigor; propôs uma leitura profunda dos sinais dos tempos, a partir das mudanças profundas e universais que o mundo apresentava em que se devia ver o dedo de Deus; anteviu a necessidade de elaboração de novo código de direito canónico para a Igreja Latina (para o que constituiu a respetiva comissão) e novo código de direito canónico para as Igrejas Orientais; e marcou como vertente dominante a componente pastoral na reflexão da Igreja sobre sim mesma e na sua relação com o mundo. Além disso, cuidou da própria diocese de que era bispo: convocou o Sínodo Romano e visitou muitas paróquias da Diocese de Roma, sobretudo as dos bairros mais novos. E, sobretudo, com a sua humildade e o seu sorriso, introduziu um novo estilo na condução da Igreja.
E, se incumbiu a Paulo VI, promover a prossecução dos trabalhos conciliares, promulgar os seus documentos (4 constituições, 9 decretos e 3 declarações), sistematizar e redobrar as bases do diálogo entre os homens e da Igreja com o mundo (especificamente com os outros cristãos, os membros de outras religiões e os não crentes) e executar as opções setoriais do concílio, a João Paulo II coube a concretização de importantes opções do Concílio, à luz dos fenómenos pós-conciliares quer eclesiais quer do quadro da situação mundial. Tal é o caso do novo Código de Direito Canónico, do Catecismo da Igreja Católica, do grande número de encíclicas e exortações apostólicas pós-sinodais, as Jornadas Mundiais da Juventude e as viagens por quase todo o mundo (Foi um verdadeiro andarilho do Reino de Deus e da sua terna jovialidade). O papa polaco foi ainda o protagonista da consagração mariana da Rússia, da queda do muro de Berlim e da libertação dos países do Leste. Contudo, nem tudo foi exemplar: um certo retrocesso na colegialidade; alguma intensificação do centralismo; espaçamento das assembleias sinodais ordinárias; regressão nos aspetos doutrinais no âmbito da fé e costumes, levando a confundir dados disciplinares com dados dogmáticos (vg pretenso encerramento da ordenação sacerdotal de mulheres e afunilamento da discussão sobre o celibato eclesiástico); excesso de vigilância sobre a investigação teológica e seu ensino, com abjuração da teologia da libertação; e rejeição da inserção política de notáveis membros da hierarquia da Igreja, a coberto da missão não política da Igreja.

Relação dos dois pontífices com Portugal
Ambos os novos santos pontífices guardam uma especial relação com Portugal. Ângelo Giuseppe Roncalli, cujo pontificado foi de curta duração, para além de um alegado muito remoto parentesco com famílias lusitanas, foi, passados mais de 600 anos, o primeiro papa a adotar o nome do único papa português, João XXI. E, apesar das pressões e do receio de alguma parte do clero da respetiva diocese, manteve-se firme na decisão de não prover a Igreja do Porto de novo titular, por força do exílio do seu bispo Dom António Ferreira Gomes, imposto pelo governo do Estado Novo. Em relação a Fátima, é de recordar que, enquanto cardeal e Patriarca de Veneza veio presidir à peregrinação internacional aniversária de 13 de maio de 1956.
Karol Wojtyla, por sua vez, estabeleceu uma fortíssima relação com Fátima, a partir do atentado de que foi alvo na praça de S. Pedro, a 13 de maio de 1981. Desde então, o agradecimento à ‘Senhora da Mensagem’ seria contínuo e periodicamente manifestado: esteve em Fátima por três vezes. Na primeira delas (13 de maio de 1982), apresentou-se “com o terço na mão, o nome de Maria nos lábios e o cântico da misericórdia de Deus no coração: Ele, também ‘a mim fez grandes coisas... A sua misericórdia se estende de geração em geração’ (Lc 1,49-50)”.
