terça-feira, 29 de abril de 2014

O direito à desconexão

O telemóvel, o correio eletrónico e as diversas plataformas da Internet facilitaram a relação interpessoal e as relações profissionais e políticas. No entanto, como em tudo quando há falta de moderação, levaram a algumas situações que ou denotam verdadeiros disparates ou configuram mecanismos de verdadeira escravização.
Recordo-me do caso de um sacerdote que, alegando que a proposta hora de um funeral não lhe convinha, o transferiu para o fim da tarde, aparentemente com o consentimento dos familiares do defunto. Quando efetivamente chegou para a celebração exequial, já ela tinha decorrido, com surpresa sua, há bastantes horas. Perante a estranheza da situação, declararam que lhe tinham mandado uma mensagem para o telemóvel a referir que tinham encontrado um colega que se disponibilizou para o ato. Um membro do atual governo afirmou que soubera da nomeação de um(a) determinado(a) ministro(a) por SMS do primeiro-ministro. Um bispo, aquando da visita de Bento XVI a Portugal, aparecia muitíssimas vezes em imagem televisiva a falar ao telemóvel, tendo sido o facto assinalado por uma das repórteres de serviço.
A cada passo, os programas televisivos de notícia e reportagem, de documentário e novela nos dão o espetáculo do uso e abuso do telemóvel por parte dos diversos intervenientes. Gente flagelada pelo desemprego e por outras misérias sociais exibe-se em televisão agarrada ao telemóvel. Crianças, jovens e adultos usam e abusam do telemóvel e aparelhos similares. Que o digam os professores das nossas escolas, contra o preceituado no famoso Estatuto do Aluno, a que este governo apôs a Ética Escolar. É frequente depararmo-nos com jovens e crianças entretidos com os ouvidos ocupados com os auriculares. Estudantes há que beneficiam da ação social escolar, mas têm o telemóvel de última geração e o conveniente tablet.
Apesar das insistentes advertências, o telefone toca em sessões públicas e celebrações litúrgicas. E não obstante a proibição inscrita no código da estrada, muitos automobilistas usam o mágico aparelho colado aos ouvidos, ao mesmo tempo que infringem um ou outro artigo da lei.
Porém, o motivo desta reflexão tem a ver com o teleuso dos meios informáticos on line para liderar as relações de trabalho e as relações hierárquicas na Administração Pública.
E este é um dos instrumentos de controlo dos passos dos trabalhadores e/ou subordinados, que pode levar a uma verdadeira escravização, já que, a todo o momento, se podem receber ordens, alteração de agenda, indicação de tarefas, instruções, decisões. Isto cria instabilidade social e política (no caso dos agentes desta ordem) e mina a relação familiar.
Se não, vejamos. Dirigentes são convocados por telemóvel e/ou e-mail para reunião imediata, inclusive para tomar posse de cargo de dirigente; dispensa-se a afixação de convocatórias, avisos, editais a tempo e horas nos lugares de estilo; expiram prazos, não à hora do expediente, mas em hora alegadamente “conveniente” em termos informáticos. Chefes mandam mensagens por correio eletrónico para as quais exigem resposta, mesmo que seja noite, feriado ou fim de semana. E mesmo professores têm de fazer sumários de aula em casa quando a escola em que trabalham não tem plataforma informática eficiente.
A França, após estudos que levaram a concluir pelo descontentamento, ansiedade, depressão, esgotamento e outras situações patológicas numa considerável franja de trabalhadores, resolveu cortar o mal pela raiz. E “sindicatos e patrões do setor da tecnologia, engenharia e consultoria assinaram, no princípio deste mês [de abril], um acordo que reconhece o direito do trabalhador a ficar offline” (vd Público, de 28 de abril). Ora, se o cidadão tem direito ao trabalho, por toda a minha gente reconhecido, o trabalhador tem direito ao necessário e retemperador descanso. Porém, descanso que seja perturbável sistematicamente deixa de ser descanso por não conseguir as suas características fundamentais: a reparação de forças físicas e psíquicas; e a entrega a uma ocupação diferente da habitual, mormente espiritual, cultural ou filantrópica (E, porque não, sociocaritativa!). Aos teólogos, que expuseram, como Chenu e Escrivá de Balaguer, uma teologia e uma espiritualidade do trabalho, contrapuseram – e bem – outros, como S. João Paulo II e Valdir José de Castro, uma teologia e uma espiritualidade do tempo livre (o que na década de 70 Georgino Rocha denominava espiritualidade do ócio). E Filipe Rocha publicou um livro, que vale a pena reler e ter em conta, “Cibernética e Liberdade: uma nova maneira de pensar o homem?”.
