quinta-feira, 31 de maio de 2018

Mistério admirável da nossa fé para a salvação do mundo


Na Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, que ocorreu neste dia 31 de maio, em que se se faria a celebração da memória da Visitação de Nossa Senhora, se não fosse hoje celebrada a solenidade móvel, tive a oportunidade de escutar duas reflexões homiléticas: a do Bispo do Porto, Dom Manuel Linda e a do Padre Passionista José Gregório – das quais me proponho fazer a minha leitura singela.
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Dom Manuel Linda reportou a criação eclesial deste dia como a necessidade de acentuar a valorização da Eucaristia na vida da Igreja e na transformação do mundo, não já num ambiente denso da celebração da Quinta-feira Santa carregada pelas cores dramáticas da Paixão e Morte. Porém, para apreendermos a essência do Mistério da Fé (Res Mirabilis) e aprofundarmos o seu sentido, temos de retomar o cenário e o teor da Última Ceia em que Jesus, depois da degustação do cordeiro pascal com os discípulos acompanhado de pão ázimo e ervas amargas, instituiu o sacramento da Eucaristia e o sacerdócio ministerial ao serviço do sacramento e deu o mandato de fazer tudo o que Ele e como Ele fez – a fração do pão e a prática do amor fraterno incalculado e sem limites, porque à medida do Mestre e Senhor. 
Frisando que a entrega do Seu corpo e sangue nos sinais do pão e do vinho aos discípulos é o dom gratuito do Senhor para alimento da vida de discípulos e de apóstolos que vivem em missão no mundo que necessita de transformação segundo o coração de Deus. É a entrega redentora, familiar e íntima, de Deus pela salvação do homem todo e dos homens todos (propter nos homines et nostram salutem), com o mesmo peso da entrega dramática na cruz, ora colocada próxima de nós ao serviço da nossa vida.
A comunhão no corpo e sangue Jesus implica, antes de mais, a assimilação com Cristo e incorporação de cada um no seu Corpo, pelo que se nos exige a vontade de nos deixarmos assimilar e incorporar, de modo que para nós viver seja viver em Cristo e completar em nós as Suas ações.
Por outro lado, celebrar a Eucaristia é participar no banquete dos filhos de Deus, o banquete da fraternidade. Aqui chegados provindos das periferias das nossas vidas, nos alimentamos e revigoramos e partimos para o meio das tarefas da vida e do mundo.
Depois, há que ter a consciência clara de que este é sacramento da unidade (unum corpus et unus spiritus). Não anda cada um por seu lado ou cada um a viver isoladamente a sua vida e à sua maneira sem referência à comunidade. De facto, a comunidade dos cristãos aparece logo nos primórdios como um só coração e uma só alma, o que mostra que a Igreja não aguenta as divisões profundas. Por isso, sente o constante palpitar do apelo à unidade, à concórdia.
Daqui decorre a necessidade da atitude contemplativa perante o dom eucarístico e a urgência da ação transformadora do mundo. A contemplação não pode consistir numa postura de passividade mas na entrega amorosa ao dom que nos invade, um deixarmo-nos apanhar gostosamente pelo dom e sentir o seu arrebatamento, o que postula um desejo forte de misticismo unitivo com Deus. Porém, é preciso aceitar a consequência desta possessão de Deus e do seu mistério. É que o mistério não se reduz ao indecifrável ou à intimidade, que é essencial, mas tem de fazer luzir a sua vertente de projeto ad extra e in perpetuum (para fora e para o futuro). Na verdade, o Senhor fez-se o pão repartido para a vida do mundo, porque deseja que todos tenham a Vida e a tenham em abundância. E colocou esta Vida e os seus germes e meios no coração e nas mãos dos discípulos de quem, no Espírito Santo, fez apóstolos e missionários, para que, arautos e pegureiros por toda a parte, enquanto profetas, ensinassem e fizessem discípulos, enquanto sacerdotes batizassem e celebrassem em Sua memória o mistério eucarístico, anunciando a Morte e Ressurreição do Senhor até que Ele volte, e, enquanto pastores, amem a todos como Ele amou e a todos ensinem a amar assim.
Para que a contemplação da Eucaristia se intensifique a nível pessoal, ela tem de sair dos limites do escondimento, tornar-se comunitária, afirmar-se e expandir-se aos olhos de todos para que dê aos demais a oportunidade de a contemplarem e adorarem e para que se lhe abram caminhos de transformação no dinamismo dos crentes e no respeito pela vontade e pelo ritmo de cada um dos destinatários da missão. Talvez seja este um dos bons sentidos da exposição solene do Santíssimo Sacramento e talvez seja a procissão do Santíssimo Sacramento o ato de fé pública de que os cristãos sente a necessidade e a obrigação um meio de afirmar a urgência da transformação do mundo tornando Jesus ressuscitado uma presença atuante e cidadã na cidade dos homens, nas ruas e caminhos de todos, nomeadamente dos pobres, dos doentes, dos encarcerados e dos deserdados – e o propósito do alegre testemunho do Ressuscitado entre nós e da presença obrigatória dos cristãos junto de todos, mormente dos que mais precisam.
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O Padre José Gregório começou por fazer a contextualização histórica, no século XIII da instituição desta festa (no quadro da nomenclatura tradicional) e solenidade (no quadro da nomenclatura pós-conciliar) em razão das dúvidas suscitadas por muitos e dos agravos e distrações e negligências e, depois, desenvolveu o tema, centrado na perícopa evangélica selecionada para o dia de hoje (Mc 14,12-16.22-26) e apoiando-se no que denominou de três notas basilares da mesma melodia.
A primeira nota tem a ver com o verbo “tomar” que Jesus utilizou aquando da ação instituidora da Eucaristia. É um verbo empregue no imperativo. Jesus, ao dizer “tomai”, solicita uma atitude de cada um dos discípulos, um empenho pessoal e comunitário, não a atitude passiva de quem se sujeita a receber um benefício como se estivesse a fazer um favor a quem o presta. A Eucaristia é efetivamente o dom amoroso de Deus a cada um e à comunidade. É a Nova Aliança que, firmada nos ensinamentos de Jesus em nome do Pai, espelha a vontade de Deus a nosso respeito e postula as nossas atitudes de aceitação e de ação em conformidade com as suas exigências para com o Senhor e para com os irmãos. 