Não muitos serão os que se recordam de que em 2 de março de 1983 esteve em Lisboa, no quadro da escala técnica prevista durante a viagem Apostólica à América Central, e fez um grande discurso à multidão apinhada no aeroporto internacional. Dessa alocução, em que revela o que pretendeu dizer aos portugueses no ano anterior, destacam-se os segmentos seguintes:
Por detrás do entusiasmo jovem, da cordialidade adulta e da estima e respeito geral, com que fui recebido então, procurei ver essa fraternidade no rosto de cada um dos portugueses, na comum “semelhança” do Criador de todos nós e no comum chamamento à Salvação; e quis dizer-lhes, primeiro que tudo, isso mesmo: todos somos irmãos; temos de nos amar fraternamente, vendo o nosso “próximo” em cada homem, sobretudo quando este sofre ou está ameaçado no próprio núcleo da sua existência e da sua dignidade; a isto nos impele o amor de Deus que, em Jesus Cristo, se nos revelou como Pai, “rico em misericórdia”. […] De novo em veste de peregrino, são idênticos os pensamentos que me guiam; e a boca fala da abundância do que vai no coração: o amor de Deus, rico em misericórdia; o poder da Redenção de Cristo; Nossa Senhora, Mãe da nossa confiança; e o amor e a paz entre os homens.
E, a pedido do próprio João Paulo II, foi levada ao Vaticano a Imagem de Nossa Senhora que se venera na Capelinha das Aparições do Santuário de Fátima, em frente da qual, na Praça de S. Pedro, o Papa proferiu em 25 de março de 1984 novo Ato de Consagração, em tudo semelhante ao de 13 de maio de 1982, em Fátima.
No ato de entrega que pronunciou em Fátima aos pés da imagem da Virgem, em 13 de maio de 1991, rezou:
Sim, continuai a mostrar-Vos Mãe para todos, porque o mundo tem necessidade de Vós. As novas situações dos povos e da Igreja são ainda precárias e instáveis. Existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã. 
E em 13 de maio de 2000, veio a Fátima proceder à Beatificação de dois dos pastorinhos a quem a virgem aparecera – Jacinta e Francisco e mandou revelar ao povo a terceira parte do “segredo” que fora revelado aos videntes.

Concluindo
Quanto aos altos dignitários eclesiais vivos, é natural que Francisco, o “Sumo Sacerdote” em atividade tenha convidado o “Sumo Sacerdote” jubilado, Bento XVI, como é natural que este tenha correspondido ao convite. Qualquer quer bispo diocesano convida o seu antecessor emérito para as solenidades significativas, convite a que ele responde positivamente ou negativamente conforme o seu sentido de liberdade e de cordialidade.
Bergoglio, estudante no tempo de João XXIII, foi efeito bispo e feito cardeal por João Paulo II e participou no conclave que elegeu Bento XVI; Ratzinger, perito no concílio convocado por João XXIII, foi professor de Teologia Dogmática durante o seu pontificado e foi chamado para a prefeitura da Congregação da Doutrina da Fé por João Paulo II, a quem sucedeu na Cátedra de Pedro.

Quanto aos novos santos, com traços que os fazem iguais e diferentes (num deles não se veem sombras; no outro, o mais recente, talvez sim), são no dizer do Bispo de Leiria-Fátima, “dois Papas que marcaram os séculos XX e XXI, com a sua santidade vivida e manifestada no exercício da sua missão, com estilos e personalidades diversas, mas unidos pela paixão ao homem e a Cristo”. E assegura que “não há um molde para fazer santos, cada um é na sua situação concreta, no tempo e nos desafios que a Igreja e o mundo colocam”.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O que significa ser santo para a Igreja?

Nótula prévia
Relativamente à questão colhida na blogosfera, antes de mais, é oportuno distinguir santidade do homem e santidade de Deus e, consequentemente, santidade de Cristo. Depois, quanto à santidade do ser humano, convém diferenciar a santidade a que todos somos chamados e, por assim dizer, obrigados e a santidade reconhecida pela “autoridade eclesiástica” e/ou pela vox populi como se de vox Dei se tratasse – o tal santo subito!, bradado na Praça de S. Pedro em abril de 2005.
Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe (A. Garrett, Frei Luís de Sousa, I,3). É de ter em conta a voz do povo. Porém, às vezes, é tão injusta: Hossana ao Filho de David! vs Crucifica-O! Solta Barrabás! Não era mesma multidão?

A santidade de Deus, a santidade de Cristo
A proclamação triságica do santo, santo, santo encontra-se duas vezes na Bíblia, uma no AT/Antigo Testamento (Is 6,3) e outra no NT/Novo Testamento (Ap 4,8). Nos dois casos, a proclamação é feita por criaturas celestiais invisíveis tornadas visíveis na visão de um homem que foi transportado para o trono de Deus. Esse homem é, no AT, o profeta Isaías e, no NT, o apóstolo João.
A santidade de Deus é o atributo de Deus de mais difícil explicação. Deus tem atributos compartilhados, embora em menor grau, pelos seres humanos, como o amor, a misericórdia, a lealdade, a fidelidade, etc.. Outros não serão em caso algum compartilhados pelas criaturas, como, por exemplo, omnipresença, omnisciência, omnipotência. A santidade é compartilhável, mas apenas por graça divina. A santidade de Deus é o atributo que o separa e distingue de todos os outros seres; é mais do que Sua perfeição ou pureza sem pecado (ágnos, no grego); é a essência de Sua “alteridade”, a Sua transcendência. Ela encarna o mistério da Sua grandiosidade e faz-nos olhar para Ele com assombro quando começamos a entender um pouquito da Sua majestade.
O profeta foi uma testemunha da santidade divina (cf Is 6,5). A sua reação face à visão da santidade de Deus foi estar consciente dos seus próprios pecados. Os próprios anjos na presença de Deus, a proclamar a santidade do Senhor Todo-Poderoso, cobriram rostos e pés com quatro das suas seis asas (cf Is 6,2). A visão de João do trono de Deus é semelhante à de Isaías: havia também criaturas viventes a circundar o trono e a clamar: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus Todo-Poderoso, Aquele que é, que era e que há de vir” (Ap 4,8), em reverência e temor ao Santo (hágios, no grego). Não há indicação de que João tenha caindo em terror pelo seu eventual estado pecaminoso. O apóstolo já tinha encontrado o Ressuscitado no começo da sua visão (cf Ap 1,17). Cristo tinha colocado a Sua mão sobre ele e ordenado que não tivesse medo.  
A tríplice enunciação, muito comum entre os judeus, aqui a da santidade divina significa a convicção confiante, a sinceridade e a intensidade do ato de adoração (a plenitude latrêutica). Por outro lado, o triságio expressa a natureza trina de Deus, as três Pessoas da Divindade, distintas, mas cada uma igual em santidade e majestade (vd Prefácio da Missa da SS.ma Trindade); e a identidade da proclamação triságica nos dois blocos da Escritura pressupõe a certeza de que o Deus de Jesus e dos apóstolos é o mesmo que o dos profetas. Jesus, orando ao Pai, chama-lhe Pai Santo (cf Jo, 17,11).
Por seu turno, Jesus Cristo é o Santo que não sofreu “decadência” ou degradação no túmulo, mas foi ressuscitado para ser exaltado à direita de Deus (cf At 2,25.33-34; 13,33-35). Jesus é “o Santo e o Justo” (At 3,14) cuja morte na cruz nos garante o acesso ao trono do nosso Deus santo, sem qualquer tipo de vergonha. E que Ele, enquanto imagem visível do Pai, é o único “Santo” na Terra. Nos o proclamamos no Gloria in excelsis, “Tu solus sanctus”.
Tal como no AT Deus quer que os homens sejam santos (“Sede santos porque Eu sou santo” – Lv 11, 44; 19,2), também, no NT, Jesus o determina (“Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está nos Céus” – Mt 5,48) e Pedro, citando o AT (1Pe 1,16 – “Sede santos porque Eu sou santo”), com que argumenta, manda que sejamos “santos em toda a maneira de proceder” (1Pe 1,15). Ora, sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus e redimido por Cristo para recuperar tal estatuto perdido por causa do pecado, este “homem novo” pode e deve aproximar-se do trono da graça, se tiver a mão de Cristo sobre si na forma da justiça de Deus, a qual nos foi outorgada na cruz em troca do nosso pecado (cf 2 Cor 5,21; Hbr 4,16).