Tempo livre é aquele momento que ajuda o ser humano a não deixar que o trabalho se torne um peso excessivo e escravizador: o tempo dedicado ao repouso, ao lazer, à cultura, ao turismo, às relações interpessoais e, no caso do crente, à relação com Deus. É momento que ajuda o ser humano a “humanizar-se”, a cultivar as relações humanas. Se o trabalho é atividade humana e divina, também o é o descanso. Também o tempo livre é lugar de espiritualidade. (cf Valdir Castro, in “A espiritualidade no cotidiano”: http://vidapastoral.com.br/artigos/espiritualidade/a-espiritualidade-no-cotidiano).
Afirmei que a França resolveu cortar o mal pela raiz. Como se depreende, não fui exato, porquanto não está abrangida toda a relação laboral, ainda que o setor em que isso sucedeu seja significativo e até extenso. Mas França levou a carga para o lado contrário, pois, além do direito, o acordo assinado entre as partes prescreve um direito-dever. Ou seja, os trabalhadores passam a ter de desligar os seus telefones de serviço entre as seis da tarde e as nove da manhã do dia seguinte, devendo ignorar, durante o mesmo período, qualquer mensagem de correio eletrónico.
E é aqui que bate mal a bola. O trabalhador deve ter direito reconhecido à desconexão, a que deve corresponder o dever de respeito desse direito da parte do patrão ou do superior hierárquico. Julgo, porém, que a desconexão não havia de ser imposta como dever ao trabalhador. Deveria, a meu ver, tornar-se obrigatório o respeito desse direito por parte de todos e ser prevista sanção adequada a quem prevaricasse. Teria de ficar salvaguardada a possibilidade de comunicação em caso de manifesta emergência, sendo igualmente penalizada a pseudoemergência. Não sei mesmo se, por causa disso, o governo francês vai mesmo homologar tal acordo e torná-lo público no Journal Officiel.
É pena que Portugal tenda a copiar tudo o que se passa lá por fora e, nestas coisas, seja tão surdo, tão cego, tão insensível! É que o panorama detetado em França no grau de insatisfação dos trabalhadores não é menos dramático em Portugal. Segundo o citado periódico, 15% dos trabalhadores portugueses evidenciavam no ano transato sinais de esgotamento; 62% enfrentavam situações de stress; 78% apresentavam a situação psicológica de turnover, ou seja, o desejo de mudar de emprego no horizonte temporal de cinco anos; e 83% estavam em risco de exaustão. Não seria de olhar apara isto com olhos de ver?! Não são apenas os reformados que não vislumbram futuro de céu azul!
E perante isto, o governo aumenta horário de trabalho; facilita despedimento; suprime feriados; corta drasticamente em salários, pensões, subsídios e suplementos; aumenta brutalmente contribuições, impostos, taxas e tarifas; incita a aposentação antecipada (em condições de progressiva degradação) ou a rescisão amigável os funcionários públicos (com contrapartidas indemnizatórias de avareza). Paira o espectro do desemprego, da precariedade e da possibilidade da perda de emprego. Os trabalhadores, por consequência, aceitam resignados a sobrecarga brutal de trabalho, o incómodo nos tempos livres e o silêncio – contra o que a consciência crítica impõe. Falam pelas costas e autojustificam-se com a inevitabilidade que lhes é pregada…
Há que repensar, contra tudo o que possa ser exigido pelos alegados credores, que afinal são, ou deveriam ser, gestores de mutualidade (o país é contribuinte de há longo tempo do FMI, da CE e do BCE, desde que desses organismos se fez membro!). Governo que não zele pelo moral dos seus cidadãos e pelo prestígio das suas instituições não merece ser governo.
Direito à desconexão, sim, mas deve ser conjugado com o direito à conexão e aos seus serviços. É bom o cidadão dispor dos meios de comunicação informática para serviço útil e na hora; mas não tem o direito de exigir a outrem o impossível nem de se sujeitar a condições desumanas só por que existem meios que facilitam isso. O homem tem de ser sempre o senhor da máquina e não seu escravo. E nunca o homem pode usar a máquina para escravizar ou desprezar outro homem!

Em suma, tem de ser assumido o direito ao trabalho, mas também o direito ao justo e efetivo repouso, garantindo-se o respeito pelos períodos mínimos de descanso dos trabalhadores previstos na legislação e nos instrumentos contratuais.

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