Neste sentido, reportou-se ao texto assumido para a 1.ª leitura (Ex 24,3-8). Esta passagem do Êxodo apresenta Moisés a relatar ao povo todas as palavras do Senhor e todas as normas. E a isto todo o povo respondeu a uma só voz: “Poremos em prática todas as palavras que o Senhor pronunciou”. Moisés escreveu todas as palavras de Deus, levantou-se de manhã cedo, construiu um altar e doze estelas pelas doze tribos de Israel e enviou os jovens dos filhos de Israel, que ofereceram holocaustos e sacrificaram ao Senhor novilhos como sacrifícios de comunhão. Depois, espalhou sangue sobre o altar, leu o Livro da Aliança ao povo, que anuiu, reiterando: “Tudo o que o Senhor disse, nós o faremos e obedeceremos”. Finalmente, tomou sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: “Eis o sangue da aliança que o Senhor concluiu convosco”.
E é justamente aqui que entronca a segunda nota. Jesus, com a entrega do Seu corpo e sangue nos sinais do pão e do vinho associa, em intrínseca conexão, à Última Ceia o ato sacrificial do Gólgota. Se o pão feito Corpo de Cristo é alimento do corpo e da alma de cada um – a pessoa toda – e da comunidade dos discípulos, o Sangue de Cristo é o selo da Nova e Eterna Aliança, a que todos têm de estar vinculados. Não se trata de um mero ritual. É preciso tomar o alimento e revigorar a vida com o sangue da unidade; é preciso criar e aumentar a comunhão e implicar os outros, nomeadamente os pobres, os doentes, aqueles a quem o mundo não presta atenção. Com efeito, a vida dos cristãos não pode seguir sem que assumamos os sentimentos de Jesus na ligação ao Pai e na relação com os irmãos – relação que tem de incluir a todos, de modo que esta seja terra de todos, terra de vida e terra de Deus. Com efeito, não se trata de aceitar o resgate operado por Cristo como algo totalmente consumado ficando nós com o gozo exclusivo dos rendimentos. Não. É necessário pormo-nos em atitude de assimilação do benefício redentor e de disponibilidade para levar aos outros a boa notícia e fazê-los partícipes do Mistério. Ninguém lá chega por si só. É necessária a missionação, a catequese, a pregação, a celebração e o exercício da caridade fraterna.
E na terceira nota há também um imperativo como na primeira, mas com outro verbo: “fazei”. E esta ação é tríplice: fazer em memória do Senhor este ato sacrificial e de comunhão no seio da comunidade e como testemunho perante o mundo; satisfazer em pleno o mandamento do amor, amando como Jesus amou, afetiva e efetivamente, com gestos de aproximação e com o olhar compassivo, com palavras de conforto e com ações concretas de cuidado, solidariedade e companheirismo; e partir pelo mundo de cá e de lá, de perto e de longe, a ensinar o que Jesus ensinou, a rezar como Ele rezou, a amar como Ele amou e ama, a celebrar o memorial da Sua Morte e Ressurreição enquanto esperamos em jubilosa esperança a Sua vinda gloriosa.
Para tudo isto, é necessário aprender e reaprender a contemplar e adorar e estar disponível para a missão onde for necessário e como for necessário, sem inibições e presunções, sem medo e sem temeridade, sem improviso sistemático e sem deixar de intervir mesmo sem se contar.
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Foi assim que li as boas comunicações que escutei, embora não com as palavras dos mencionados comunicadores pastores celebrantes, mas emprestando aos fios condutores que topei os meus considerandos pessoais de forma integrada, tanto quanto possível.
A Eucaristia, porém, não se deixa aprisionar nas nossas categorias mentais. Não obstante, porque é oferta de Deus disponibilizada a todos, é efetivamente o Mistério da Fé que urge contemplar e apresentar a todos. É profundamente Mistério da fé pessoal, pois cada um, espontaneamente ou ao ser interrogado, professa: “Creio”. É extensivamente o Mistério da nossa Fé, porque a professamos, não apenas a sós com Deus, mas em comunidade e professando o símbolo disponível pela comunidade e por ela utilizado. Não somos nós que inventamos a fé, mas é Deus que a dá para cada um e para a comunidade. É, pois, um dom pessoal e carismático.
E, quando somos convidados a professar pessoalmente a fé em comunidade, o ato finaliza com esta proclamação solene: “Esta é a nossa fé. Esta é a fé da Igreja, que nos gloriamos de professar, em Jesus Cristo, Nosso Senhor. Amen.”. E não se pode ter a fé como tesouro acorrentado, mas saber pôr-se (com ela, nela e por ela) ao serviço da recuperação redentora do homem todo e de todos os homens sem distinção de raça, sexo, religião, ideologia, tempo, lugar.
Na verdade, este Mistério é admirável em si mesmo e nas vertentes em que se desdobra e multiplica. Que pena nem sempre sermos consequentes com o que dizemos acreditar!
2018.05.31 – Louro de Carvalho   

quarta-feira, 30 de maio de 2018

“Desporto – Virtudes e riscos”


O enunciado em epígrafe constitui o tema da 4.ª Jornada Nacional da Pastoral da CulturaDesporto – Virtudes e riscos”, que se realizará a 2 de junho, em Fátima, na Casa “Domus Carmeli”, Rua do Imaculado Coração de Maria, 17, e durante a qual será concedido o prémio “Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes” ao ator Ruy de Carvalho.
Trata-se dum encontro, aberto a crentes e não crentes, que se centra no significado antropológico e nas atuais conexões socioculturais do desporto – poética e ética do corpo e do espírito, poderes e desvios da irradiação social (negócio, corrupção, alienação, etc.). E dele são destinatários privilegiados os agentes da Pastoral da Cultura, os professores, os educadores e os responsáveis pela juventude de paróquias, organismos e movimentos, dirigentes e treinadores de clubes desportivos a nível federativo e escolar.
Os conferencistas refletirão também sobre a possibilidade de atualização da perspetiva cristã do ideal humanista de “mens sana in corpore sano” (mente sã em corpo são).
O tema da jornada foi escolhido na sequência das múltiplas intervenções do Papa Francisco e seus antecessores sobre o Desporto, área que suscitou a criação dum departamento exclusivo por parte do Conselho Pontifício da Cultura.
Entre as numerosas iniciativas do Vaticano contam-se a 1.ª conferência global sobre fé e desporto, a organização de competições internacionais no campo do atletismo, futebol de salão e críquete, a participação de delegações da Santa Sé nos Jogos Olímpicos e a criação de equipas desportivas.
