sábado, 26 de abril de 2014

Bento XVI concelebra com Francisco na canonização dos dois Papas

O comentário à informação
A agência Ecclesia dá relevo à informação do Vaticano de que, na Liturgia em que o Papa Francisco procede à canonização de João XXIII e João Paulo II, Bento XVI concelebra.
Esta será a primeira vez que o Papa emérito, que renunciou ao pontificado em fevereiro de 2013, vai concelebrar uma Missa presidida pelo seu sucessor, após ter estado pela primeira vez na Basílica de São Pedro, com Francisco, no Consistório de 22 de fevereiro” – assinala o responsável da informação na referida agência católica.
Trata-se efetivamente de facto insólito e mesmo inédito. E o responsável pela Sala de Imprensada Santa Sé revela satisfação pela notícia: “Ficaremos muito felizes por ter a sua presença”. Mas exprime uma cautela, a meu ver, desnecessária: “O Papa emérito Bento XVI aceitou o convite e comunicou ao Papa Francisco que estará presente na manhã de domingo na celebração e que concelebrará: por isso, será também concelebrante, o que não quer dizer que vá ao altar”.
E se fosse ao altar? Para concelebrar não precisa de ir ao altar. Porém, não creio que no altar assustasse o Papa Francisco. Que eu saiba, apesar de ver padres e bispos em celebrações eucarísticas em hábito talar, vestidos à civil e, no caso de padres, alguns a fazer de diácono ou de subdiácono, eles não deixam de participar, em conformidade com a doutrina de alguns teólogos, segundo a sua própria condição: são sempre padres ou sempre bispos. É óbvio que a celebração deve mobilizar as condições de validade e as de licitude, como deve espelhar ordinariamente a responsabilidade “coinonística” e hierárquica de quem a detém no momento. Sendo assim, não me parece que Bento XVI, por ter renunciado à permanência no exercício do ministério petrino, tenha perdido o caráter episcopal nem que alguma vez viesse a “inobservar” a promessa que em tempo fez de prestar obediência ao seu sucessor e de o respeitar: “E entre vós, entre o Colégio Cardinalício, está também o futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha reverência e obediência incondicionadas” – palavras aos cardeais em 28 de fevereiro de 2013. 
Por outro lado, Francisco declarou o ano passado que temos de nos habituar ao pontífice emérito, instituição de que não tínhamos experiência, como não a tínhamos em relação ao bispo emérito antes do Concílio Vaticano II e já nos habituámos a lidar com a instituição do emérito.
De facto, já a maior parte das dioceses passou pela experiência de respeitar o seu bispo diocesano e de lhe prestar obediência e, ao mesmo tempo, continuar a ver e a venerar o seu bispo emérito, que antes até era denominado de bispo resignatário. Muitos deles continuaram a ser ouvidos e lidos; alguns continuaram sabiamente a exercer do lado da vertente da solicitude por todas as Igrejas e até a assumir encargos de relevância eclesial; e outros chegam a substituir o ordinário diocesano em seus impedimentos de saúde e mesmo de agenda. É certo que, aliás como em tudo na vida, alguns eméritos, voluntária ou involuntariamente, criaram problemas aos seus sucessores imediatos, tal como alguns bispos diocesanos os criaram aos coadjutores e auxiliares. No entanto, não se pode ter a nuvem por Juno ou confundir a árvore com a floresta.
Pode, entretanto, entender-se que o sumo pontificado apresenta um outro melindre, quer pela peculiar visibilidade do ministério petrino, quer pela falta de experiência em torno da “emeritidade” papal. Todavia, duas coisas favorecem o afastamento do espectro do receio: por um lado, não é crível que Bento renuncie à discrição a que se remeteu voluntariamente ou ao juramento que espontaneamente pronunciou por antecipação; por outro, Francisco, mercê do seu carisma profético e do seu estilo de proximidade às pessoas, ganhou irreversivelmente as boas graças da opinião pública. O grupo dos descontentes, apesar de significativo e ativo, é cada vez menor e mais isolado. Pena é que o Papa seja mais admirado que ouvido e mais ouvido que seguido.
Há outrossim um duplo dado adicional a acrescentar. Se Bento XVI não tinha forças físicas e do espírito para continuar a levar por diante o múnus do sucessor de Pedro, certamente que as terá redobradas para resistir a uma eventual tentação de se imiscuir nos negócios eclesiásticos, o que não quer dizer que não desejem alguns solicitar-lho. Por seu turno, Francisco não é nem falho de Teologia profunda nem de uma sadia humanidade nem de suficiente prudência para ter a certeza de que pisa terreno seguro ao formular o convite ao predecessor emérito para assomar ao público em momentos significativos.

