O Papa
Francisco recebeu, no passado dia 5 de abril, na Sala Clementina, a associação
dos municípios italianos. O discurso que pronunciou perante os autarcas levou-me
a revisitar os deveres destes líderes de proximidade, no quadro das atribuições
que a Constituição e as leis portuguesas atribuem às autarquias locais, à luz
do disposto na Carta Europeia de Autonomia Local, em vigor desde 1 de setembro de 1988.
Sobre as autarquias locais
O último dos documentos referidos, “considerando
que as autarquias locais são um dos principais fundamentos de todo o regime
democrático” (vd Preâmbulo), define
no seu art.º 3.º/1, o que se entende por autonomia local: “o direito e a capacidade
efetiva de as autarquias locais regulamentarem e gerirem, nos termos da lei,
sob sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações uma parte
importante dos assuntos públicos”.
Por seu
turno, a nossa CRP, no seu art.º 235.º/2, explana a noção das autarquias locais
como sendo “pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos,
que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”.
Porém, o
diploma onde se podem analisar, em concreto e de forma desenvolvida, as
atribuições e competências daquelas pessoas coletivas territoriais, é o regime jurídico das autarquias locais,
aprovado pela lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, obviamente na sequência de
vários diplomas legais sobre a matéria, ora ultrapassados, se bem que
permaneçam, no mencionado normativo, as grandes linhas por que se deve pautar o
poder local.
Genericamente,
o seu art.º 3.º enuncia-as deste modo: “As autarquias locais prosseguem as suas
atribuições através do exercício, pelos respetivos órgãos, das competências
legalmente previstas”. E enumera-as como: de consulta; de planeamento; de investimento;
de gestão; de licenciamento e controlo prévio; e de fiscalização.
O art.º
4.º, do seu lado, consagra como princípios gerais, que a prossecução das
atribuições e o exercício das competências das autarquias locais e das
entidades intermunicipais devem respeitar, os seguintes: o da descentralização administrativa;
o da subsidiariedade; o da complementaridade; o da prossecução do interesse
público; o da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos; e o da
intangibilidade das atribuições do Estado.
Ora, a
CRP, no seu art.º 236.º, estipula a existência da freguesia e do município como
autarquias locais (também as regiões administrativas, mas que não vêm ao caso
por não estarem instituídas em concreto) e, no seu art.º 239.º/1, determina que
“a organização das autarquias locais compreende uma assembleia eleita dotada de
poderes deliberativos e um órgão executivo colegial perante ela responsável”.
Sendo assim, o regime jurídico das autarquias locais, já referido, além das
atribuições e competências e princípios já enunciados, distribui-as, em regime
de subsidiariedade, complementaridade e cooperação, pelos dois tipos de
autarquia previstos constitucionalmente e regulamenta o seu exercício segundo
as responsabilidades de cada um dos seus órgãos: deliberativo e executivo.
No âmbito
desta reflexão, cingir-me-ei às atribuições dos órgãos deliberativos e na parte
atinente às atribuições consideradas axiológicas, que não de índole técnica.
Deixarei de parte
também o estatuto das entidades intermunicipais também aprovado pela mencionada
lei, dado que os titulares dos seus órgãos promanam das autarquias por eleição
operacionalizada no interior do órgão deliberativo do município ou por
inerência estabelecida por lei.
Assim, o
art.º 7.º/1 do predito regime consigna como atribuições da freguesia “a promoção
e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação
com o município”; e o art.º 23.º atribui ao município “a promoção e salvaguarda
dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com as
freguesias.
Como
podemos ver, as atribuições são fundamentalmente as mesmas, mas dada a
diferente dimensão da freguesia e do município (que integra territorialmente
todas as freguesias, embora não equivalha ao somatório das freguesias, porque é
uma entidade de natureza diferente), a diferença de volume de recursos e a
diferença de proximidades, postula-se a articulação da ação de uma autarquia
com a da outra. E também os representantes da freguesia integram o órgão
deliberativo do município (cf CRP, art.º 251.º), para efeitos de construção de
uma visão holística de cada autarca de freguesia, geradora de contributos para
o todo municipal, e, ainda, para efeitos de apresentação de atos
reivindicativos em prol da população específica que representam.