A 4.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura é um evento reveste-se de grande oportunidade depois dos acontecimentos que acorreriam recentemente em Alcochete e que puseram em sentido os detentores de cargos políticos, s dirigentes desportivos e a massa crítica do país.
Do seu programa constam, como é natural: a sessão de abertura, em que tomarão a palavra  
Dom João Lavrador, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, e José Carlos Seabra Pereira, Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura; uma Conferência por Tomaz Morais, treinador de râguebi, e comentador desportivo, seguida de debate entre público e conferencista; um primeiro painel moderado pela jornalista Maria João Costa, com a participação do Padre Ismael Teixeira, atleta, “iron priest”, e Ribeiro Cristóvão, jornalista, comentador desportivo; um segundo debate entre público e conferencistas; uma intervenção artística, por Paulo Pires do Vale, curador, professor universitário; um segundo painel moderado pela jornalista Maria João Costa, com a participação de Beatriz Gomes, antiga campeã mundial de canoagem, professora universitária, e
Jorge Gabriel, apresentador de televisão, comentador desportivo; um terceiro debate entre público e conferencistas; uma Conferência por Gonçalo M. Tavares, escritor, professor universitário, seguida de debate entre público e conferencista; e ato de entrega do Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes a Ruy de Carvalho, atribuído pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, em parceria com a Renascença.
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Entretanto, o site do SNPC (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura) já traz a apresentação do jornalista António Ribeiro Cristóvão um dos convidados para esta 4.ª jornada e tenciona fazer o mesmo para os demais convidados ao longo destes dias.
Ribeiro Cristóvão – conhecido de programas como “Bola branca”, na Rádio Renascença, e “Domingo desportivo”, na RTP, e atualmente comentador na SIC e na emissora católica – nasceu há 78 anos, em Proença-a-Nova, frequentou seminários em Vila Viçosa e Évora e, aos 16 anos, embarcou para Angola, onde se iniciou na rádio, conheceu a mulher com que está casado, há 53 anos, e com quem teve três filhos.
Regressado em 1975, encontrou trabalho na Renascença. Marcou presença como jornalista em duas fases finais de campeonatos do Mundo de futebol e em quatro Europeus e foi deputado na Assembleia da República durante seis anos.
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Porém, o SNPC transcreveu um artigo de Paolo Crepaz, professor universitário e médico de equipas nacionais de Itália, publicado em Sportmeet (Movimento dos Focolares) sob o título  “Desporto e fé: O jogo que a Igreja não pode perder por falta de comparência”. Nele, analisa “o fenómeno do desporto”; discorre sobre “o desporto, religião do nosso tempo”; evidencia “o jogo, essência do desporto”; releva “o valor biológico do jogo”; reflete sobre “jogo, desporto e corporeidade”; e olha “o desporto à luz da doutrina cristã”. Disto se faz resenha e condensação a seguir.
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Sobre o fenómeno do desporto, considera a ancestralidade desta ocupação (desde os alvores da história da humanidade) e frisa ter assumido no nosso tempo “o caráter de um fenómeno de massa consolidado e invasivo”, vencendo todo o tipo de barreiras. De facto, o desporto é omnipresente e condiciona a perceção da realidade, constituindo-se em nova referência antropológica, persistente poder espiritual planetário e modelo inspirador e metodológico para todos os âmbitos. E tem um forte papel educativo, pois são “usadas para gerir problemas, situações e questões comummente encontradas na vida do dia a dia” muitas das “competências para a vida” e muitas das “capacidades humanas adquiridas através de ensinamento ou experiência direta”. 
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O subtítulo o desporto, religião do nosso tempo” remete para o olimpismo como a matriz e a referência mais pertinente do desporto moderno, aliás como do da Grécia antiga. Com efeito, à luz do art.º 2.º da Carta Olímpica, o olimpismo é a filosofia de vida que “exalta e combina num conjunto harmonioso as qualidades do corpo, a vontade e o espírito”, estabelecendo a simbiose do desporto com a cultura e a educação. Por conseguinte, “propõe-se criar um estilo de vida baseado na alegria do esforço, no valor educativo do bom exemplo e respeito pelos princípios éticos fundamentais universais”. Para Pierre De Coubertin, não se trata só da ação educativa dos jovens através da atividade motora, mas também de compaginar a conotação política dum projeto utopista de educação para a paz dos povos e de toda a comunidade internacional.
Também o desporto surge como caricatura mercantil duma religião universal, pois os eventos emblemáticos assumem o estilo duma liturgia numa e para uma assembleia planetária. Atente-se na cerimónia de acendimento do fogo olímpico ou na publicidade da Liga dos Campeões em futebol. O escritor espanhol e grande adepto do Barcelona Manuel Vazquez Montalban afirmou:
Numa época em que é evidente a crise das ideologias, em que é claro o redimensionamento da militância política, e onde até as atitudes religiosas sofrem de falta de perspetiva, o futebol é a única e grande religião praticável. Há neste desporto uma dimensão financeira, mediática, publicitária, mas não menosprezarei o seu lado litúrgico.”.
Assim, para Crepaz, o tema desporto à luz da fé cederá a “desporto: nova expressão de fé laica”.
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Comentando o enunciado em subtítulo “o jogo, essência do desporto”, o articulista sustenta que as pessoas gostam muito do desporto porque este é uma evolução do jogo, que é “experiência natural, instintiva, extremamente envolvente e fascinante”. Para Johan Huizinga, “o jogo é mais antigo que a cultura” e nele “manifesta-se um elemento imaterial na sua própria essência”. Como necessidade inata, o jogo induz a evolução das capacidades motoras, “cria um ambiente desinibido e distendido, melhora a imagem corpórea, aumenta o sentido de segurança e a autoestima, produz socialização e adaptação, faz nascer e desenvolver o uso da regra através de experiências diretas, regula o comportamento em relação aos outros, permite uma comunicação pessoal, restabelece o equilíbrio afetivo, permite experimentar papéis diferentes, facilita a tarefa do educador, que descobre estilos e modelos de comportamento da criança”.
A propósito, a socióloga e teóloga alemã Dorothee Solle exprimiu assim a busca da felicidade:
Como explicarei a uma criança o que é a felicidade? Não lhe explicarei: dar-lhe-ei uma bola para a fazer jogar.”.