A importância do momento da dupla canonização como significativo
E o momento celebrado em 27 de abril é fortemente significativo. É a canonização de dois novos santos que exerceram o sumo pontificado em uma única celebração: no segundo domingo da Páscoa, o da oitava pascal, também chamado de Pascoela, ou ainda da divina misericórdia, segundo o desejo e determinação do segundo deles: João Paulo II. São dois papas que passam a ficar incluídos na lista (ou cânone) dos bem-aventurados aos quais a Igreja, depois de lhes reconhecer virtudes heroicas e o poder de interceder junto de Deus para a realização de milagres, tributa culto universal e apresenta como modelo em aspetos fundamentais da vida de relação com Deus e com o próximo.
Depois, João XXIII é, sobretudo, o grande papa que, independentemente de a ideia de um novo concílio ser ou não inteiramente sua (há quem diga que já Pio XI a teria equacionado e Pio XII teria encarregado uma comissão cardinalícia que terá concluído ou não ser necessário ou não estarem reunidas as condições), tomou audazmente a decisão solitária de anunciar o Concílio Vaticano II, de o convocar, de o inaugurar e de presidir sua à primeira sessão, por si e/ou por delegados seus. Por outro lado, assumiu oficialmente, por parte da Igreja, uma reiterada e renovada formulação dos direitos humanos (Encíclica Pacem in Terris); abordou em novos termos a questão social (Encíclica Mater et Magistra); impulsionou o ecumenismo, a que deu continuado vigor; propôs uma leitura profunda dos sinais dos tempos, a partir das mudanças profundas e universais que o mundo apresentava em que se devia ver o dedo de Deus; anteviu a necessidade de elaboração de novo código de direito canónico para a Igreja Latina (para o que constituiu a respetiva comissão) e novo código de direito canónico para as Igrejas Orientais; e marcou como vertente dominante a componente pastoral na reflexão da Igreja sobre sim mesma e na sua relação com o mundo. Além disso, cuidou da própria diocese de que era bispo: convocou o Sínodo Romano e visitou muitas paróquias da Diocese de Roma, sobretudo as dos bairros mais novos. E, sobretudo, com a sua humildade e o seu sorriso, introduziu um novo estilo na condução da Igreja.
E, se incumbiu a Paulo VI, promover a prossecução dos trabalhos conciliares, promulgar os seus documentos (4 constituições, 9 decretos e 3 declarações), sistematizar e redobrar as bases do diálogo entre os homens e da Igreja com o mundo (especificamente com os outros cristãos, os membros de outras religiões e os não crentes) e executar as opções setoriais do concílio, a João Paulo II coube a concretização de importantes opções do Concílio, à luz dos fenómenos pós-conciliares quer eclesiais quer do quadro da situação mundial. Tal é o caso do novo Código de Direito Canónico, do Catecismo da Igreja Católica, do grande número de encíclicas e exortações apostólicas pós-sinodais, as Jornadas Mundiais da Juventude e as viagens por quase todo o mundo (Foi um verdadeiro andarilho do Reino de Deus e da sua terna jovialidade). O papa polaco foi ainda o protagonista da consagração mariana da Rússia, da queda do muro de Berlim e da libertação dos países do Leste. Contudo, nem tudo foi exemplar: um certo retrocesso na colegialidade; alguma intensificação do centralismo; espaçamento das assembleias sinodais ordinárias; regressão nos aspetos doutrinais no âmbito da fé e costumes, levando a confundir dados disciplinares com dados dogmáticos (vg pretenso encerramento da ordenação sacerdotal de mulheres e afunilamento da discussão sobre o celibato eclesiástico); excesso de vigilância sobre a investigação teológica e seu ensino, com abjuração da teologia da libertação; e rejeição da inserção política de notáveis membros da hierarquia da Igreja, a coberto da missão não política da Igreja.