Segundo o
n.º 2 do predito art.º 7.º, as freguesias dispõem de atribuições designadamente
nos seguintes domínios: equipamento rural e urbano; abastecimento
público; educação; cultura, tempos livres e desporto; cuidados primários
de saúde; ação social; proteção civil; ambiente e
salubridade; desenvolvimento; ordenamento urbano e rural; e proteção da
comunidade. E o n.º 3 acrescenta que “as atribuições das freguesias abrangem
ainda o planeamento, a gestão e a realização de investimentos nos casos e nos
termos previstos na lei”.
Por sua
vez, o art.º 23.º determina que os municípios dispõem de atribuições,
designadamente, nos seguintes domínios: equipamento rural e urbano;
energia; transportes e comunicações; educação; património, cultura e
ciência; tempos livres e desporto; saúde; ação social; habitação;
proteção civil; ambiente e saneamento básico; defesa do
consumidor; promoção do desenvolvimento; ordenamento do território e
urbanismo; polícia municipal; e cooperação externa.
Como se
depreende de uma análise, por sumária que seja, há atribuições comuns, embora a
maior parte das freguesias, sobretudo as rurais, pouco podem fazer por falta de
pessoal, por inópia de recursos e por falta de escala. Dificilmente uma
freguesia terá possibilidade de organizar e gerir uma rede de transportes
autónoma (nem mesmo os municípios, embora estes detenham capacidade para
implantar e gerir uma boa fatia desse bolo) ou de criar e gerir
estabelecimentos escolares ou de saúde. Por outro lado, não se conhecem
estruturas consistentes de proteção civil ao nível da freguesia. No entanto, a
freguesia – e a experiência mostra-o – pode ter um papel ativo na maior parte
das valências que integram as suas competências legalmente definidas,
nomeadamente através do sistema de contratos-programa. Por outro lado, não se
compreende por que razão a lei não consagra uma participação da freguesia no
domínio da energia ou não é ouvida no mecanismo de autorização de construções
de particulares e industriais.
Sobre os autarcas
Revisitadas que
foram as atribuições das autarquias, passo ao registo dos deveres dos autarcas
em pessoa, em que sobressai o líder do órgão executivo e seus colaboradores em
regime de permanência, que são esses que expõem a visão da autarquia, geram e
gerem os seus recursos, no respeito pelas decisões do órgão deliberativo
perante quem respondem regularmente.
Tais deveres vêm
definidos no Estatuto dos Eleitos Locais, aprovado pela lei n.º 29/87, de 30
de junho, alterado pela lei n.º 52-A/2005, de 10 de outubro, que o republicou,
e pela lei n.º 50/99, de 24 de junho, que lhe introduziu algumas alterações
cirúrgicas.
Assim, de acordo
com o seu art.º 4.º (o dos deveres), “no exercício das suas funções, os
eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios:
− Em matéria de legalidade e direitos dos cidadãos: observar
escrupulosamente as normas legais e regulamentares aplicáveis aos atos por si
praticados ou pelos órgãos a que pertencem; cumprir e fazer cumprir as normas
constitucionais e legais relativas à defesa dos interesses e direitos dos
cidadãos no âmbito das suas competências; e atuar com justiça e imparcialidade.
− Em matéria de prossecução do interesse público: salvaguardar e
defender os interesses públicos do Estado e da respetiva autarquia; respeitar
o fim público dos poderes em que se encontram investidos; não patrocinar
interesses particulares, próprios ou de terceiros, de qualquer natureza, quer
no exercício das suas funções, quer invocando a qualidade de membro de órgão
autárquico; não
intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou
privado, nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em
que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de
negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas
qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da
linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum; não
celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão; e não usar, para fins de interesse próprio ou de
terceiros, informações a que tenha acesso no exercício das suas funções.
− Em matéria de funcionamento dos órgãos de que sejam titulares: participar
nas reuniões ordinárias e extraordinárias dos órgãos autárquicos; e participar
em todos os organismos onde estão em representação do município ou da freguesia.