E todos somos chamados à santidade. O Vaticano II, na Constituição Dogmática sobre a Igreja, exprime claramente a chamada universal à santidade, assegurando que ninguém é dela excluído: “Nos vários géneros de vida e nas várias formas profissionais é praticada uma única santidade por todos os que são movidos pelo Espírito de Deus e (...) seguem Cristo pobre, humilde e carregando a cruz, para merecerem ser partícipes da sua glória (cf LG 41; GS 48).

E em que consiste a santidade humana? Ou: resposta a questão da epígrafe
Os termos hebraicos Qadosh, para santo, e Qodesh, para santidade, terão partido do primitivo conceito de separação ou remoção do sagrado do profano (hôl). Os hagiógrafos tomaram as palavras, que usaram para descrever muitas coisas e atividades separadas para adoração. Estes termos empregam-se predominantemente em sentido religioso e habitualmente contêm o significado fundamental de “separado”, ou “fora do uso comum”. O seu uso ficou normalmente adstrito a regras cerimoniais ou limitado a certo povo (Israel, sacerdotes), lugares (tabernáculo), coisas (altares), ou tempos (sábado). O termo oposto a santo é “impuro”, “profano” (vd Lv 10,10).
O termo no AT é usado no AT, por si e variantes, mais de 600 vezes multimodamente: para nomear alguma coisa a ser separada, por exemplo, o santo lugar (Ex 28,43; 29,30) era separado dos lugares comuns para adoração; para descrever uma caraterística, por exemplo, o nome de Deus é, por vezes, expresso por “meu santo nome” (Lv 20,3; 22,2) e Sião é, às vezes, chamado o “santo monte” (Sl 2,6). Por seu turno, o verbo “santificar” significa “consagrar ou separar a pessoa ou objeto do comum (no grego témnos, de témnein, cortar; no latim, sanctus, de sancire, cortar). Assim, Deus “santificou” vítimas, pessoas e altar (Ex 29,25-37), o Templo (cf 1Rs 8,64), pessoas (cf Ex 19,10.14) e lugares (cf Ex 19,23). Raramente a santidade é transmissível a outros objetos (cf Ex 29,37; 30,29; Lv 6,27), mas na maioria dos casos a impureza (como o vício, a idolatria) é transmissível e poluente para o que é santo (cf Ag 2:12-13). Os objetos santos são muito numerosos. No entanto, destacam-se a arca da aliança, o tabernáculo (ou mais tarde o Templo) e todos os artigos envolvidos na adoração, as pessoas que executavam a adoração, a terra em volta do tabernáculo e a nação inteira de Israel.
O termo skinner descreve o significado de santidade, querendo dizer que santidade exprime uma relação que consiste, pela negativa, na separação do uso comum, e pela positiva, na pureza (tãhôr) e dedicação ao serviço de Javé. É, porém, duma santidade marcadamente ritual que se trata.
Para designar a palavra “santo”, o hebraico tem a palavra Qadesh, que também designa, por vezes, o nome do Deus dos judeus e também aparece no NT. Significa também pessoa ou coisa consagrada perante outras pessoas e coisas. Existem variantes de Qadesh. Assim: Qadosh significa sagrado (hiereus, no grego; sacer, no latim); Qidush significa santificação, ou consagração; Yom Qadosh significa dia Santo; Qadish significa santificação ou uma oração litúrgica de origem aramaica feita durante 11 meses, para exaltar e louvar o nome de Deus e rogar pela vinda do reino messiânico. 