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Com “o valor biológico do jogo”, Paolo Crepaz aponta as várias teorias sobre a utilidade biológica do jogo: “válvula de escape” das energias em excesso; robustecimento para treino em ordem à vida adulta (em contradição com o facto de o jogo decrescer na aproximação à idade adulta e os estímulos serem insuficientes); e treinamento para as dificuldades. E sustenta que os comportamentos lúdicos oferecem vantagens do ponto de vista biológico, caso contrário teriam sido aniquilados pela seleção natural.
Afirmando que o tempo despendido no jogo é diretamente proporcional às dimensões cerebrais do animal e inversamente proporcional à especialização, assegura que não há, na natureza, um animal que se entregue tanto tempo ao jogo como o homem por ser “o animal mais imaturo ao nascimento do ponto de vista neurológico (neotonia). Porque “o ser humano é o desajeitado cósmico”, o jogo oferece-se-lhe como o meio mais poderoso para lhe “fazer amadurecer e adaptar o cérebro neoténico imaturo ao ambiente, selecionando as conexões, as sinapses, que garantem esquemas motores e comportamentos eficazes para adaptar-se ao ambiente”. Assim, uma desvantagem imediata para o indivíduo, que o torna dependente e frágil, torna-se uma vantagem a prazo. Mesmo a nível biológico, pode dizer-se que a atividade motora e desportiva configura uma experiência formativa ou “um percurso que se funda não sobre o introduzir, mas sobre o educar” (no latim, “educere” e “educar”) e o fazer florir o que vive na pessoa.
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O nível biológico leva a equacionar o trinómio “jogo, desporto e corporeidade”. Com efeito, a corporeidade tem um valor fundamental, embora depreciado por vezes, que tornou tão difundida e popular a atenção prestada e a prestar à atividade física. Na verdade, como escreveu o cardeal Danneels, de Bruxelas, o ser humano “é, antes de tudo, espírito, pessoa única e livre, e é através do corpo que o seu espírito abre um caminho na matéria e na história”. E o francês Jean Giraudoux escrevia que “o desporto consiste em delegar ao corpo algumas das mais elevadas virtudes da alma”. Assim, o desporto, entendido como “jogo locomotivo para orientação motivacional intrínseca”, assume o papel de “manifestação ritualizada e organizada das expressões do espírito na corporeidade”, ou seja, de experiência que busca e desenvolve competências físicas, psicológicas e relacionais fundamentais para a formação da personalidade. Por conseguinte, o desporto é “askesis”, ou seja, experiência ascética, e é paideia (educação global) enquanto atividade de transformação do corpo e da alma.
Atentos a estes considerandos os gestores desportivos deveriam impedir qualquer tentativa de instrumentalização. Porém, embora o desporto queira aparecer e até ser como realidade em si mesmo e sem ligações de fé religiosa ou de interesses económicos e políticos, pelo menos ao nível das altas prestações, subjazem estas interferências. O desporto é hoje o negócio mais florescente do mundo e o produto mais vendível. E a história evidencia a sua instrumentalização para fins ideológicos: do romano “panem et circenses” para anestesiar as multidões ao empolgamento nazi e fascista, da ditadura argentina, dos mundiais de futebol, aos direitos humanos na China, das Olimpíadas, da cisão da ex-Jugoslávia ao Qatar dos tempos mais recentes.
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O subtítulo “o desporto à luz da doutrina cristã” lembra que os pensadores do cristianismo se concentraram mais nas questões éticas entre a mansidão evangélica e a competitividade desportiva do que na relação entre fé e desporto. Oferecem importantes pontos de reflexão as referências da 1.ª carta de Paulo aos Coríntios. Mas é original e interessante a ótica do pastor anglicano Lincoln Harvey que fala do desporto como “celebração da nossa contingência”, ou seja, do sentido, ao mesmo tempo, fugaz e eterno do nosso ser. E o ponto de vista do Papa Francisco, que chama ao desporto “metáfora da vida”, abre novos pontos de reflexão. A transferência das competências na área do desporto do Conselho Pontifício para os Leigos para o Conselho Pontifício da Cultura é significativa: o desporto é cultura.
E o congresso sobre desporto e fé “O desporto ao serviço da humanidade”, realizado no Vaticano em outubro de 2016, representa uma pedra angular neste sentido. Foi, como dizia o cardeal Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, ocasião de encontro, para debate conjunto (crentes e não crentes) dos grandes desafios da sociedade contemporânea e dos interesses partilhados das comunidades desportivas e religiosas do mundo. Intentou-se “lançar um movimento que inspire a pensar e agir segundo a ‘Declaração dos Princípios do Desporto ao Serviço da Humanidade’, com um conjunto de valores orientadores que articulam a influência combinada de desporto e fé”. São eles: a compaixão, que leva a dar força aos que são pobres e desfavorecidos; o respeito, que induz a reverência pelos adversários e a compreensão da sua cultura, bem como a condenação da violência no desporto, dentro e fora de campo; o amor, pois amar o desporto, que é para todos, leva a promover a participação fraterna e “permite a todos competir em condições iguais”; a iluminação, já que “o desporto tem o poder de transformar a vida e construir o caráter”; o equilíbrio, pois em cada fase da vida se joga por divertimento, saúde e amizade: e a alegria, pois desporto é sobretudo alegria, muito mais eficaz e visível no exercício que no vencer. O desporto bem poderá constituir o comércio e a indústria da paz!
Por fim, emerge, sobretudo para quem é cristãmente inspirado, a urgência de realçar e promover a beleza no desporto, a “estética”. Embora não seja viável não haver confronto no desporto, há que o apresentar como uma “via pulchritudinis”. Para tanto, todos, mas em especial os cristãos, devem questionar-se sobre o valor a reconhecer ao mundo do desporto, o relacionamento dos praticantes coma atividade desportiva – da atividade juvenil ao profissionalismo, sobre as expressões de fé no desporto, sobre a explicação das manifestações de fé, superstições e exorcismos no desporto e sobre se há uma fé incarnada no desporto e quais os seus pressupostos.
O desporto merece intensa, profunda e alargada reflexão.
2018.05.30 – Louro de Carvalho


terça-feira, 29 de maio de 2018

Altice já não comprará a TVI


A Autoridade da Concorrência (AdC) rejeitou os compromissos da Altice para a compra da TVI. A resposta está agora do lado da Altice, mas já ninguém espera que o negócio seja viável.
O grupo franco-israelita liderado por Patrick Drahi e Armando Pereira, que tinha comprado a PT, pretendia fazer uma integração vertical, com a Prisa, que controla a Media Capital, dona da TVI. Para tanto, anunciou a respetiva OPA a 14 de julho de 2017 por 440 milhões de euros.
