segunda-feira, 14 de abril de 2014

Será que…?

Num determinado sábado de um certo mês do respetivo ano da década de noventa do século passado, os trabalhadores da Direção Geral das Contribuições e Impostos (parece-me que era essa a sua denominação ao tempo) de um dos nossos distritos organizaram a sua festa-convívio anual na sede do concelho de um daqueles trabalhadores em funções de chefia.
Foram recebidos na Câmara Municipal por deferência do Presidente, participaram nos jogos tradicionais que organizaram com o conveniente beberete e, por volta do meio-dia, antes do almoço de confraternização ao ar livre, à beira rio, participaram na celebração eucarística na igreja de um santuário mariano de um das freguesias limítrofes da sede do concelho, alcantilado lá no alto do monte.
Presidiu à Eucaristia o respetivo pároco e concelebrou o arcipreste, figura eclesiástica extremamente querida lá no burgo. O pároco, presidente da celebração, à homilia, pronunciou palavras como as que, a seguir, se enunciam com transcrição aproximada, inspirado na circunstância e nos textos da Liturgia da Palavra daquele dia:
Estais de parabéns por terdes integrado a celebração eucarística na agenda da vossa festa-convívio e por terdes escolhido este santuário, dedicado à Mãe de Deus, situado no cimo deste monte, donde se divisa um tão belo panorama. Porém, quero dizer-vos, além disso, que sois pessoas importantes. E sois pessoas importantes, porque o Evangelho fala de vós e Jesus escolheu um dos vossos para seu apóstolo. Sim, Jesus escolheu para apóstolo o cobrador de impostos Levi (Mc 2,13-17), que passou a ser designado por Mateus (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,15). E sois importantes, porque vale a pena fazer-vos recomendações, pois, João Batista dizia aos cobradores de impostos ou publicanos, considerados como pecadores públicos pelo povo, que costumavam cobrar além do que era devido para desviar dinheiro público: “Não roubeis, nada exijais além do que vos foi estabelecido” (Lc 3,13). E Zaqueu, outro cobrador de impostos, prometeu: “Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais” (Lc 19,8). Depois, o fariseu foi ao Templo para rezar e não ficou justificado, porque a sua oração foi de vanglória, arrogância e insulto aos outros, inclusive a um publicano que ali estava também; o publicano, que também fora rezar, ficou justificado porque humildemente pronunciou estas simples palavras: “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador” (cf Lc 18,9-14). Como vedes, vale a pena fazer-vos recomendações, que dão resultado e, pelo menos, um dos vossos foi apóstolo e evangelista!
No fim da celebração, o diretor e dois funcionários foram à sacristia cumprimentar o pároco e agradecer a homilia. No entanto, um deles fez o seguinte reparo:
− O senhor padre não perdeu a oportunidade de nos chamar ladrões a todos!
Ao que o interpelado retorquiu em gracejo:
− E Não são?!
***
Pondo de parte os aspetos anedóticos do episódio, é bom que nos fixemos no essencial. Efetivamente, é de fazer recomendações a todos, para que possam mudar de vida e é desejável que as recomendações, formuladas com a justa convicção apostólica, surta o efeito esperado. E é ponto assente que Deus escolhe quem entende e quem quer para a sua obra. É importante que se conclua que a obra de transformação do mundo, nomeadamente a das estruturas de salvação, vale mais pela força divina que pela força do homem. E Jesus, na lógica divina, escolheu para apóstolos entre os pescadores, os zelotes (políticos anarcas), os cobradores de impostos, os funcionários administrativos ou os trabalhadores indiferenciados. Mais tarde, Paulo de Tarso, que era fariseu, formado na lei judaica, mais propriamente aos pés de Gamaliel, tinha a profissão de construtor de tendas e de outros objetos de couro (cf Act 18,3).
Por outro lado, o que hodiernamente se passa dá para refletir. Também hoje Cristo escolhe quem muito bem entende para a continuação da sua obra de dilatação do Reino e consumação da obra salvífica. A cada passo, se ouve falar de juristas, engenheiros, médicos, administradores, enfermeiros, lavradores, comerciantes, pensadores, políticos, militares e tantos outros, que foram chamados ao sacerdócio, à vida religiosa e à vida missionária ou à forte e comprometida atividade laical. Santo Ambrósio, que foi Bispo de Milão, era governador (político). Agostinho de Tagaste, que foi Bispo de Hipona, era professor de retórica e pecador tido por incorrigível. Pedro Hispano ou Pedro Julião, que foi Papa, era médico, filósofo, professor e matemático português. E Georgio Mario Bergoglio, o Papa atual, era técnico químico e terá namorado e Bento XVI desertou das fileiras hitlerianas. Os critérios de chamamento da parte de Deus são insondáveis.
Não sei se a autoridade eclesiástica tem estado sempre com atenção aos sinais de vocação, quando eles surgem de forma diferente dos cânones tidos como normais. Não posso esquecer a atrapalhação de Ananias quando teve a visão que o solicitava para ministrar o Batismo a Paulo de Tarso: “Senhor, tenho ouvido muita gente falar desse homem e a contar todo o mal que ele tem feito aos teus santos, em Jerusalém. E agora está aqui com plenos poderes dos sumos sacerdotes, para prender todos quantos invocam o teu nome” (Act 9,13-14). Foi preciso o Senhor responder: “Vai, pois esse homem é instrumento da minha escolha, para levar o meu nome perante os pagãos, os reis e os filhos de Israel” (Act 9,15). Mas Ananias ouviu, seguiu docilmente a voz da visão e foi executar o que o Senhor lhe mandou (cf Act 9,17-18).
Apesar da fé, tenho que expressar um dos temores sobre o que pode acontecer nos dias do nosso mundo atual: Será que o Senhor vai chamar para a vida de perfeição, num sacerdócio, vida religiosa e missionária ou para o laicado ativo, tantos dos “cobradores de impostos” hoje atuantes na nossa sociedade, ou melhor, os decisores da cobrança de impostos impiedosa e imoral? Ou chamará os exploradores dos pobres, dos criadores da miséria, dos corifeus e sequazes de um capitalismo sem rosto que mata a vida e a dignidade da pessoa humana? Será que esses ouvirão a voz de Deus a tempo e horas, escutá-la-ão e segui-la-ão? Estarão dispostos à postura de humildade orante do publicano apresentado pelo evangelista Lucas (cf Lc 18,9-14)? Estarão dispostos a mudar de vida como Mateus, “deixou o telónio e seguiu-o” (cf Mt 9,9)? Estarão disponíveis, de alma e coração, a retratarem-se como Zaqueu: dar metade dos bens aos pobres e restituir, pelo quádruplo, tudo o que foi objeto de comportamento fraudulento (cf Lc 19,8)? E, em atitudes de justiça necessárias no século XXI, estarão dispostos a desmantelar os esquemas de exploração que criaram ou ajudaram a criar, já que não podem restituir a vida às vítimas de seus esquemas indignificantes?
Sendo a resposta positiva, tanto quanto humanamente é possível, que sejam bem-vindos, pois, também estes são filhos de Abraão (cf Lc 19,9).
É São Paulo quem nos elucida:
Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados.
Mas Deus escolheu o que há de louco neste mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu o que há de fraco neste mundo para confundir o que é forte
E Deus escolheu as coisas vis deste mundo e as desprezíveis; e escolheu os que nada são para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa.
Assim, ninguém pode vangloriar-se diante dele. Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria e justiça, santificação, e redenção, a fim de que, como está escrito: Aquele que se gloria glorie-se no Senhor. (1Cor 1,25-31).

