O telemóvel, o correio eletrónico e
as diversas plataformas da Internet facilitaram a relação interpessoal e as relações
profissionais e políticas. No entanto, como em tudo quando há falta de moderação,
levaram a algumas situações que ou denotam verdadeiros disparates ou configuram
mecanismos de verdadeira escravização.
Recordo-me do caso de um sacerdote
que, alegando que a proposta hora de um funeral não lhe convinha, o transferiu
para o fim da tarde, aparentemente com o consentimento dos familiares do
defunto. Quando efetivamente chegou para a celebração exequial, já ela tinha
decorrido, com surpresa sua, há bastantes horas. Perante a estranheza da
situação, declararam que lhe tinham mandado uma mensagem para o telemóvel a
referir que tinham encontrado um colega que se disponibilizou para o ato. Um membro
do atual governo afirmou que soubera da nomeação de um(a) determinado(a)
ministro(a) por SMS do primeiro-ministro. Um bispo, aquando da visita de Bento
XVI a Portugal, aparecia muitíssimas vezes em imagem televisiva a falar ao
telemóvel, tendo sido o facto assinalado por uma das repórteres de serviço.
A cada passo, os programas
televisivos de notícia e reportagem, de documentário e novela nos dão o
espetáculo do uso e abuso do telemóvel por parte dos diversos intervenientes. Gente
flagelada pelo desemprego e por outras misérias sociais exibe-se em televisão
agarrada ao telemóvel. Crianças, jovens e adultos usam e abusam do telemóvel e
aparelhos similares. Que o digam os professores das nossas escolas, contra o preceituado
no famoso Estatuto do Aluno, a que este governo apôs a Ética Escolar. É frequente
depararmo-nos com jovens e crianças entretidos com os ouvidos ocupados com os
auriculares. Estudantes há que beneficiam da ação social escolar, mas têm o telemóvel
de última geração e o conveniente tablet.
Apesar das insistentes advertências,
o telefone toca em sessões públicas e celebrações litúrgicas. E não obstante a
proibição inscrita no código da estrada, muitos automobilistas usam o mágico aparelho
colado aos ouvidos, ao mesmo tempo que infringem um ou outro artigo da lei.
Porém, o motivo desta reflexão tem a
ver com o teleuso dos meios informáticos on
line para liderar as relações de trabalho e as relações hierárquicas na
Administração Pública.
E este é um dos instrumentos de
controlo dos passos dos trabalhadores e/ou subordinados, que pode levar a uma
verdadeira escravização, já que, a todo o momento, se podem receber ordens,
alteração de agenda, indicação de tarefas, instruções, decisões. Isto cria
instabilidade social e política (no caso dos agentes desta ordem) e mina a
relação familiar.
Se não, vejamos. Dirigentes são
convocados por telemóvel e/ou e-mail para reunião imediata, inclusive para
tomar posse de cargo de dirigente; dispensa-se a afixação de convocatórias,
avisos, editais a tempo e horas nos lugares de estilo; expiram prazos, não à
hora do expediente, mas em hora alegadamente “conveniente” em termos informáticos.
Chefes mandam mensagens por correio eletrónico para as quais exigem resposta,
mesmo que seja noite, feriado ou fim de semana. E mesmo professores têm de
fazer sumários de aula em casa quando a escola em que trabalham não tem
plataforma informática eficiente.
A França, após estudos que levaram a concluir
pelo descontentamento, ansiedade, depressão, esgotamento e outras situações
patológicas numa considerável franja de trabalhadores, resolveu cortar o mal
pela raiz. E “sindicatos e patrões do setor da tecnologia, engenharia e
consultoria assinaram, no princípio deste mês [de abril], um acordo que
reconhece o direito do trabalhador a ficar offline”
(vd Público, de 28 de abril). Ora, se
o cidadão tem direito ao trabalho, por toda a minha gente reconhecido, o
trabalhador tem direito ao necessário e retemperador descanso. Porém, descanso
que seja perturbável sistematicamente deixa de ser descanso por não conseguir as
suas características fundamentais: a reparação de forças físicas e psíquicas; e
a entrega a uma ocupação diferente da habitual, mormente espiritual, cultural
ou filantrópica (E, porque não, sociocaritativa!). Aos teólogos, que expuseram,
como Chenu e Escrivá de Balaguer, uma teologia e uma espiritualidade do
trabalho, contrapuseram – e bem – outros, como S. João Paulo II e Valdir José de
Castro, uma teologia e uma espiritualidade do tempo livre (o que na década de
70 Georgino Rocha denominava espiritualidade do ócio). E Filipe Rocha publicou
um livro, que vale a pena reler e ter em conta, “Cibernética e Liberdade: uma nova maneira de pensar o homem?”.