Após conturbados e longos meses e com o processo na AdC, depois de ter passado na ERC, esperava-se a finalização com aprovação ou “chumbo”. A Altice já sabia desde fevereiro a natureza dos remédios exigidos pelo regulador, sobretudo em relação à possibilidade de “encerramento de mercados”, fórmula jurídica simplificada para explicar a possibilidade de a Altice impedir o acesso de outros operadores concorrentes, como a Nos ou Vodafone, a conteúdos de subscrição ou de aumentar de tal maneira os preços que, na prática, resultaria no mesmo. Ora, a Altice só respondeu no dia 30 de abril e com oito remédios comportamentais, que são impossíveis de monitorizar.
Os preditos remédios ou compromissos por parte da presumida adquirente foram: i) a autonomização dos negócios de distribuição de canais, conteúdos, publicidade e TDT, na ideia de que tais departamentos viessem a ser controlados por empresas distintas no grupo; ii) a disponibilização para implementar a oferta regulada de acesso à sua plataforma, por um período de 5 a 10 anos; iii) a não atribuição de exclusividade aos canais e novos canais da plataforma de televisão da Meo, ou seja, a garantia do acesso da concorrência aos canais que detém; iv) a não limitação futura do acesso aos serviços de operadores de televisão concorrentes; v) a continuidade da disponibilização da sua plataforma aos canais de operadores concorrentes da TVI e a sua não despromoção na grelha de canais; vi) a disponibilização dos canais publicitários da Media Capital aos concorrentes numa base não discriminatória “durante o período de duração dos compromissos”; vii) a restrição da mobilidade de trabalhadores entre a Meo e a Media Capital, para não haver risco de troca de informação sensível; e viii) a continuidade de dar acesso à TDT de forma não discriminatória e em condições de transparência de preço.
Estas oito “bem-aventuranças da boa vontade”, que alegadamente configuram os compromissos estruturais exigidos pela AdC à Altice para autorizar a compra da Media Capital, comportam riscos já elencados anteriormente por Miguel Almeida, da Nos, e Mário Vaz, da Vodafone – riscos de monitorização, riscos de incumprimento e insuficiência de especificações quanto às medidas propostas – pelo que os preditos compromissos da operadora são tidos por insuficientes pelas outras operadoras.
Para o conselho da AdC, presidido por Margarida Matos Rosa, os compromissos apresentados são de natureza apenas comportamental, quando se exigem medidas e “remédios” estruturais. Assim, os “remédios” apresentados foram considerados insuficientes “porque não protegem os direitos dos consumidores nem garantem a concorrência no mercado”.
Com efeito, regra geral, só com vendas de partes de negócio, mas essa possibilidade põe em causa a própria operação e fica de pé a questão como é que se garante que a Altice não vai encerrar mercados, não só na televisão por subscrição, mas na publicidade, nos Over The Top (OTT) ou na própria TDT?”.
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Em termos formais, a Altice poderá reformular ainda as medidas propostas para responder às exigências da AdC, mas diversas fontes asseguram que o negócio morreu, pois o que a AdC exige para admitir a operação é de tal ordem que, se a Altice ainda tem interesse no negócio, o que é duvidoso, não satisfará tais condições.
Recentemente, na Assembleia da República, Alexandre Fonseca, presidente da Altice Portugal, tinha dito que a Altice não estaria disponível para mudar os “remédios” apresentados. Esses remédios, apresentados sob a forma de compromissos, que a Nos e a Vodafone consideraram portadores de risco, foram rejeitados, de forma global, pelo regulador, por não protegerem os interesses dos consumidores. 
A decisão da AdC, que ainda não é a decisão final sobre o próprio negócio, foi comunicada, no dia 28, à Altice e cabe agora à operadora uma de duas respostas: apresentar novos remédios ou, simplesmente, desistir do negócio.
Oficialmente, a Altice, que se queixa de ter sabido da decisão através da comunicação social, remete uma resposta para os próximos dias, mas sabe-se que, salvaguardada qualquer evolução de última hora em contrário, deverá ser emitido um comunicado esta terça ou quarta-feira.
Na própria AdC, a convicção é a de que a Altice não apresentará qualquer alternativa de “remédios”, menos ainda na linha dos considerados indispensáveis para a aprovação do negócio. Não cabendo à Concorrência sugerir ‘remédios’ às empresas, os técnicos do regulador, no entanto, fazem cenários e antecipam condições que, tendo em conta o que está em causa, dificilmente serão viáveis para a Altice.
Duvida-se se nos últimos tempos a Altice ainda quereria mesmo comprar a Media Capital. Oficialmente, a administração da Altice Portugal fez várias e sucessivas declarações de empenhamento no negócio, mas os observadores estranharam o tempo que a empresa demorou a responder à Concorrência, por frisar publicamente existir no contrato de compra com os espanhóis da Prisa uma data-limite para a sua conclusão que já tinha sido ultrapassada.
Além disso, na semana passada, houve uma evolução que pode significar uma resposta às dúvidas sobre os reais interesses da Altice na Media Capital. Pressionada por um elevado nível de dívida, a Altice anunciou, em princípios de janeiro, a separação do negócio americano do europeu. E, a 22 de maio, dia em que a empresa começou a negociar em ex-dividendo na bolsa de Amesterdão, por força deste spin-off, Sebastien Soriano, presidente do regulador das telecomunicações francesas, declarou ao Le Monde estar aberto a novas fusões nas telecomunicações em França – o que foi considerado o suficiente para puxar pelos títulos da Altice, que chegaram a atingir mais de 50% em bolsa graças às perspetivas dos investidores em relação a uma possível venda da SFR, a telecom do grupo Altice em França.
A reestruturação da Altice, tanto do ponto de vista societário e de governação como do ponto de vista operacional, dá novo fôlego ao grupo franco-israelita junto dos investidores e a possibilidade de deixar cair um negócio no nosso país que estava contratado com um múltiplo que avalia a Media Capital em cerca de dez vezes o EBITDA que consegue gerar por ano poderá ser outra boa notícia nos mercados.
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A decisão da AdC já foi comunicada à empresa liderada por Patrick Drahi, que poderá avançar com novos compromissos para tentar fechar o negócio ou desistir da operação se considerar que não tem condições para apresentar uma nova proposta, como avançava o Dinheiro Vivo e como foi confirmado pelo ECO.