Bento XVI, na sua catequese de 13 de abril de 2011, tendo em conta as Escrituras e a doutrina conciliar, explica que, contra o que frequentemente se pensa, “que a santidade é uma meta reservada a poucos eleitos”, Paulo prega o grande desígnio de Deus: “N'Ele, Cristo, (Deus) escolheu-nos antes da criação do mundo para sermos santos e imaculados diante d'Ele na caridade” (Ef 1,4). E o Papa esclarece:
“Fala de todos nós. No centro do desígnio divino está Cristo, no qual Deus nos mostra o seu rosto: o mistério escondido nos séculos revelou-se em plenitude no Verbo que se fez homem. E Paulo depois diz: De facto, aprouve a Deus que nele habite toda a plenitude (Cl 1,19). Em Cristo o Deus vivente tornou-se próximo, visível, audível, palpável para que todos possam beneficiar da sua plenitude de graça e de verdade (cf. Jo 1,14-16)”.

“A santidade, a plenitude da vida cristã” – adverte o Pontífice – não consiste em realizar empreendimentos extraordinários, mas em unir-se a Cristo, em viver os seus mistérios, em fazer nossas as suas atitudes, pensamentos e comportamentos.”
Por outro lado, “a medida da santidade” – garante Bento XVI, citando Paulo e Agostinho – é dada pela estatura que Cristo alcança em nós, desde quando, com a força do Espírito Santo, modelamos toda a nossa vida sobre a sua. Consiste na nossa conformação com Jesus, “Aqueles que ele conheceu desde sempre, predestinou-os para serem conformes com a imagem do seu Filho” (Rm 8,29) e em deixarmo-nos preencher totalmente pela vida de Cristo, “Será viva a minha vida toda repleta de Ti” (Confissões, 10,28). É santidade em espírito e verdade (cf Jo 4,24), em contraste com a ritual do AT.
Por sua vez, o Papa Francisco, no dia 1 de novembro de 2013, à recitação do Angelus na Praça de S. Pedro, garante que “ser santo não é um privilégio de poucos, mas uma vocação para todos”. Por isso, a Igreja tem a solenidade anual de todos os santos em que honra “os amigos de Deus, os que no rosto dos mais pequenos e desprezados viram a face do Senhor”.
Acrescentando que
“Os santos não são super-homens nem nasceram perfeitos, antes da glória viveram uma vida normal com alegrias e dores, fadigas e esperanças”, mas depois que “conheceram o amor de Deus, seguiram-no com todo o coração, sem condições ou hipocrisias, passaram a sua vida ao serviço dos outros, suportaram sofrimentos e adversidades sem odiar e respondendo ao mal com o bem, espalhando a alegria e a paz”.

Assim, os santos são homens e mulheres que têm a alegria no coração e a transmitem aos outros” – reforçou.

Condições para atingir a santidade
Assumindo a excelência e a acessibilidade da santidade, há que reunir um complexo de condições pessoais consentâneas com ela, como:
O desejo habitual de dar graças a Deus e expressar o amor por Ele (cf Jo 14,15); o anseio por andar o mais possível em união com Deus (cf Mt 5,8);  a solicitação da graça santificante atual de Deus para nossa vida e serviço ao próximo e seu incremento através da oração e da vida sacramental; a disponibilidade para ser um instrumento de Deus para Sua honra e glória (cf 2Tm 2,20-21); a ânsia de ver os incrédulos aproximarem-se de Cristo por terem observado o nosso viver (cf 1Pe 3,1-2); o esforço constante de evitar o mal e assumir a disciplina de Deus sobre nós; a procura da vontade de Deus, só porque em Seus mandamentos brilha a justiça e traz alegria à alma; e a relação sadia com a comunidade. –

O essencial do ensino eclesial na era apostólica visa a santidade de vida, para o que exige, antes de mais, o arrependimento e a conversão (cf At 3,19). Daí advém a mudança de atitudes, de pensar, de agir, de sentir, gerando uma vida diferente, que busca a santificação no dia a dia. É a Palavra que limpa, purifica e guarda (cf Jo 15,3; Sl 119,11); que é santa e santificadora, porque verdadeira (cf Jo 17,17); poderosa para santificar, purificar e tornar a Igreja imaculada, sem ruga, santa e irrepreensível (cf Ef 5,26-27). Ora é precisamente o estado pecaminoso o que separa o homem de Deus. O Senhor ama o pecador, mas aborrece o pecado (cf Rm 3,23-24) e exige que o Seu povo seja santo, tal como Ele é (Lv 11,44; 19,2; 20.7,26 – já citados). Ser santo significa, pois, ser irrepreensível (cf l Ts 3,13); viver segundo a vontade divina, não se deixando contaminar pelo pecado (cf Ef 1,4); e não se confor­mar com o mundo (cf Rm 12,2), renunciando às obras da carne, mas produzindo os frutos do Espírito (Gl 5,22). 
