Num determinado sábado de um certo
mês do respetivo ano da década de noventa do século passado, os trabalhadores
da Direção Geral das Contribuições e Impostos (parece-me que era essa a sua
denominação ao tempo) de um dos nossos distritos organizaram a sua
festa-convívio anual na sede do concelho de um daqueles trabalhadores em
funções de chefia.
Foram recebidos na Câmara Municipal
por deferência do Presidente, participaram nos jogos tradicionais que
organizaram com o conveniente beberete e, por volta do meio-dia, antes do
almoço de confraternização ao ar livre, à beira rio, participaram na celebração
eucarística na igreja de um santuário mariano de um das freguesias limítrofes
da sede do concelho, alcantilado lá no alto do monte.
Presidiu à Eucaristia o respetivo
pároco e concelebrou o arcipreste, figura eclesiástica extremamente querida lá
no burgo. O pároco, presidente da celebração, à homilia, pronunciou palavras
como as que, a seguir, se enunciam com transcrição aproximada, inspirado na
circunstância e nos textos da Liturgia da Palavra daquele dia:
Estais de parabéns por terdes
integrado a celebração eucarística na agenda da vossa festa-convívio e por
terdes escolhido este santuário, dedicado à Mãe de Deus, situado no cimo deste
monte, donde se divisa um tão belo panorama. Porém, quero dizer-vos, além
disso, que sois pessoas importantes. E sois pessoas importantes, porque o
Evangelho fala de vós e Jesus escolheu um dos vossos para seu apóstolo. Sim,
Jesus escolheu para apóstolo o cobrador de impostos Levi (Mc 2,13-17), que
passou a ser designado por Mateus (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,15). E sois importantes,
porque vale a pena fazer-vos recomendações, pois, João Batista dizia aos cobradores
de impostos ou publicanos, considerados como pecadores públicos pelo povo, que
costumavam cobrar além do que era devido para desviar dinheiro público: “Não
roubeis, nada exijais além do que vos foi estabelecido” (Lc 3,13). E Zaqueu,
outro cobrador de impostos, prometeu: “Senhor, vou dar metade dos meus bens aos
pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes
mais” (Lc 19,8). Depois, o fariseu foi ao Templo para rezar e não ficou justificado,
porque a sua oração foi de vanglória, arrogância e insulto aos outros,
inclusive a um publicano que ali estava também; o publicano, que também fora
rezar, ficou justificado porque humildemente pronunciou estas simples palavras:
“Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador” (cf Lc 18,9-14). Como vedes, vale
a pena fazer-vos recomendações, que dão resultado e, pelo menos, um dos vossos foi
apóstolo e evangelista!
No fim da celebração, o diretor e
dois funcionários foram à sacristia cumprimentar o pároco e agradecer a
homilia. No entanto, um deles fez o seguinte reparo:
− O senhor padre não perdeu a
oportunidade de nos chamar ladrões a todos!
Ao que o interpelado retorquiu em
gracejo:
− E Não são?!
***
Pondo de parte os aspetos anedóticos
do episódio, é bom que nos fixemos no essencial. Efetivamente, é de fazer recomendações
a todos, para que possam mudar de vida e é desejável que as recomendações,
formuladas com a justa convicção apostólica, surta o efeito esperado. E é ponto
assente que Deus escolhe quem entende e quem quer para a sua obra. É importante
que se conclua que a obra de transformação do mundo, nomeadamente a das
estruturas de salvação, vale mais pela força divina que pela força do homem. E Jesus,
na lógica divina, escolheu para apóstolos entre os pescadores, os zelotes (políticos
anarcas), os cobradores de impostos, os funcionários administrativos ou os trabalhadores
indiferenciados. Mais tarde, Paulo de Tarso, que era fariseu, formado na lei
judaica, mais propriamente aos pés de Gamaliel, tinha a profissão de construtor
de tendas e de outros objetos de
couro (cf Act 18,3).
Por outro lado, o que hodiernamente se
passa dá para refletir. Também hoje Cristo escolhe quem muito bem entende para
a continuação da sua obra de dilatação do Reino e consumação da obra salvífica.
A cada passo, se ouve falar de juristas, engenheiros, médicos, administradores,
enfermeiros, lavradores, comerciantes, pensadores, políticos, militares e
tantos outros, que foram chamados ao sacerdócio, à vida religiosa e à vida
missionária ou à forte e comprometida atividade laical. Santo Ambrósio, que foi
Bispo de Milão, era governador (político). Agostinho de Tagaste, que foi Bispo de
Hipona, era professor de retórica e pecador tido por incorrigível. Pedro
Hispano ou Pedro Julião, que foi Papa, era médico, filósofo, professor e
matemático português. E Georgio Mario Bergoglio, o Papa atual, era técnico químico
e terá namorado e Bento XVI desertou das fileiras hitlerianas. Os critérios de chamamento
da parte de Deus são insondáveis.