Dinheiro Vivo, que obteve a informação junto de fonte próxima do processo, mas sem a revelar, acrescenta que a Altice já foi informada desta decisão, podendo agora avançar com novos compromissos. Mas, se considerar que não tem condições para apresentar compromissos alternativos, poderá deixar cair o negócio de 440 milhões de euros. A AdC colocara, em fevereiro, o negócio de compra da Media Capital pelo grupo francês sob investigação aprofundada por considerar que a operação pode levantar obstáculos concorrenciais.
E, para responder às preocupações do regulador, a  Altice apresentou, no final de abril, os já referidos oito compromissos/remédios que incluem a autonomização de negócios de empresas distintas, a não exclusividade dos canais e a disponibilização na sua plataforma dos canais concorrentes da TVI. Mais o grupo de Drahi prometeu criar a figura independente do mandatário de monitorização para assegurar o cumprimento dos compromissos.
Contudo, o regulador entendeu que alguns dos remédios assumidos careciam de especificações, apresentavam riscos de monitorização e de eventual incumprimento, bem como de distorção de mercado. E considerou que a operação pode ter “impactos potencialmente negativos no desenvolvimento de novos conteúdos e modelos de negócio que envolvam, designadamente, a transmissão e o acesso a conteúdos audiovisuais através da internet”, como aponta o documento a que o Dinheiro Vivo teve acesso. Por outro lado, o passado recente da Altice não inspira propriamente confiança no cumprimento de regras comportamentais. Veja-se o caso da multa europeia de 125 milhões de euros por via do acesso a informação considerada confidencial da PT Portugal antes de a Comissão Europeia autorizar formalmente o negócio. Exigiam-se, pois, compromissos estruturais, que não chegaram.
Ademais, um relatório da Anacom – que abrange os incêndios de Pedrógão Grande, em 17 de junho de 2017, e os da região Centro, de 15 e 16 outubro –, indica que “apenas um operador mantinha ligações por restabelecer” a 11 de maio deste ano, isto é, a Altice. Estava por restabelecer a ligação de cerca de 1.300 clientes. A Lusa questionou, sem sucesso, a operadora sobre estes dados. Mas o presidente da Anacom explicou à agência, tendo em conta a justificação dada pela Altice ao regulador, que, até à data do relatório (11 de maio), cerca de 500 clientes recusaram “a solução de reposição da ligação que lhes tinha sido proposta”, pois, não se limitava a repor o serviço, mas a aumentá-lo instando à contratação de pacote plurivalente e não restrito à ligação telefónicaNos restantes casos, “a Meo aduziu não ter conseguido contactar os clientes” ou estar a ligação agendada para data posterior “por conveniência dos próprios clientes”, alguns dos quais não vivem permanentemente naquela zona. O responsável assegurou que “a Anacom vai continuar a fiscalizar e a acompanhar estas situações para garantir que não há nenhum cliente que, sem motivo, fique com as ligações por restabelecer”.
Por outro lado, a operadora estabeleceu uma rede tentacular de cal centers e batedores de portas cujos agentes passam a vida a infernizar os cidadãos e levam a firmar ou a alterar unilateralmente os contratos por formas e em condições verdadeiramente abstrusas.
Finalmente, como se disse, não é claro que a própria Altice ainda queira comprar a Media Capital. A reestruturação societária e de negócio internacional, a possibilidade de venda da SFR em França e a necessidade de redução da dívida do grupo poderão ajudar a explicar porque é que os compromissos propostos pela Altice ficaram claramente aquém do que se sabia serem as exigências da AdC. Por consequência, o negócio abortou em fase adiantada, pelo que, salvaguardada a hipótese e reviravolta inesperada, a Altice anunciará a desistência de modo formal ou informal, apresentando o respetivo boletim clínico, quiçá para bem do mercado e dos cidadãos.
2018.05.29 – Louro de Carvalho

“A presidenta” como sintagma nominal é mais antiga que “a presidente”


Desde os tempos da minha meninice, que também a tive, ouvia falar na presidenta da JACF e na presidenta, que era filha do presidente da junta, ou na presidenta, a mulher do mesmo. E confesso que nunca me incomodei muito com o assunto, dado que, regra geral estas palavras, nomes ou adjetivos terminados em “-nte” ou são dum só género gramatical, como dente (masculino), ente (masculino), mente (feminino), gente (feminino), consoante (feminino), vertente (feminino), lente (feminino), jusante (feminino), etc. ou comum de dois, como gerente (o/a), dirigente (o/a), lente (o/a), doente (o/a), paciente (o/a), comediante (o/a), componente (o/a), etc. ou ainda nomes diferentes do masculino e do feminino, como montante (com significados diferentes), etc.; e, se adjetivos, são uniformes. Temos ainda palavras invariáveis como mediante, consoante, rente, passante, somente, etc. e tantos advérbios terminados em “-mente”.
De modo semelhante ouvia falar nas “ajudantas” e nas “estudantas” em vez de “ajudantes” e “estudantes”, respetivamente, no feminino. Obviamente que estas flexões eram de uso popular.
Hoje, apesar de estar consagrada a forma feminina para palavras como poetisa, mestra, juíza, e ministra, as senhoras querem ser poetas, mestres, juízes e houve alguma relutância em fazer delas ministras. Lembro-me de que Vasco Gonçalves, falando de Maria de Lurdes Pintassilgo, dizia o nosso “Ministro dos Assuntos Sociais”. Mas havia nos conventos femininas a mestra de noviças e a ministra. Em latim há “magister” (mestre) e “magistra” (mestra) como “dominus” (dono, senhor) e “domina” (dona, senhora. Recorde-se que senhor era uniforme no galaico-português).
Também adjetivos terminados em “-ês” eram uniformes. Por isso é que nós dizemos, em vez de “portuguesamente”, dizemos “portuguesmente”. Por outro lado, palavras como “fim” (era feminina e passou a masculina: ainda se ouvem registos como “lá p’ra fim do mundo) mudaram de género    
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Que têm em comum vocábulos como “caminhante”, “pedinte”, “agente", “fluente”, “gerente”, “dirigente” etc.? O ponto comum é a terminação “-nte”, de origem latina, que ocorria no particípio presente dos verbos latinos e funcionava como adjetivo praticamente uniforme (uniforme em relação ao masculino e ao feminino; e diferente no neutro, em que nominativo, vocativo e acusativo mantêm a forma igual) e que subsiste em palavras derivadas de verbos portugueses, italianos, espanhóis... (na classe de nome, adjetivo, advérbio e preposição). Assim, termos “presidente”, “dirigente”, “gerente” – entre muitos outros – iguais nestas três línguas, que nasceram do mesmo ventre. E a terminação “-nte” contém a noção de “agente”, pelo que gerente é quem gere, presidente é quem preside, dirigente é quem dirige e assim por diante.