Porém, é o Espírito Santo que opera na vida do crente para o santificar, tornan­do-o puro para Deus. É Ele quem dá as condições para se ter uma vida espiritual equilibrada. E Jesus é o modelo de santidade do cristão, como escreveu Pedro (1Pe 1,15), o mesmo apóstolo que repetiu o que o próprio Deus havia determinado desde os tempos antigos: “Sede santos porque eu sou santo” (Lv 11,44 – já citado). Na oração feita por Jesus ao Pai, Ele intercedeu pela santificação dos discípulos (Jo 17,6-19). É óbvio que a Igreja ficou abrangida por aquela oração. Quem deixou a mundanidade e passou a pertencer a Jesus já é santificado por Ele.
O apóstolo Paulo escreveu que “as más conversações corrompem os bons costumes” (cf 1Cor 15,33). Porém, acontece o contrário com quem escolheu o próprio Jesus para seu amigo, seu companheiro, seu Senhor e Mestre (cf 1Cor 1,30). Foi lá no Calvário que Jesus deu o passo decisivo de redenção da humanidade. Derramou o Seu preciosíssimo sangue para redimir o pecador. Resgatou o homem das trevas para a luz, da mentira para a verdade, da impureza para a santificação (cf Hbr 13,12). 
Mas sendo a santidade um estado de vida que se adquire gradativa e continuamente, é necessária a busca constante dessa qualidade, com a ajuda do Espírito Santo. É necessária a constância da perfeita santidade (cf Ef 4,12-13). O primeiro passo dado em direção a uma vida pura é a conversão (cf 2Cor 5,17). Depois, o crescer na graça e no conhecimento de Jesus (cf 2Pe 3,18) vai dando ao crente a condição de se ir purificando em todas as dimensões (cf 1Jo 3,3) em todos os sentidos: no olhar (cf Mt 6,22; 18,9); no falar (cf Mt 5,37; Ef 4,25); no andar (cf Gl 5,16); no porte diante dos descrentes (cf Rm 14,15.18); em todo o viver (cf Fl 1,21; Gl 2,20).
 A vontade de Jesus é que o crente seja totalmente santo: espírito, alma e corpo (lTs 5,23). 
É verdade que, enquanto o crente estiver aqui neste mundo em sua peregrinação, ele não será perfeito em santidade. A perfeição, porém, é o alvo maior a que se propõe (cf Ef 4,13). Mas a santidade deve ser buscada e exercitada em todas as situações de vida. Porém, as grandes coisas iniciam-se como pequenas coisas. Se o crente se acostumar a não dar importância a elas, a sua mente ficará cauterizada e a expressão “não faz mal” pas­sará a ser recorrente no seu vocabulário. Paulo, na 1.ª carta aos Coríntios, releva a necessidade de especial preparação para aqueles que vão participar da Ceia do Senhor. Advertiu que quem nela participa indignamente torna-se culpado. E denuncia a existência, na igreja, de muitos fracos, doentes e até mortos espirituais porque não se preparam de modo adequado, que agrade ao Senhor. (cf 1Cor 11,27-30).
A bem-aventurança típica dos santos, os puros de coração, foi proclamada pelo próprio Jesus: “eles verão a Deus” (Mt 5.8b). No livro dos Atos, descrevem-se os primórdios da Igreja na terra, sendo a sua inauguração e os seus primeiros tempos corroborados com uma série de abençoados acontecimentos da parte de Deus. Todos os crentes participavam unânimes, num mesmo espírito de cooperação. Viviam em igreja-comunidade. Era comum venderem suas propriedades ou parte delas para ajuda aos mais necessitados (cf At 2,44-46; 4,32-37).

