terça-feira, 8 de abril de 2014

Sobre o papel dos autarcas

O Papa Francisco recebeu, no passado dia 5 de abril, na Sala Clementina, a associação dos municípios italianos. O discurso que pronunciou perante os autarcas levou-me a revisitar os deveres destes líderes de proximidade, no quadro das atribuições que a Constituição e as leis portuguesas atribuem às autarquias locais, à luz do disposto na Carta Europeia de Autonomia Local, em vigor desde 1 de setembro de 1988.

Sobre as autarquias locais
O último dos documentos referidos, “considerando que as autarquias locais são um dos principais fundamentos de todo o regime democrático” (vd Preâmbulo), define no seu art.º 3.º/1, o que se entende por autonomia local: “o direito e a capacidade efetiva de as autarquias locais regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações uma parte importante dos assuntos públicos”.
Por seu turno, a nossa CRP, no seu art.º 235.º/2, explana a noção das autarquias locais como sendo “pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”.
Porém, o diploma onde se podem analisar, em concreto e de forma desenvolvida, as atribuições e competências daquelas pessoas coletivas territoriais, é o regime jurídico das autarquias locais, aprovado pela lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, obviamente na sequência de vários diplomas legais sobre a matéria, ora ultrapassados, se bem que permaneçam, no mencionado normativo, as grandes linhas por que se deve pautar o poder local.
Genericamente, o seu art.º 3.º enuncia-as deste modo: “As autarquias locais prosseguem as suas atribuições através do exercício, pelos respetivos órgãos, das competências legalmente previstas”. E enumera-as como: de consulta; de planeamento; de investimento; de gestão; de licenciamento e controlo prévio; e de fiscalização.
O art.º 4.º, do seu lado, consagra como princípios gerais, que a prossecução das atribuições e o exercício das competências das autarquias locais e das entidades intermunicipais devem respeitar, os seguintes: o da descentralização administrativa; o da subsidiariedade; o da complementaridade; o da prossecução do interesse público; o da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos; e o da intangibilidade das atribuições do Estado.
Ora, a CRP, no seu art.º 236.º, estipula a existência da freguesia e do município como autarquias locais (também as regiões administrativas, mas que não vêm ao caso por não estarem instituídas em concreto) e, no seu art.º 239.º/1, determina que “a organização das autarquias locais compreende uma assembleia eleita dotada de poderes deliberativos e um órgão executivo colegial perante ela responsável”. Sendo assim, o regime jurídico das autarquias locais, já referido, além das atribuições e competências e princípios já enunciados, distribui-as, em regime de subsidiariedade, complementaridade e cooperação, pelos dois tipos de autarquia previstos constitucionalmente e regulamenta o seu exercício segundo as responsabilidades de cada um dos seus órgãos: deliberativo e executivo.
No âmbito desta reflexão, cingir-me-ei às atribuições dos órgãos deliberativos e na parte atinente às atribuições consideradas axiológicas, que não de índole técnica.
Deixarei de parte também o estatuto das entidades intermunicipais também aprovado pela mencionada lei, dado que os titulares dos seus órgãos promanam das autarquias por eleição operacionalizada no interior do órgão deliberativo do município ou por inerência estabelecida por lei.
Assim, o art.º 7.º/1 do predito regime consigna como atribuições da freguesia “a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com o município”; e o art.º 23.º atribui ao município “a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com as freguesias.
Como podemos ver, as atribuições são fundamentalmente as mesmas, mas dada a diferente dimensão da freguesia e do município (que integra territorialmente todas as freguesias, embora não equivalha ao somatório das freguesias, porque é uma entidade de natureza diferente), a diferença de volume de recursos e a diferença de proximidades, postula-se a articulação da ação de uma autarquia com a da outra. E também os representantes da freguesia integram o órgão deliberativo do município (cf CRP, art.º 251.º), para efeitos de construção de uma visão holística de cada autarca de freguesia, geradora de contributos para o todo municipal, e, ainda, para efeitos de apresentação de atos reivindicativos em prol da população específica que representam.
Segundo o n.º 2 do predito art.º 7.º, as freguesias dispõem de atribuições designadamente nos seguintes domínios: equipamento rural e urbano; abastecimento público; educação; cultura, tempos livres e desporto; cuidados primários de saúde; ação social; proteção civil; ambiente e salubridade; desenvolvimento; ordenamento urbano e rural; e proteção da comunidade. E o n.º 3 acrescenta que “as atribuições das freguesias abrangem ainda o planeamento, a gestão e a realização de investimentos nos casos e nos termos previstos na lei”.
Por sua vez, o art.º 23.º determina que os municípios dispõem de atribuições, designadamente, nos seguintes domínios: equipamento rural e urbano; energia; transportes e comunicações; educação; património, cultura e ciência; tempos livres e desporto; saúde; ação social; habitação; proteção civil; ambiente e saneamento básico; defesa do consumidor; promoção do desenvolvimento; ordenamento do território e urbanismo; polícia municipal; e cooperação externa.
Como se depreende de uma análise, por sumária que seja, há atribuições comuns, embora a maior parte das freguesias, sobretudo as rurais, pouco podem fazer por falta de pessoal, por inópia de recursos e por falta de escala. Dificilmente uma freguesia terá possibilidade de organizar e gerir uma rede de transportes autónoma (nem mesmo os municípios, embora estes detenham capacidade para implantar e gerir uma boa fatia desse bolo) ou de criar e gerir estabelecimentos escolares ou de saúde. Por outro lado, não se conhecem estruturas consistentes de proteção civil ao nível da freguesia. No entanto, a freguesia – e a experiência mostra-o – pode ter um papel ativo na maior parte das valências que integram as suas competências legalmente definidas, nomeadamente através do sistema de contratos-programa. Por outro lado, não se compreende por que razão a lei não consagra uma participação da freguesia no domínio da energia ou não é ouvida no mecanismo de autorização de construções de particulares e industriais.

