sábado, 19 de abril de 2014

O tríplice perfume da tentação

O pregador da Casa Pontifícia, P.e Raniero Cantalamessa, OFM Cap, centra a sua pregação celebrativa da Sexta-feira Santa, dia 18 de abril, na Basílica de São Pedro, na figura do traidor.
Embora reconheça que no quadro da paixão de Cristo “existem muitas pequenas histórias de homens e de mulheres que entraram no raio da sua luz ou da sua sombra”, elege a mais trágica de todas, até por corporizar “um dos poucos factos comprovados, com igual destaque, por todos os quatro Evangelhos e pelo resto do Novo Testamento”.
Declara que Judas, ao ser incluído por Cristo desde a primeira hora na lista dos doze, não era traidor. Efetivamente, ele tornou-se ladrão durante a caminhada discipular e foi aí que surgiu o móbil da traição. Segundo o que se lê no Evangelho de João, Judas geria a bolsa comum do grupo; e, na ocasião da unção em Betânia, lavrara o seu protesto contra o desperdício do precioso espicanardo esparso por Maria aos pés de Jesus, não movido por desvelo pelos pobres, mas porque “era um ladrão e, como tinha a bolsa, tirava o que nela se colocava” (Jo 12, 6).
Não terá roubado muito, até porque o grupo não dispunha de grandes tesouros. Porém, como reza a sabedoria popular, “a ocasião faz o ladrão” e o tesoureiro foi metendo a mão na bolsa pouco a pouco. Esse dinamismo da iniquidade deveria dar azo a questionar-se o comportamento de certos administradores dos dinheiros públicos, que deles se utilizam para si e para os seus.
O caso faz-me lembrar, por um lado, a advertência dos moralistas a que não nos deixássemos cair no pecado venial que o seja em razão da leveza da matéria, porque a queda facilitada nas pequenas faltas pode, por força do hábito, fazer desembocar o uso em pecado grave, sendo muito difícil mais tarde arrepiar caminho, quer pela fraqueza do pecador por si mesmo, quer pela objeção de terceiros, se envolvidos na trama pecaminosa. Tal advertência goza da confirmação na aludida sabedoria popular que admoesta: “grão a grão enche a galinha o papo”. E o certo é que o apóstolo se tornou o que não era: ladrão e traidor.
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O padre Cantalamessa assegura que não têm qualquer base histórica as factícias reconstruções literárias e artísticas que se têm feito em torno do nome do Iscariotes para explicar o ato da traição. E dá como exemplos: a motivação idealista da traição por parte de Judas como sendo o escolhido explicitamente por deliberação do Mestre para satisfazer a economia da salvação; o seu pressuposto passado de “sicário” a atuar concertadamente com outros contra os romanos (há quem tente ver no apelido “Iscariotes” uma corrutela de “sicariota”); ou o seu desapontamento pela maneira como Jesus realizou a sua ideia do “reino de Deus”, que o teria forçado a agir no plano político contra os pagãos e que o tornaria semelhante a um outro célebre traidor do próprio benemérito: Brutus, que matara Júlio César, alegadamente para salvar a República.
O orador atém-se ao único móbil terra-a-terra referido pelos evangelistas – o dinheiro – argumentando que “a sua proposta aos chefes dos sacerdotes é explícita: ‘Quanto estais dispostos a dar-me, se vo-lo entregar’? E eles fixaram a soma de trinta moedas de prata” (Mt 26, 15). E entende não haver motivo por que achar tão banal a explicação. Aduz mesmo a ideia de que o dinheiro não é apenas um dos muitos ídolos; “é o ídolo por excelência, literalmente, o ídolo de metal fundido” (cf. Ex 34,17).
Avança mesmo com uma razão estribada no Novo Testamento para explicar o poder do dinheiro: Jesus declara expressamente que ninguém pode servir a dois senhores, a Deus e a Mamona (o deus “dinheiro”, o anti-Deus, o deus de Satanás). Ora, é necessário admitir com o pregador da Casa Pontifícia que o verdadeiro rival de Deus neste mundo, o verdadeiro inimigo da parte de Satanás, é exatamente o dinheiro – aquele dinheiro “que governa em vez de servir” (vd Giancarlo Bregantini, in Via Sacra 2012, II estação), ao liderar a economia que mata. E ninguém decide servir o diabo sem uma forte motivação, objetiva ou subjetiva: a convicção de que virá a ter algum benefício temporal: riqueza, prestígio ou poder – ou algo de similar.