O reconhecimento público da santidade, a sua apresentação modelar e a prestação de culto
Em muitos casos, a autoridade eclesiástica, sem se pronunciar sobre o mérito de outros, decide distinguir de forma especial alguns cristãos que viveram as virtudes teologais e humanas em termos de heroicidade. Por isso, declara solenemente que eles vivem já na companhia definitiva de Deus e possuem a visão beatífica e, além disso, podem e devem ser apresentados como modelos a seguir em vertentes fundamentais da vida cristã. Não pode é declarar que quem quer que seja não esteja no céu.
Os primeiros santos, neste sentido técnico-eclesiástico, foram “feitos” santos pela piedade do povo cristão e reconhecidos pela competente autoridade eclesial. Tal sucedeu com os apóstolos, os outros mártires e com homens ou mulheres que morreram em inquestionável odor de santidade. Entretanto, para que não restassem dúvidas de que algum ou alguma tivesse sido honrado com os altares sem que esse reconhecimento fosse plausível, começou a exigir-se o conveniente processo e criou-se em Roma um dicastério específico para o efeito – a Congregação para as Causas dos Santos.
 E temos dois tipos de situação: a beatificação e a canonização.
– Beatificação (do latim beatificatio de beatus, feliz, a partir do grego  μακαριος, makários) é o ato de declarar beato ou beata uma pessoa, ou seja, o reconhecimento feito pela autoridade da Igreja  de que a pessoa a quem se confere esse estatuto se encontra no Paraíso, em estado de beatitude, e pode interceder por quem se lhe dirija em oração.
Difere da canonização, sobretudo no seguinte: a beatificação comporta uma permissão local para o culto de dulia ou veneração, ao passo que a canonização, ultrapassando os limites da comunidade territorial ou humana implicada, ganha dimensão universal. Por outro lado, alguns teólogos não consideram a beatificação como uma declaração infalível da Igreja, sendo, no entanto, um passo rumo à canonização. Em termos processuais, as diocese têm autoridade para abrir o processo. A causa de beatificação possui um bispo postulador, que atua como uma espécie de advogado, que investiga a vida do candidato para verificar o seu testemunho de santidade. Aberto o processo, o candidato recebe o título de Servo de Deus. Na fase inicial, investigam-se as virtudes ou o martírio. Neste último caso, investigam-se as circunstâncias e os detalhes da morte. Concluído o processo de investigação com parecer positivo, a pessoa é declarada Venerável. Depois, há que aguardar que surja pelo menos um milagre cuja realização se comprove que resultou da intercessão do(a) Servo(a) de Deus. Não é necessária a verificação desta condição em caso de martírio. Finalizado o processo, é promulgado o decreto de beatificação e costuma proceder-se a celebração solene, preferencialmente com a comunidade implicada no processo, presidida pelo Papa ou por dignitário que o represente.
– Canonização  (de cânone, regra, catálogo) é o termo utilizado pela Igreja para denominar ato de atribuir o estatuto de Santo a alguém que já foi declarado Beato. Trata-se um ato altamente ponderado, resultante de um processo complexo dentro da Igreja, a ponto de só poder ser tratado pela Santa Sé em si, por uma comissão de altos membros e com a aprovação final do Papa.
O Código de Direito Canónico (CDC) estabelece: 
Para fomentar a santificação do povo de Deus, a Igreja recomenda à veneração peculiar e filial dos fiéis a Bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, que Jesus Cristo constituiu Mãe de todos os homens, e promove o verdadeiro e autêntico culto dos outros santos, com cujo exemplo os fiéis se edificam e de cuja intercessão se valem. (CDC, cânone 1186).
E
Só é lícito venerar com culto público os Servos de Deus, que foram incluídos pela autoridade da Igreja no álbum dos Santos ou dos Beatos (CDC, cânone 1187).