Normalmente essas palavras têm forma fixa, isto é, são iguais para o masculino e para o feminino; o que muda é o artigo, outro determinante ou um quantificador (o/a gerente, o/a dirigente, o/a pagante, o/a pedinte), como já foi dito. Em alguns (raros) casos, o uso fixa como alternativas as formas exclusivamente femininas, em que “e” final dá lugar a “a”. Um exemplo é “parenta”, forma exclusivamente feminina e não obrigatória (pode-se dizer, por exemplo “minha parente” ou “minha parenta”). Outro é justamente “presidenta”: pode-se dizer “a presidente” ou “a presidenta”.
Por isso, se as senhoras que exercem cargos públicos, na administração de topo de empresas ou de órgãos sociais de instituições querem ser presidentas, que o sejam, pois têm toda a legitimidade gramatical, política e gestionária para tal. Não esqueçamos, entretanto, que o uso constitui a lei máxima da legitimidade a língua e este é obra da sociedade regida politicamente.
Aliás, acontece coisa parecida com o termo “infante”, da mesma família de “infância”. “Infante” é “aquele que não fala” (porque ainda não aprendeu a falar). Esta palavra é outra que é igual nos três idiomas neolatinos já mencionados (italiano, espanhol e português) e admite o feminino “infanta”, pelo menos para as filhas de reis e rainhas. E são infantes os militares que andam a pé e formam a infantaria. Ora, porque têm a função de avançar no terreno, têm que o fazer em silêncio para o inimigo não os topar enquanto avançam. E, se têm de combater, devem fazê-lo preferencialmente de baioneta calada.
Outro caso interessante: o da palavra “fluente”. Diz-se que alguém tem um inglês “fluente” porque “fluente” (que também termina em “-nte”) é “o que flui”, isto é, o que corre como o líquido. Ora, como os líquidos fluem, a língua flui da boca de quem se exprime com facilidade.
Ainda outro caso. Como se disse, “gerente” é aquele que gere. Ora, a forma verbal “gere” é a 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo de “gerir”, quase sinónimo de “administrar”. O presente do indicativo na voz ativa é: “eu giro, tu geres, ela/ele gere, nós gerimos, vós geris, elas/eles gerem”. E o presente do conjuntivo é “eu gira, tu giras, ela/ele gira, nós giramos, vós girais, elas/eles giram”. Não quer dizer que, necessariamente, ela seja gira ou elas sejam giras!
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Quando Dilma Roussef foi eleita para a chefatura do Estado Brasileiro, fez saber publicamente que pretendia ser designada como “Presidenta”, o que trouxe alguns engulhos a políticos e linguistas. Semelhante atitude quis assumir Assunção Esteves, em Portugal, quando os deputados, depois de rejeitarem Fernando Nobre, a escolheram para presidir à Assembleia da República. Todavia, entre nós o caso foi mais ridicularizado porque a titular deste cargo, que a tornou a segunda figura na hierarquia do Estado tinha outras pedras linguísticas (como “completude” e “conseguimento”) que eram selecionadas para crítica, sobretudo graças à utilização de palavras, ainda que bem constituídas, não estavam consagradas pelo uso. 
Ora, a palavra “presidenta” é um feminino tão correto para “presidente” como a palavra “presidente”, pelo que tanto se pode considerar “presidente” um nome comum de dois, distinguindo-se o género pelo contexto e pelo determinante ou pelo quantificador, como ter o seu feminino em “presidenta”. Tal utilização é aceite pelas gramáticas da língua portuguesa no Brasil, está presente em muitos dicionários portugueses há séculos e consta em quase todos os dicionários brasileiros e portugueses atuais. E, para lá da correta expressão “a presidenta”, a par da expressão “a presidente”, a expressão “a presidenta” é, segundo alguns, mais antiga e tradicional na língua portuguesa do que “a presidente”.
José Sarney, ex-presidente, que antes quer ser recordado como escritor e membro da Academia Brasileira de Letras do que como senador, governador ou Presidente da República, escreveu alguns meses após a eleição de Dilma Roussef em 2010:
Presidenta, segundo o ‘Aurélio’, é ‘mulher que preside ou mulher de um presidente’, distinta de presidente, que é ‘pessoa que preside’ ou ‘o Presidente da República’. O ‘Houaiss’ fala em ‘mulher que preside (a algo)’ ou ‘mulher que se elege para a presidência de um país’ para definir presidenta e, para presidente, em ‘título oficial do chefe do governo no regime presidencialista’ – substantivo de dois géneros. A forma tradicional, comum de dois géneros, não tem nenhum sentido discriminatório. Mas presidenta tem mais um peso político que linguístico.”.
J. Mattoso Câmara Jr. (vd “O nome e suas flexões”. In: Estrutura da língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1984, p.77) refere sobre a derivação flexional que consiste em substituir o morfema -e pelo morfema -a:
Já os nomes, que são essencialmente substantivos, podem às vezes possuir um feminino em -a mesmo quando são de tema em -e (ex: mestre, mestra)”.
E, no tocante à tradição gramatical, Evanildo Bechara (vd Moderna Gramática Portuguesa, ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 135) afirma, em relação à formação dos substantivos femininos a partir de um substantivo masculino terminado em e: “Os terminados em -e, uns há que ficam invariáveis, outros acrescentam –a depois de suprimir a vogal temática”. O autor traz como exemplos: “alfaiate – alfaiata, infante – infanta, governante – governanta, presidente – presidenta, parente – parenta e monge – monja”.
Celso Cunha e Luís Lindley Cintra (vd Nova Gramática do Português Contemporâneo, 3.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 194), ao referirem-se aos nomes terminados em -e, afirmam que alguns na formação do masculino para o feminino à semelhança da troca do -o por -a, ocorre à troca do -e por -a. Como exemplos apresentam: elefante/elefanta, governante/governanta (sobretudo quando significa a que governa casa ou instituição), infante/infanta, mestre/mestra, monge/monja, parente/parenta. Os referidos autores trazem ainda a seguinte observação: “Os femininos giganta (de gigante), hóspeda (de hóspede) e presidenta (de presidente) têm ainda curso restrito no idioma”.
