O comentário à informação
A agência Ecclesia dá relevo à
informação do Vaticano de que, na Liturgia em que o Papa Francisco procede à
canonização de João XXIII e João Paulo II, Bento XVI concelebra.
“Esta será a primeira vez que o Papa emérito, que renunciou ao
pontificado em fevereiro de 2013, vai concelebrar uma Missa presidida pelo seu
sucessor, após ter estado pela primeira vez na Basílica de São Pedro, com
Francisco, no Consistório de 22 de fevereiro” – assinala o responsável da
informação na referida agência católica.
Trata-se efetivamente de facto insólito e mesmo inédito. E o
responsável pela Sala de Imprensada Santa Sé revela satisfação pela notícia: “Ficaremos
muito felizes por ter a sua presença”. Mas exprime uma cautela, a meu ver,
desnecessária: “O Papa
emérito Bento XVI aceitou o convite e comunicou ao Papa Francisco que estará
presente na manhã de domingo na celebração e que concelebrará: por isso, será
também concelebrante, o que não quer dizer que vá ao altar”.
E se fosse ao altar? Para concelebrar não precisa de ir ao
altar. Porém, não creio que no altar assustasse o Papa Francisco. Que eu saiba,
apesar de ver padres e bispos em celebrações eucarísticas em hábito talar,
vestidos à civil e, no caso de padres, alguns a fazer de diácono ou de
subdiácono, eles não deixam de participar, em conformidade com a doutrina de
alguns teólogos, segundo a sua própria condição: são sempre padres ou sempre
bispos. É óbvio que a celebração deve mobilizar as condições de validade e as
de licitude, como deve espelhar ordinariamente a responsabilidade
“coinonística” e hierárquica de quem a detém no momento. Sendo assim, não me
parece que Bento XVI, por ter renunciado à permanência no exercício do
ministério petrino, tenha perdido o caráter episcopal nem que alguma vez viesse
a “inobservar” a promessa que em tempo fez de prestar obediência ao seu
sucessor e de o respeitar: “E entre vós, entre o Colégio Cardinalício, está também o
futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha reverência e obediência
incondicionadas” – palavras aos cardeais em 28 de fevereiro de 2013.
Por outro lado, Francisco declarou o ano passado que temos de
nos habituar ao pontífice emérito, instituição de que não tínhamos experiência,
como não a tínhamos em relação ao bispo emérito antes do Concílio Vaticano II e
já nos habituámos a lidar com a instituição do emérito.
De facto, já a maior parte das dioceses passou pela
experiência de respeitar o seu bispo diocesano e de lhe prestar obediência e,
ao mesmo tempo, continuar a ver e a venerar o seu bispo emérito, que antes até
era denominado de bispo resignatário. Muitos deles continuaram a ser ouvidos e
lidos; alguns continuaram sabiamente a exercer do lado da vertente da
solicitude por todas as Igrejas e até a assumir encargos de relevância
eclesial; e outros chegam a substituir o ordinário diocesano em seus
impedimentos de saúde e mesmo de agenda. É certo que, aliás como em tudo na
vida, alguns eméritos, voluntária ou involuntariamente, criaram problemas aos
seus sucessores imediatos, tal como alguns bispos diocesanos os criaram aos
coadjutores e auxiliares. No entanto, não se pode ter a nuvem por Juno ou
confundir a árvore com a floresta.
Pode, entretanto, entender-se que o sumo pontificado
apresenta um outro melindre, quer pela peculiar visibilidade do ministério
petrino, quer pela falta de experiência em torno da “emeritidade” papal.
Todavia, duas coisas favorecem o afastamento do espectro do receio: por um
lado, não é crível que Bento renuncie à discrição a que se remeteu
voluntariamente ou ao juramento que espontaneamente pronunciou por antecipação;
por outro, Francisco, mercê do seu carisma profético e do seu estilo de
proximidade às pessoas, ganhou irreversivelmente as boas graças da opinião
pública. O grupo dos descontentes, apesar de significativo e ativo, é cada vez
menor e mais isolado. Pena é que o Papa seja mais admirado que ouvido e mais
ouvido que seguido.
Há outrossim um duplo dado adicional a acrescentar. Se Bento
XVI não tinha forças físicas e do espírito para continuar a levar por diante o
múnus do sucessor de Pedro, certamente que as terá redobradas para resistir a
uma eventual tentação de se imiscuir nos negócios eclesiásticos, o que não quer
dizer que não desejem alguns solicitar-lho. Por seu turno, Francisco não é nem
falho de Teologia profunda nem de uma sadia humanidade nem de suficiente
prudência para ter a certeza de que pisa terreno seguro ao formular o convite
ao predecessor emérito para assomar ao público em momentos significativos.