Tempo
livre é aquele momento que ajuda o ser humano a não deixar que o trabalho se
torne um peso excessivo e escravizador: o tempo dedicado ao repouso, ao lazer,
à cultura, ao turismo, às relações interpessoais e, no caso do crente, à relação
com Deus. É momento que ajuda o ser humano a “humanizar-se”, a cultivar as
relações humanas. Se o trabalho é atividade humana e divina, também o é o
descanso. Também o tempo livre é lugar de espiritualidade. (cf Valdir Castro,
in “A
espiritualidade no cotidiano”:
http://vidapastoral.com.br/artigos/espiritualidade/a-espiritualidade-no-cotidiano).
Afirmei que a França resolveu cortar
o mal pela raiz. Como se depreende, não fui exato, porquanto não está abrangida
toda a relação laboral, ainda que o setor em que isso sucedeu seja
significativo e até extenso. Mas França levou a carga para o lado contrário,
pois, além do direito, o acordo assinado entre as partes prescreve um
direito-dever. Ou seja, os trabalhadores passam a ter de desligar os seus
telefones de serviço entre as seis da tarde e as nove da manhã do dia seguinte,
devendo ignorar, durante o mesmo período, qualquer mensagem de correio
eletrónico.
E é aqui que bate mal a bola. O
trabalhador deve ter direito reconhecido à desconexão, a que deve corresponder
o dever de respeito desse direito da parte do patrão ou do superior hierárquico.
Julgo, porém, que a desconexão não havia de ser imposta como dever ao
trabalhador. Deveria, a meu ver, tornar-se obrigatório o respeito desse direito
por parte de todos e ser prevista sanção adequada a quem prevaricasse. Teria de
ficar salvaguardada a possibilidade de comunicação em caso de manifesta
emergência, sendo igualmente penalizada a pseudoemergência. Não sei mesmo se,
por causa disso, o governo francês vai mesmo homologar tal acordo e torná-lo
público no Journal Officiel.
É pena que Portugal tenda a copiar
tudo o que se passa lá por fora e, nestas coisas, seja tão surdo, tão cego, tão
insensível! É que o panorama detetado em França no grau de insatisfação dos
trabalhadores não é menos dramático em Portugal. Segundo o citado periódico,
15% dos trabalhadores portugueses evidenciavam no ano transato sinais de
esgotamento; 62% enfrentavam situações de stress;
78% apresentavam a situação psicológica de turnover,
ou seja, o desejo de mudar de emprego no horizonte temporal de cinco anos; e 83%
estavam em risco de exaustão. Não seria de olhar apara isto com olhos de ver?! Não
são apenas os reformados que não vislumbram futuro de céu azul!
E perante isto, o governo aumenta
horário de trabalho; facilita despedimento; suprime feriados; corta
drasticamente em salários, pensões, subsídios e suplementos; aumenta brutalmente
contribuições, impostos, taxas e tarifas; incita a aposentação antecipada (em
condições de progressiva degradação) ou a rescisão amigável os funcionários públicos
(com contrapartidas indemnizatórias de avareza). Paira o espectro do desemprego,
da precariedade e da possibilidade da perda de emprego. Os trabalhadores, por
consequência, aceitam resignados a sobrecarga brutal de trabalho, o incómodo
nos tempos livres e o silêncio – contra o que a consciência crítica impõe.
Falam pelas costas e autojustificam-se com a inevitabilidade que lhes é pregada…
Há que repensar, contra tudo o que
possa ser exigido pelos alegados credores, que afinal são, ou deveriam ser,
gestores de mutualidade (o país é contribuinte de há longo tempo do FMI, da CE
e do BCE, desde que desses organismos se fez membro!). Governo que não zele
pelo moral dos seus cidadãos e pelo prestígio das suas instituições não merece
ser governo.
Direito à desconexão, sim, mas deve
ser conjugado com o direito à conexão e aos seus serviços. É bom o cidadão
dispor dos meios de comunicação informática para serviço útil e na hora; mas
não tem o direito de exigir a outrem o impossível nem de se sujeitar a
condições desumanas só por que existem meios que facilitam isso. O homem tem de
ser sempre o senhor da máquina e não seu escravo. E nunca o homem pode usar a
máquina para escravizar ou desprezar outro homem!
Em suma, tem de ser assumido o direito
ao trabalho, mas também o direito ao justo e efetivo repouso, garantindo-se o
respeito pelos períodos mínimos de descanso dos trabalhadores previstos na
legislação e nos instrumentos contratuais.
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