Relação dos dois pontífices com Portugal
Ambos os novos santos pontífices guardam uma especial relação com Portugal. Ângelo Giuseppe Roncalli, cujo pontificado foi de curta duração, para além de um alegado muito remoto parentesco com famílias lusitanas, foi, passados mais de 600 anos, o primeiro papa a adotar o nome do único papa português, João XXI. E, apesar das pressões e do receio de alguma parte do clero da respetiva diocese, manteve-se firme na decisão de não prover a Igreja do Porto de novo titular, por força do exílio do seu bispo Dom António Ferreira Gomes, imposto pelo governo do Estado Novo. Em relação a Fátima, é de recordar que, enquanto cardeal e Patriarca de Veneza veio presidir à peregrinação internacional aniversária de 13 de maio de 1956.
Karol Wojtyla, por sua vez, estabeleceu uma fortíssima relação com Fátima, a partir do atentado de que foi alvo na praça de S. Pedro, a 13 de maio de 1981. Desde então, o agradecimento à ‘Senhora da Mensagem’ seria contínuo e periodicamente manifestado: esteve em Fátima por três vezes. Na primeira delas (13 de maio de 1982), apresentou-se “com o terço na mão, o nome de Maria nos lábios e o cântico da misericórdia de Deus no coração: Ele, também ‘a mim fez grandes coisas... A sua misericórdia se estende de geração em geração’ (Lc 1,49-50)”.
Não muitos serão os que se recordam de que em 2 de março de 1983 esteve em Lisboa, no quadro da escala técnica prevista durante a viagem Apostólica à América Central, e fez um grande discurso à multidão apinhada no aeroporto internacional. Dessa alocução, em que revela o que pretendeu dizer aos portugueses no ano anterior, destacam-se os segmentos seguintes:
Por detrás do entusiasmo jovem, da cordialidade adulta e da estima e respeito geral, com que fui recebido então, procurei ver essa fraternidade no rosto de cada um dos portugueses, na comum “semelhança” do Criador de todos nós e no comum chamamento à Salvação; e quis dizer-lhes, primeiro que tudo, isso mesmo: todos somos irmãos; temos de nos amar fraternamente, vendo o nosso “próximo” em cada homem, sobretudo quando este sofre ou está ameaçado no próprio núcleo da sua existência e da sua dignidade; a isto nos impele o amor de Deus que, em Jesus Cristo, se nos revelou como Pai, “rico em misericórdia”. […] De novo em veste de peregrino, são idênticos os pensamentos que me guiam; e a boca fala da abundância do que vai no coração: o amor de Deus, rico em misericórdia; o poder da Redenção de Cristo; Nossa Senhora, Mãe da nossa confiança; e o amor e a paz entre os homens.
E, a pedido do próprio João Paulo II, foi levada ao Vaticano a Imagem de Nossa Senhora que se venera na Capelinha das Aparições do Santuário de Fátima, em frente da qual, na Praça de S. Pedro, o Papa proferiu em 25 de março de 1984 novo Ato de Consagração, em tudo semelhante ao de 13 de maio de 1982, em Fátima.
No ato de entrega que pronunciou em Fátima aos pés da imagem da Virgem, em 13 de maio de 1991, rezou:
Sim, continuai a mostrar-Vos Mãe para todos, porque o mundo tem necessidade de Vós. As novas situações dos povos e da Igreja são ainda precárias e instáveis. Existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã. 
E em 13 de maio de 2000, veio a Fátima proceder à Beatificação de dois dos pastorinhos a quem a virgem aparecera – Jacinta e Francisco e mandou revelar ao povo a terceira parte do “segredo” que fora revelado aos videntes.

Concluindo
Quanto aos altos dignitários eclesiais vivos, é natural que Francisco, o “Sumo Sacerdote” em atividade tenha convidado o “Sumo Sacerdote” jubilado, Bento XVI, como é natural que este tenha correspondido ao convite. Qualquer quer bispo diocesano convida o seu antecessor emérito para as solenidades significativas, convite a que ele responde positivamente ou negativamente conforme o seu sentido de liberdade e de cordialidade.
Bergoglio, estudante no tempo de João XXIII, foi efeito bispo e feito cardeal por João Paulo II e participou no conclave que elegeu Bento XVI; Ratzinger, perito no concílio convocado por João XXIII, foi professor de Teologia Dogmática durante o seu pontificado e foi chamado para a prefeitura da Congregação da Doutrina da Fé por João Paulo II, a quem sucedeu na Cátedra de Pedro.

Quanto aos novos santos, com traços que os fazem iguais e diferentes (num deles não se veem sombras; no outro, o mais recente, talvez sim), são no dizer do Bispo de Leiria-Fátima, “dois Papas que marcaram os séculos XX e XXI, com a sua santidade vivida e manifestada no exercício da sua missão, com estilos e personalidades diversas, mas unidos pela paixão ao homem e a Cristo”. E assegura que “não há um molde para fazer santos, cada um é na sua situação concreta, no tempo e nos desafios que a Igreja e o mundo colocam”.

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