Não sei se a autoridade eclesiástica
tem estado sempre com atenção aos sinais de vocação, quando eles surgem de
forma diferente dos cânones tidos como normais. Não posso esquecer a
atrapalhação de Ananias quando teve a visão que o solicitava para ministrar o
Batismo a Paulo de Tarso: “Senhor, tenho ouvido muita gente falar desse homem e
a contar todo o mal que ele tem feito aos teus santos, em Jerusalém. E agora
está aqui com plenos poderes dos sumos sacerdotes, para prender todos quantos
invocam o teu nome” (Act 9,13-14). Foi preciso o Senhor responder: “Vai, pois
esse homem é instrumento da minha escolha, para levar o meu nome perante os
pagãos, os reis e os filhos de Israel” (Act 9,15). Mas Ananias ouviu, seguiu
docilmente a voz da visão e foi executar o que o Senhor lhe mandou (cf Act
9,17-18).
Apesar da fé, tenho que expressar um
dos temores sobre o que pode acontecer nos dias do nosso mundo atual: Será que o
Senhor vai chamar para a vida de perfeição, num sacerdócio, vida religiosa e
missionária ou para o laicado ativo, tantos dos “cobradores de impostos” hoje atuantes
na nossa sociedade, ou melhor, os decisores da cobrança de impostos impiedosa e
imoral? Ou chamará os exploradores dos pobres, dos criadores da miséria, dos
corifeus e sequazes de um capitalismo sem rosto que mata a vida e a dignidade
da pessoa humana? Será que esses ouvirão a voz de Deus a tempo e horas,
escutá-la-ão e segui-la-ão? Estarão dispostos à postura de humildade orante do
publicano apresentado pelo evangelista Lucas (cf Lc 18,9-14)? Estarão dispostos
a mudar de vida como Mateus, “deixou o telónio e seguiu-o” (cf Mt 9,9)? Estarão
disponíveis, de alma e coração, a retratarem-se como Zaqueu: dar metade dos
bens aos pobres e restituir, pelo quádruplo, tudo o que foi objeto de
comportamento fraudulento (cf Lc 19,8)? E, em atitudes de justiça necessárias
no século XXI, estarão dispostos a desmantelar os esquemas de exploração que
criaram ou ajudaram a criar, já que não podem restituir a vida às vítimas de
seus esquemas indignificantes?
Sendo a resposta positiva, tanto quanto
humanamente é possível, que sejam bem-vindos, pois, também estes são filhos de
Abraão (cf Lc 19,9).
É São Paulo quem nos elucida:
Porque a loucura de Deus é mais sábia
do que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Porque,
vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne,
nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados.
Mas Deus escolheu o que há de louco
neste mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu o que há de fraco neste
mundo para confundir o que é forte
E Deus escolheu as coisas vis deste
mundo e as desprezíveis; e escolheu os que nada são para reduzir a nada aqueles
que são alguma coisa.
Assim, ninguém pode vangloriar-se diante
dele. Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus
sabedoria e justiça, santificação, e redenção, a fim de que, como está escrito:
Aquele que se gloria glorie-se no Senhor.
(1Cor 1,25-31).
Há, ainda, um outro facto hipotético
que merece reflexão. Que saibamos, Judas Iscariotes não era ladrão nem avarento
antes de entrar no discipulado de Cristo. Ter-se-á tornado tal ao lidar com a
bolsa: “Judas Iscariotes era um ladrão e, como tinha a bolsa, tirava o que ali
se lançava” (Jo 12,6). Mas, hipocritamente, queria que se vendesse, em favor dos
pobres, o perfume de espicanardo de alto preço que Maria utilizara para ungir os
pés de Cristo (cf Jo 12,1-10)!
Ora, também hoje, como em outros tempos
da História dos dois milénios recentes, alguns dos “escolhidos”, alguns dos
quais antes da sua entrada no discipulado não o eram, tornaram-se Judas
Iscariotes pela avareza, pela exploração, pela espada, pela luxúria, pela
contradição da verdade conhecida como tal, pela desesperação de salvação (Judas
também se enforcou…), pela soberba, pela espada, pela inveja, pela preguiça,
pelo esbanjamento, pela gestão danosa dos bens próprios e dos outros, pela
busca e manutenção do poder a todo o custo, pela apropriação dos generosos
contributos de outros para a erradicação da pobreza ou das doenças ou das
calamidades públicas, pela traição, pela negação do Mestre, pela chacota, pelo
alijamento de responsabilidades próprias, pela indecisão quando é urgente
decidir, pelo desprezo pela vida alheia, pelo desdém pelos valores axiológicos.
Será que tu ou eu nos enquadramos
desgraçadamente nalguma destas situações?
Séneca recomendava o exame de consciência.
O papa Francisco chamou já a atenção para importância do exame de consciência individual ao fim
do dia, para que os crentes possam tomar consciência da presença de Deus no seu
quotidiano. E, no passado Domingo de Ramos, a sua homilia
constitui um novo formulário de exame de consciência pessoal à luz das personalidades
que intervieram na Paixão do Senhor e das situações criadas em torno dela ou
dela resultantes.
É de seguir o desafio, não é?!
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