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Os evangélicos sinóticos apresentam as três faces da tentação com que o sedutor diabólico procurou desviar Cristo do caminho redentor: a busca da fama, do prestígio, da importância; a satisfação da corporalidade por todo e qualquer meio; e a acumulação tirânica das riquezas.
Para o prestígio, a fama, a importância, o espetáculo do autolançamento de si mesmo a partir do pináculo do tempo (Cristo era o Filho de Deus) – o tentador garantia a palavra da Escritura: “ordenará aos seus anjos que olhem por ti, e eles tomar-te-ão nas mãos para que não magoes o teu pé nalguma pedra” (Mt 4,6; Lc 4,10.11). Para a satisfação da corporalidade (Cristo era o Filho de Deus que tinha fome, pois jejuara durante 40 dias), o diabo sugere o milagre de fazer com que “estas pedras se  transformem em pão” (Mt 4,3; Lc 4,3). A busca de prestígio e a sobrevivência corporal a um estado gritante de fome postulariam o milagre. Porém, a acumulação de riquezas e o domínio (o poderio) sobre todos os reinos do mundo exige a adoração a Satanás: “Dar-te-ei tudo isto, todo este poderio e a sua glória… se te prostrares diante de mim e me adorares” (cf Mt 4,9; Lc 4,6) – a idolatria que tornou meretriz a Cidade fiel (Is 1,21).
É claro que o Mestre responde à tentação ao contrário de Eva, sem contemporização, sem conversa, não se deixando ir na onda (cf Gn 3,1-2), mas de imediato e com argumentação à letra também com base na Escritura, aduzindo os segmentos textuais adequados à reposição da verdade. À sugestão de transformar pedras em pão contrapôs a advertência “Nem só de pão vive o homem, mas da palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4,4; Lc 4,4); à tentação do milagre-espetáculo respondeu com um preceito da Lei “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Mt 4,7; Lc 4,12). E à proposta de adoração ao diabo, por mor do poderio sobre as riquezas e todos reinos deste mundo, o Senhor foi perentório na resposta: “Vai-te, Satanás, pois está escrito que só ao Senhor teu Deus tu adorarás e só a Ele prestarás culto” (Mt 4,10; Lc 4,8). E os sinóticos referem a desistência do diabo, a companhia dos animais selvagens e a adoração e serviço dos anjos a Cristo (cf Mt 4,11; Mc 1,12; Lc 4.13).
A luta pela sobrevivência pessoal e comunitária, custe o que custar, nunca exigirá o milagre, mas o trabalho e a distribuição equitativa dos bens disponíveis e a disponibilizar mercê do incremento à produção. A acumulação desmedida de bens com a ultrapassagem de tudo e o espezinhamento de todos, a guerra, a luta desleal pelo poder ou a sua usurpação e abuso, o despotismo, mesmo que iluminado são obra presunçosa e dádiva caprichosa do diabo (“tudo me está entregue e o dou a quem quiser”, vd Lc 4,6). Mais: o diabo, manipulando o uso abusivo do dinheiro, não se contenta com o matar da fome ou o saciar da sede, mas impõe o excesso guloso, a que associa o prazer desordenado ou a míngua, aliada à dieta desregrada somente para cuidado da imagem sensual; e estimula ao usufruto do prazer desregulado inerente à outra componente complementar do crescimento humano – a propagação e sobrevivência da espécie humana. O dinheiro, passando das mãos de Satanás para as de alguns homens, torna-se o patrão explorador do homem pelo homem, fautor da inveja e da intriga.
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Afirma categoricamente o padre Cantalamessa que “o dinheiro é o ‘deus visível’, em oposição ao verdadeiro Deus, que é invisível”; e cria uma religião alternativa anti-Deus, subversora do objeto das virtudes teologais: “fé, esperança e caridade não são mais colocadas em Deus, mas no dinheiro”. Acusando a sinistra inversão dos valores, contrapõe ao teor da Escritura o que pensa o mundo da iniquidade, com a razão que os factos parecem dar-lhe: “Tudo é possível a quem acredita”, diz a Escritura (Mc 9, 23). Ao invés, o mundo apregoa: “Tudo é possível para quem tem dinheiro”. Mas a Escritura avisa que “o apego ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1 Tm 6,10).
E o orador pontifício explica: “Esse é o Moloch de bíblica memória, ao qual foram imolados jovens e crianças (cf. Jer 32, 35), ou o deus Azteca, ao qual era preciso oferecer diariamente um certo número de corações humanos”. E enumera a série de factos que exemplificam o domínio perfumante do dinheiro: o tráfico de drogas que destrói tantas vidas humanas; a exploração da prostituição; o trabalho escravo; o fenómeno viral das máfias; a corrupção política; o fabrico e comercialização de armas; a venda de órgãos humanos, sobretudo os removidos de crianças; o terrorismo grupal e do Estado; a crise financeira que o mundo atravessou e que alguns países ainda estão atravessando; a perceção de salários e pensões de valor astronómico em face dos salários, pensões e situações de miséria de tantos.