Sobre os autarcas
Revisitadas que foram as atribuições das autarquias, passo ao registo dos deveres dos autarcas em pessoa, em que sobressai o líder do órgão executivo e seus colaboradores em regime de permanência, que são esses que expõem a visão da autarquia, geram e gerem os seus recursos, no respeito pelas decisões do órgão deliberativo perante quem respondem regularmente.
Tais deveres vêm definidos no Estatuto dos Eleitos Locais, aprovado pela lei n.º 29/87, de 30 de junho, alterado pela lei n.º 52-A/2005, de 10 de outubro, que o republicou, e pela lei n.º 50/99, de 24 de junho, que lhe introduziu algumas alterações cirúrgicas.
Assim, de acordo com o seu art.º 4.º (o dos deveres), “no exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios:
Em matéria de legalidade e direitos dos cidadãos: observar escrupulosamente as normas legais e regulamentares aplicáveis aos atos por si praticados ou pelos órgãos a que pertencem; cumprir e fazer cumprir as normas constitucionais e legais relativas à defesa dos interesses e direitos dos cidadãos no âmbito das suas competências; e atuar com justiça e imparcialidade.
Em matéria de prossecução do interesse público: salvaguardar e defender os interesses públicos do Estado e da respetiva autarquia; respeitar o fim público dos poderes em que se encontram investidos; não patrocinar interesses particulares, próprios ou de terceiros, de qualquer natureza, quer no exercício das suas funções, quer invocando a qualidade de membro de órgão autárquico; não intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado, nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum; não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão; e não usar, para fins de interesse próprio ou de terceiros, informações a que tenha acesso no exercício das suas funções.
Em matéria de funcionamento dos órgãos de que sejam titulares: participar nas reuniões ordinárias e extraordinárias dos órgãos autárquicos; e participar em todos os organismos onde estão em representação do município ou da freguesia.
Julgo ser absolutamente dispensável qualquer comentário sobre a matéria de deveres. No entanto, arriscaria, como defenderia o velho filósofo Séneca ou as Igrejas cristãs, apelar a que os senhores autarcas e seus cúmplices fizessem regularmente um profundo exame de consciência ou, como pretendem outros, um sério exercício de autocrítica, a ver se a comunicação social, as inspeções, a justiça e as suspeitas dos cidadãos tinham muito menos pretexto para arengar sobre a honestidade dos detentores do poder local.