A importância do momento da dupla canonização como significativo
E o momento celebrado em 27 de abril é fortemente
significativo. É a canonização de dois novos santos que exerceram o sumo
pontificado em uma única celebração: no segundo domingo da Páscoa, o da oitava
pascal, também chamado de Pascoela, ou ainda da divina misericórdia, segundo o
desejo e determinação do segundo deles: João Paulo II. São dois papas que
passam a ficar incluídos na lista (ou cânone) dos bem-aventurados aos quais a
Igreja, depois de lhes reconhecer virtudes heroicas e o poder de interceder
junto de Deus para a realização de milagres, tributa culto universal e
apresenta como modelo em aspetos fundamentais da vida de relação com Deus e com
o próximo.
Depois, João XXIII é, sobretudo, o grande papa que,
independentemente de a ideia de um novo concílio ser ou não inteiramente sua
(há quem diga que já Pio XI a teria equacionado e Pio XII teria encarregado uma
comissão cardinalícia que terá concluído ou não ser necessário ou não estarem
reunidas as condições), tomou audazmente a decisão solitária de anunciar o
Concílio Vaticano II, de o convocar, de o inaugurar e de presidir sua à
primeira sessão, por si e/ou por delegados seus. Por outro lado, assumiu oficialmente,
por parte da Igreja, uma reiterada e renovada formulação dos direitos humanos
(Encíclica Pacem in Terris); abordou
em novos termos a questão social (Encíclica Mater
et Magistra); impulsionou o ecumenismo, a que deu continuado vigor; propôs
uma leitura profunda dos sinais dos tempos, a partir das mudanças profundas e
universais que o mundo apresentava em que se devia ver o dedo de Deus; anteviu
a necessidade de elaboração de novo código de direito canónico para a Igreja
Latina (para o que constituiu a respetiva comissão) e novo código de direito
canónico para as Igrejas Orientais; e marcou como vertente dominante a
componente pastoral na reflexão da Igreja sobre sim mesma e na sua relação com
o mundo. Além disso, cuidou da própria diocese de que era bispo: convocou o Sínodo Romano
e visitou muitas paróquias da Diocese de Roma, sobretudo as dos bairros mais
novos. E, sobretudo, com a sua humildade e o seu
sorriso, introduziu um novo estilo na condução da Igreja.
E, se incumbiu a Paulo VI, promover a prossecução dos
trabalhos conciliares, promulgar os seus documentos (4 constituições, 9
decretos e 3 declarações), sistematizar e redobrar as bases do diálogo entre os
homens e da Igreja com o mundo (especificamente com os outros cristãos, os
membros de outras religiões e os não crentes) e executar as opções setoriais do
concílio, a João Paulo II coube a concretização de importantes opções do
Concílio, à luz dos fenómenos pós-conciliares quer eclesiais quer do quadro da
situação mundial. Tal é o caso do novo Código de Direito Canónico, do Catecismo
da Igreja Católica, do grande número de encíclicas e exortações apostólicas pós-sinodais, as Jornadas Mundiais da Juventude e as viagens por quase todo o mundo
(Foi um verdadeiro andarilho do Reino de Deus e da sua terna jovialidade). O
papa polaco foi ainda o protagonista da consagração mariana da Rússia, da queda
do muro de Berlim e da libertação dos países do Leste. Contudo, nem tudo foi
exemplar: um certo retrocesso na colegialidade; alguma intensificação do
centralismo; espaçamento das assembleias sinodais ordinárias; regressão nos
aspetos doutrinais no âmbito da fé e costumes, levando a confundir dados
disciplinares com dados dogmáticos (vg pretenso encerramento da ordenação
sacerdotal de mulheres e afunilamento da discussão sobre o celibato eclesiástico);
excesso de vigilância sobre a investigação teológica e seu ensino, com
abjuração da teologia da libertação; e rejeição da inserção política de
notáveis membros da hierarquia da Igreja, a coberto da missão não política da
Igreja.
Relação dos dois pontífices com Portugal
Ambos os novos santos pontífices guardam uma especial relação
com Portugal. Ângelo Giuseppe Roncalli, cujo pontificado foi de curta duração, para
além de um alegado muito remoto parentesco com famílias lusitanas, foi, passados
mais de 600 anos, o primeiro papa a adotar o nome do único papa português, João
XXI. E, apesar das pressões e do receio de alguma parte do clero da respetiva
diocese, manteve-se firme na decisão de não prover a Igreja do Porto de novo
titular, por força do exílio do seu bispo Dom António Ferreira Gomes, imposto
pelo governo do Estado Novo. Em relação a Fátima, é de recordar que, enquanto
cardeal e Patriarca de Veneza veio presidir à peregrinação internacional
aniversária de 13 de maio de 1956.