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Assim, como assegura o professor Pasquale, porque a palavra presidenta está hoje em quase “todas as gramáticas e dicionários portugueses e brasileiros”, os gramáticos contemporâneos, concordam: “pode-se dizer a presidente ou a presidenta”.
As gramáticas portuguesas e brasileiras tradicionais – como a Nova Gramática do Português Contemporâneo, do brasileiro Celso Cunha e do português Lindley Cintra, ou a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara – também concordam: 
Quanto aos substantivos terminados em -e, uns há que ficam invariáveis (amante, cliente, doente, inocente), outros formam o feminino com a terminação em “-a”: alfaiata, infanta, giganta, governanta, parenta, presidenta, mestra, monja. Observação: ‘governante’, ‘parente’ e ‘presidente’ também podem ser usados invariáveis no feminino.”.
Presidenta” vem com entrada no Dicionário Aurélio desde a sua primeira edição, em 1975; consta no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras desde a 1.ª edição, em 1932; vem com entrada no Dicionário da Academia Brasileira de Letras; e estava já no 1.º Vocabulário Ortográfico sancionado pela Academia das Ciências de Lisboa, Portugal, em 1912. Hoje, “presidenta” está em quase todos os dicionários brasileiros e portugueses – como o Aurélio, o Houaiss e o Michaëlis, com o significado de “mulher que é a chefe de governo de um país de regime presidencialista”. Figura no Dicionário Ilustrado, coeditado pela Porto Editora e pelo Público em 2004 (em que também figuram “consulesa” e “parenta”) e no Dicionário Completo da Língua Portuguesa, da Texto Editores (em que também figura “parenta”) – com o significado de “mulher que reside”; e figura no Novo Aurélio da Língua Portuguesa, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António Morais Silva, no Dicionário da Língua Portuguesa, de Francisco Torrinha (em que também figuram “consulesa”, “elefanta” e “parenta”) – com o significado de “mulher que reside” e “mulher de presidente”. O Novo Dicionário Integral da Língua Portuguesa, da Texto Editores (que tem “parenta” e “consulesa”), não regista “presidenta”. Já o Dicionário da Porto Editora, de 1998 e de 2011, regista “presidenta” como do âmbito popular no sentido de “mulher que preside” e popular em sentido depreciativo enquanto “esposa do presidente”. E o Dicionário Essencial da Língua Portuguesa (Porto Editora Seleções do Reader’s Digest, de 2002, em que também figuram “consulesa”, “elefanta” e “parenta”) regista, como neologismo, “presidenta” com o significado de “mulher que reside” e “mulher de presidente”. Há registo um pouco para todos os gostos! 
Presidenta já aparecia também em textos de bons escritores há dois séculos: Machado de Assis, por exemplo, usa “presidenta” em Memórias Póstumas de Brás Cubas, sua obra-prima, publicada em 1881. Em 1878, o português “O Universo Ilustrado narrava o enterro fictício de uma “presidenta”; em 1851, a “Revista Popular de Lisboa” referia-se à “presidenta de uma reunião. Ainda em Portugal, podemos encontrar “presidenta” no primeiro vocabulário oficial da língua portuguesa, elaborado por Gonçalves Viana em 1912.
“Presidenta” está também no vocabulário do português Rebelo Gonçalves (1966), e, de quase um século antes, no Dicionário de Português-Alemão de Michaëlis (1876), no de Cândido de Figueiredo (1899), no Dicionário Universal, da Texto Editores (1995), na 1.ª edição do Dicionário Lello (1952) e na 1.ª edição do Dicionário da Língua Portuguesa (também de 1952).
Na verdade, ainda antes disso – no ano de 1812 (antes ainda da independência do Brasil), a palavra “presidenta” já aparece dicionarizada: está no Dicionário de Português-Francês de Domingos Borges de Barros, que viria a ser diplomata e senador. (vd versão digitalizada do dicionário, de 1812).
Também no galego e no espanhol, presidenta é considerado o feminino mais gramaticalmente correto de “presidente“.
Como se pode ver em dicionários e vocabulários oficiais anteriores a 1940 até metade do século XX a palavra “presidente” era nome exclusivamente masculino e “presidenta” era o único feminino aceite para “presidente”. Por outras palavras: apenas a partir de 1940 a forma “a presidente” passou a ser aceita por gramáticos e dicionaristas portugueses e brasileiros. Ou seja: a palavra “presidenta”, dicionarizada desde 1812, é mais antiga e tradicional em português que a forma neutra “a presidente”, apenas dicionarizada a partir de 1940.
A passagem, no século XX, de presidente” como forma exclusivamente masculina para forma neutra baseou-se no processo de “neutralização de género” por que passaram e vêm até hoje passando vários outros nomes portugueses – como “a parente”, que antes antes só se dizia “parenta” –, sobretudo profissões – como “a oficial” (que antes só se dizia “oficiala”), “a cônsul” (que antes só se dizia “consulesa”) ou “a poeta” (que antes só se dizia “poetisa”).
A Revista “Veja deixou de usar o termo “presidenta” quando Dilma Rousseff, chegada ao poder, disse gostar de ser chamada assim. Até aí, usava “presidenta” por exemplo em edições da década de 1970 (ao referir-se à então presidenta deposta da Argentina), de 1980, 1990 e mesmo 2000. Do mesmo modo, anos antes de o PT chegar ao poder, os demais órgãos de imprensa usavam “presidenta”: a Folha de S. Paulo por exemplo, em 1996 (“Secretária de Turismo de Alagoas e presidenta da Fundação), 1997 (“Segundo a presidenta da CPI, deputada Ideli Salvatti”), 2003 (“A presidenta da CDU e líder da bancada parlamentar, Angela Merkel, já deixou claro que seu partido não se dispõe a salvar a situação para o governo de Berlim”), etc.; “O Estadão”, em 2004 (“Empresária de Shakira era presidenta da  companhia); em 2008 (disse a presidenta da Plataforma, Maribel Palácios”, etc.), etc.
Em suma: Ambas as formas “a presidenta” ou “a presidente” são gramaticalmente corretas e equivalentes, pelo que é indiferente o seu uso E, ao invés do que supõem muitos, “a presidenta” não é informal ou invenção recente nem coisa de feministas, esquerdistas ou pedantes. Ao invés, como nome e a formar sintagma nominal é a forma mais antiga e tradicional em português.
2018.05.28 – Louro de Carvalho