Julgo ser absolutamente dispensável
qualquer comentário sobre a matéria de deveres. No entanto, arriscaria, como
defenderia o velho filósofo Séneca ou as Igrejas cristãs, apelar a que os
senhores autarcas e seus cúmplices fizessem regularmente um profundo exame de
consciência ou, como pretendem outros, um sério exercício de autocrítica, a ver
se a comunicação social, as inspeções, a justiça e as suspeitas dos cidadãos
tinham muito menos pretexto para arengar sobre a honestidade dos detentores do
poder local.
E a
palavra do Papa
No aludido discurso, Francisco começa
por agradecer ao autarca de Turim, que, falando em nome de todos, citou o
exemplo do Cardeal Pellegrino (a quem o Papa se reconhece muito agradecido
porque, depois da Guerra, foi ele quem ajudou a família de Bergoglio a
encontrar trabalho) e o exemplo de “muitos homens e mulheres da Igreja –
padres, freiras e leigos – que sabiam caminhar pelo seu povo, no meio do povo e
com o povo”. E diz o Papa que “é esta a identidade do autarca” (ele diz do
prefeito, do sindaco), o seu
trabalho, a sua espiritualidade.
E pensa no autarca que, após um dia
de canseira, se depara desiludido, desconfortado e até esgotado por não ter
resolvido todos os problemas do povo, mas somente alguns. E aponta o exemplo de
Cristo, que, não sendo autarca, pode servir de modelo. Um autarca tem de estar
no meio do seu povo, porque é um mediador de recursos, de afetos, de
expectativas e mesmo de conflitos. E a tentação do autarca é passar de mediador
a intermediário.
O Pontífice assinala a diferença: o intermediário
aproveita a necessidade das partes em causa e retira para si um quinhão, como
faz o pequeno lojista, que serve os clientes, mas retira para si mesmo a margem
de lucro, ao passo que o mediador não fica com nada para si próprio, serve e
pronto. O autarca que não proceda como mediador não serve para autarca.
Já a 27 de março, na
homilia da Eucaristia a que presidiu no altar da Cátedra, na basílica de São
Pedro, com a presença de 493 parlamentares italianos (da Câmara dos Deputados e
do Senado), incluindo os respetivos líderes e nove ministros, o Papa argentino recordou
que, no tempo de Jesus, a classe dirigente se tinha afastado do povo,
abandonando-o e limitando-se a seguir a sua própria ideologia, os interesses
partidários e lutas internas, descaindo na corrupção. E assegurou que também
hoje “as
classes dirigentes sempre que se afastam do povo, se fecham sobre o seu próprio
grupo ou partido, nas suas lutas internas”, fazendo dos seus membros “homens de
coração duro”. Descreveu, assim, os perigos que ameaçam os políticos em geral,
no que pôde ser visto como uma alusão indireta aos políticos italianos, muitas
vezes criticados pelos seus privilégios e pela sua falta de eficácia.
Porém, o servidor, o mediador, o que
não é intermediário (Cristo dizia: o que não é mercenário, mas pastor), paga
com a própria vida a unidade do seu povo, o bem-estar do seu povo, a consecução
da resposta às várias necessidades do seu povo.
Cansado, precisa de descansar um
pouco, mas com o coração cheio de amor. E Francisco repete, fazendo da mística
do autarca um desejo pessoal seu: “E o que eu desejo para vós é que sejais
mediadores; no meio do povo, para construirdes a
unidade, para fazerdes a paz, para resolverdes os problemas e também para colmatardes
as necessidades das pessoas”.
Tal como Jesus, em determinados
momentos da sua vida, era apertado pela multidão a ponto de mal poder respirar,
porque as pessoas esperavam dele a resposta para as suas necessidades, assim
deve ser o autarca fatigado no meio do povo, a sentir-se cercado porque as pessoas,
que ele serve, sabem que ele responderá sempre bem.
Estão, na ótica papal, as pessoas em
primeiro lugar.
Serão assim os autarcas que nós vimos
elegendo? Parabéns, povo!
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