Karol Wojtyla, por sua vez, estabeleceu uma fortíssima
relação com Fátima, a partir do atentado de que foi alvo na praça de S. Pedro,
a 13 de maio de 1981. Desde então, o agradecimento à ‘Senhora da Mensagem’ seria
contínuo e periodicamente manifestado: esteve em Fátima por três vezes. Na
primeira delas (13 de maio de 1982), apresentou-se “com o terço na mão, o
nome de Maria nos lábios e o cântico da misericórdia de Deus no coração: Ele,
também ‘a mim fez grandes coisas... A sua misericórdia se estende de geração em
geração’ (Lc 1,49-50)”.
Não muitos serão os que
se recordam de que em 2 de março de 1983 esteve em Lisboa, no quadro da escala
técnica prevista durante a viagem Apostólica à
América Central, e fez um grande discurso à multidão apinhada no aeroporto
internacional. Dessa alocução, em que revela o que pretendeu dizer aos
portugueses no ano anterior, destacam-se os segmentos seguintes:
Por detrás do entusiasmo jovem, da
cordialidade adulta e da estima e respeito geral, com que fui recebido então,
procurei ver essa fraternidade no rosto de cada um dos portugueses, na comum
“semelhança” do Criador de todos nós e no comum chamamento à Salvação; e quis
dizer-lhes, primeiro que tudo, isso mesmo: todos somos irmãos; temos de nos
amar fraternamente, vendo o nosso “próximo” em cada homem, sobretudo quando
este sofre ou está ameaçado no próprio núcleo da sua existência e da sua
dignidade; a isto nos impele o amor de Deus que, em Jesus Cristo, se nos
revelou como Pai, “rico em misericórdia”. […] De novo em veste de peregrino,
são idênticos os pensamentos que me guiam; e a boca fala da abundância do que
vai no coração: o amor de Deus, rico em misericórdia; o poder da Redenção de
Cristo; Nossa Senhora, Mãe da nossa confiança; e o amor e a paz entre os
homens.
E, a
pedido do próprio João Paulo II, foi levada ao Vaticano a Imagem de Nossa
Senhora que se venera na Capelinha das Aparições do Santuário de Fátima, em
frente da qual, na Praça de S. Pedro, o Papa proferiu em 25 de março de 1984
novo Ato de Consagração, em tudo semelhante ao de 13 de maio de 1982, em
Fátima.
No ato de entrega
que pronunciou em Fátima aos pés da imagem da Virgem, em 13 de maio de 1991, rezou:
Sim, continuai
a mostrar-Vos Mãe para todos, porque
o mundo tem necessidade de Vós. As
novas situações dos povos e da Igreja são ainda precárias e instáveis. Existe o perigo de substituir o
marxismo por uma outra forma de ateísmo, que
adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã.
E em 13 de maio de
2000, veio a Fátima proceder à Beatificação de dois dos pastorinhos a quem a
virgem aparecera – Jacinta e Francisco e mandou revelar ao povo a terceira
parte do “segredo” que fora revelado aos videntes.
Concluindo
Quanto
aos altos dignitários eclesiais vivos, é natural que Francisco, o “Sumo
Sacerdote” em atividade tenha convidado o “Sumo Sacerdote” jubilado, Bento XVI,
como é natural que este tenha correspondido ao convite. Qualquer quer bispo
diocesano convida o seu antecessor emérito para as solenidades significativas, convite
a que ele responde positivamente ou negativamente conforme o seu sentido de
liberdade e de cordialidade.
Bergoglio,
estudante no tempo de João XXIII, foi efeito bispo e feito cardeal por João
Paulo II e participou no conclave que elegeu Bento XVI; Ratzinger, perito no
concílio convocado por João XXIII, foi professor de Teologia Dogmática durante
o seu pontificado e foi chamado para a prefeitura da Congregação da Doutrina da
Fé por João Paulo II, a quem sucedeu na Cátedra de Pedro.
Quanto
aos novos santos, com traços que os fazem iguais e diferentes (num deles não se
veem sombras; no outro, o mais recente, talvez sim), são no dizer do Bispo de
Leiria-Fátima, “dois Papas que marcaram os séculos XX e XXI, com a sua
santidade vivida e manifestada no exercício da sua missão, com estilos e
personalidades diversas, mas unidos pela paixão ao homem e a Cristo”. E
assegura que “não há um molde para fazer santos, cada um é na sua situação
concreta, no tempo e nos desafios que a Igreja e o mundo colocam”.
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