Há, ainda, um outro facto hipotético que merece reflexão. Que saibamos, Judas Iscariotes não era ladrão nem avarento antes de entrar no discipulado de Cristo. Ter-se-á tornado tal ao lidar com a bolsa: “Judas Iscariotes era um ladrão e, como tinha a bolsa, tirava o que ali se lançava” (Jo 12,6). Mas, hipocritamente, queria que se vendesse, em favor dos pobres, o perfume de espicanardo de alto preço que Maria utilizara para ungir os pés de Cristo (cf Jo 12,1-10)!
Ora, também hoje, como em outros tempos da História dos dois milénios recentes, alguns dos “escolhidos”, alguns dos quais antes da sua entrada no discipulado não o eram, tornaram-se Judas Iscariotes pela avareza, pela exploração, pela espada, pela luxúria, pela contradição da verdade conhecida como tal, pela desesperação de salvação (Judas também se enforcou…), pela soberba, pela espada, pela inveja, pela preguiça, pelo esbanjamento, pela gestão danosa dos bens próprios e dos outros, pela busca e manutenção do poder a todo o custo, pela apropriação dos generosos contributos de outros para a erradicação da pobreza ou das doenças ou das calamidades públicas, pela traição, pela negação do Mestre, pela chacota, pelo alijamento de responsabilidades próprias, pela indecisão quando é urgente decidir, pelo desprezo pela vida alheia, pelo desdém pelos valores axiológicos.
Será que tu ou eu nos enquadramos desgraçadamente nalguma destas situações?
Séneca recomendava o exame de consciência. O papa Francisco chamou já a atenção para importância do exame de consciência individual ao fim do dia, para que os crentes possam tomar consciência da presença de Deus no seu quotidiano. E, no passado Domingo de Ramos, a sua homilia constitui um novo formulário de exame de consciência pessoal à luz das personalidades que intervieram na Paixão do Senhor e das situações criadas em torno dela ou dela resultantes.

É de seguir o desafio, não é?!

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