O processo é regulamentado por dois documentos em vigor: a Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister (1983), de João Paulo II, que estabelece as normas para a instrução das causas de canonização e para o trabalho da Congregação para as Causas dos Santos; a instrução Sanctorum Mater, de 17 de maio de 2007, da respetiva Congregação, sobre as normas que regulam as causas de beatificação e canonização; e o “Index ac status causarum” (1999), do mesmo dicastério.
Segundo os preditos documentos, é ao bispo diocesano ou autoridade equivalente que, por iniciativa própria ou a pedido dos fiéis, compete investigar a vida, virtudes ou martírio, fama de santidade e milagres atribuídos; e, se considerar necessário, a antiguidade do culto da pessoa cuja canonização é pedida. Para tanto, designará um postulador que recolherá informações pormenorizadas sobre a vida do Servo de Deus e se informará sobre as razões que pareçam favorecer a promoção da causa da canonização. Depois do exame dos escritos, que tenham sido publicados, por teólogos  censores e nada havendo neles contra a fé e costumes, passa-se ao exame dos escritos inéditos e de todos os documentos que de alguma forma se refiram à causa. Se ainda assim o bispo considerar que se pode ir em frente, providenciará ao interrogatório das testemunhas apresentadas pelo postulador e de outras que achar necessário.
O exame do eventual martírio e o das virtudes, que o servo de Deus terá praticado em grau heroico, e o exame dos milagres a ele atribuídos devem ser feitos em separado. Concluídos os trabalhos, o processo é enviado à Congregação das Causas dos Santos, onde consultores procedentes de diversas nações e peritos em várias áreas científicas farão os necessários estudos. Depois, o decreto papal reconhecerá a prática das virtudes em grau heroico e declarará “Venerável” aquele Servo de Deus.
Havendo apresentação de milagre, este é examinado em reunião de peritos (e se se trata de cura, pelo Conselho de Médicos), sendo depois submetido a um congresso especial de teólogos; e, por fim, à Congregação dos cardeais e bispos. O parecer final desta é comunicado ao Papa, a quem compete decretar o culto público eclesiástico que se há de tributar ao Servo de Deus. Portanto, a beatificação só pode ocorrer após o decreto das virtudes heroicas e da verificação de um milagre atribuído à intercessão do Venerável. O milagre deve configurar uma cura inexplicável à luz da ciência e da medicina, sendo consultados inclusive médicos ou cientistas de outras religiões e ateus. Deve ser uma cura perfeita, duradoura e que ocorra rapidamente, em geral de um a dois dias. Comprovado o milagre, é expedido o decreto, a partir do qual pode ser marcada a cerimónia de beatificação, presidida pelo Papa ou por um cardeal ou bispo, seu delegado para o efeito.
Caso a pessoa já tenha o estatuto de beato e seja comprovado mais um milagre (de que o Papa pode dispensar, bem como de alguns prazos, por motivos relevantes) pela Igreja, o Papa ou um Cardeal, seu delegado para o efeito, em missa solene, declará-la-á “santa”, digna da honra dos altares e de receber a mesma veneração em todo o mundo, concluindo-se assim o processo de canonização.
Em casos excecionais, há o recurso à denominada canonização equipolente, já que equivale (tem valor igual) ao processo normal, para declarar que determinada pessoa falecida se encontra junto de Deus, no céu, intercedendo pelos que ainda vivem na terra. São, porém, necessários três requisitos: prova do culto antigo ao candidato a santo, atestado histórico incontestável da fé católica e das virtudes eminentes do candidato e a fama ininterrupta de milagres intermediados pelo candidato. É um processo instituído no século XVIII por Bento XIV, através do qual o Papa “vincula a Igreja como um todo para que acate a veneração de Servo de Deus ainda não canonizado pela inserção de sua festividade no calendário litúrgico da Igreja universal, com Missa e Ofício Divino”.
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Porque os santos nem sempre foram exemplo em tudo (gostei de ler em tempos um livro sobre os defeitos dos santos), é que se exige a cura do tempo e se criticam com razão certas “santificações”, na vigência da memória de lacunas e controversas atitudes pouco explicadas e pouco sanadas. Mas Deus é grande e misericordioso!