E a palavra do Papa
No aludido discurso, Francisco começa por agradecer ao autarca de Turim, que, falando em nome de todos, citou o exemplo do Cardeal Pellegrino (a quem o Papa se reconhece muito agradecido porque, depois da Guerra, foi ele quem ajudou a família de Bergoglio a encontrar trabalho) e o exemplo de “muitos homens e mulheres da Igreja – padres, freiras e leigos – que sabiam caminhar pelo seu povo, no meio do povo e com o povo”. E diz o Papa que “é esta a identidade do autarca” (ele diz do prefeito, do sindaco), o seu trabalho, a sua espiritualidade.
E pensa no autarca que, após um dia de canseira, se depara desiludido, desconfortado e até esgotado por não ter resolvido todos os problemas do povo, mas somente alguns. E aponta o exemplo de Cristo, que, não sendo autarca, pode servir de modelo. Um autarca tem de estar no meio do seu povo, porque é um mediador de recursos, de afetos, de expectativas e mesmo de conflitos. E a tentação do autarca é passar de mediador a intermediário.
O Pontífice assinala a diferença: o intermediário aproveita a necessidade das partes em causa e retira para si um quinhão, como faz o pequeno lojista, que serve os clientes, mas retira para si mesmo a margem de lucro, ao passo que o mediador não fica com nada para si próprio, serve e pronto. O autarca que não proceda como mediador não serve para autarca.
Já a 27 de março, na homilia da Eucaristia a que presidiu no altar da Cátedra, na basílica de São Pedro, com a presença de 493 parlamentares italianos (da Câmara dos Deputados e do Senado), incluindo os respetivos líderes e nove ministros, o Papa argentino recordou que, no tempo de Jesus, a classe dirigente se tinha afastado do povo, abandonando-o e limitando-se a seguir a sua própria ideologia, os interesses partidários e lutas internas, descaindo na corrupção. E assegurou que também hoje “as classes dirigentes sempre que se afastam do povo, se fecham sobre o seu próprio grupo ou partido, nas suas lutas internas”, fazendo dos seus membros “homens de coração duro”. Descreveu, assim, os perigos que ameaçam os políticos em geral, no que pôde ser visto como uma alusão indireta aos políticos italianos, muitas vezes criticados pelos seus privilégios e pela sua falta de eficácia.
Porém, o servidor, o mediador, o que não é intermediário (Cristo dizia: o que não é mercenário, mas pastor), paga com a própria vida a unidade do seu povo, o bem-estar do seu povo, a consecução da resposta às várias necessidades do seu povo.
Cansado, precisa de descansar um pouco, mas com o coração cheio de amor. E Francisco repete, fazendo da mística do autarca um desejo pessoal seu: “E o que eu desejo para vós é que sejais mediadores; no meio do povo, para construirdes a unidade, para fazerdes a paz, para resolverdes os problemas e também para colmatardes as necessidades das pessoas”.
Tal como Jesus, em determinados momentos da sua vida, era apertado pela multidão a ponto de mal poder respirar, porque as pessoas esperavam dele a resposta para as suas necessidades, assim deve ser o autarca fatigado no meio do povo, a sentir-se cercado porque as pessoas, que ele serve, sabem que ele responderá sempre bem.
Estão, na ótica papal, as pessoas em primeiro lugar.

Serão assim os autarcas que nós vimos elegendo? Parabéns, povo!

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