“Como todos os ídolos – afirma Cantalamessa – o dinheiro é ‘falso e mentiroso’: promete a segurança” e tira-a; promete a liberdade e destrói-a. Por isso, também hoje é necessário assumir a censura de Jesus ao ricalhaço da parábola que, tendo acumulado muitos bens, se sentia seguro por toda a vida: “Insensato, esta noite a tua alma te será pedida; e o que tens acumulado, de quem será?” (Lc 12, 20). A isto o orador aduz o caso de homens colocados em altos cargos, que, já nem sabendo em que banco ou paraíso fiscal acumular os proventos da corrupção, se encontraram perante a justiça ou na prisão, exatamente quando pensavam como o avarento do Evangelho. E, afinal, acabaram por não beneficiar filhos, família ou o partido, mas por se arruinarem a si próprios e aos demais. É que “o deus dinheiro se encarrega de punir, ele mesmo, os seus adoradores”.
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Entretanto, a traição de Judas prossegue na história; e o traído é sempre Jesus. Judas vendeu o chefe, sem saber que Ele era o Filho de Deus; os seus seguidores, já com a obrigação do esclarecimento e sabendo bem o que fazem, vendem o seu “corpo”, porque os pobres e os “escravos” são membros do Corpo de Cristo. “Tudo aquilo que fizestes a um só destes meus irmãos pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Continua a traição nos casos clamorosos já referidos e noutros bem espantosos como a imposição /aceitação da ditadura em nome da segurança nacional (tantas vezes alimentada abusivamente por campanhas de expansão das devoções da vida cristã, como as aproveitadas campanhas dos padres Matheo e Cruz, em Portugal, e do padre Peyton, na América Latina), da hegemonia étnica, da valia grupal, da superioridade sexual, da preservação da religião e da pretensa solução do caos sociopolítico; a prática da tortura, por vezes, refinada, por motivos políticos, policiais ou de mera vingança, sem arrependimento futuro; o policiamento do pensamento, das opções e da expressão; a xenofobia; a proscrição dos pobres; o descarte dos deficientes, doentes e idosos.
Mas a traição de Judas espelha-se outrossim de forma mais discreta através do Judas que mora dentro de cada um, mesmo dos considerados da elite moral, política e religiosa: é possível trair Jesus também por outros tipos de mercê que não as literais trinta moedas de prata. E Cantalamessa exemplifica: a traição à própria esposa ou ao próprio marido; a traição ao rebanho por parte do ministro de Deus, que, traindo o seu próprio estado de vida, também se apascenta a si mesmo em vez de apascentar as ovelhas; a traição da própria consciência por razões mundanas de cobardia ou de conveniência; e a traição das finalidades, por exemplo, da parte do orador sagrado que, em vez de tentar falar segundo Deus, pretende agradar ao auditório.
Por detrás de todas as formas de traição está naturalmente o deus-dinheiro, mas nem sempre na forma literal e material (Não esqueçamos que o dinheiro hoje é representativo de “poderio” económico sobretudo sob a modalidade de finança!). Se os seus efeitos se veem pelo prestígio quase taumatúrgico, pelo poderio multiforme e pelo deslumbramento espetacular, o tentador tem um tríplice acolitado: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e soberba da vida, também referida esta como orgulho da riqueza (cf 1Jo 2,16).
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Em face do tríplice perfume com que o tentador pretende inebriar a suas presas – perfume que, entrando pelas narinas, faz arregalar os olhos para que vejam o que não devem, como não devem e mais do que devem; desperta o apetite carnal pelo pensamento e pelo desejo, pela palavra e pela ação; e faz a cabeça do ser humano para a luta pelo poder sobre as coisas e sobre as pessoas, fazendo-as servir os seus prazeres, ostentações e interesses – não podemos aspirar ao abandono deste mundo, mas devemos abster-nos de pactuar com o seu espírito. Cristo não rogou ao Pai que nos tirasse do mundo mas que nos livrasse do maligno (cf Jo 17,15).
Por isso, em atitude firme de vigilância, humildade e determinação, o homem comum, enquanto diz “Santificado seja o Teu nome”, vai rogando “Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal”. E certamente que no dia em que O invocar o Senhor o ouvirá.
Ab insidiis diaboli.
Ab ira, et odio, et omni mala voluntate,

Libera nos, Domine!

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