sexta-feira, 11 de maio de 2018

Diferentes maneiras de dizer Fátima


A primeira Peregrinação Internacional Aniversária de 2018 ao Santuário de Fátima, que se inicia hoje, dia 11, presidida pelo Arcebispo emérito de Hong Kong, cardeal John Tong, segue o tema deste ano pastoral em Fátima: “Tempo de graça e misericórdia: dar graças pelo dom de Fátima”, que sublinha a consciência do dom recebido, iniciativa gratuita e amorosa de Deus. Enquadrado no que já foi definido pelo reitor do Santuário de Fátima como uma viragem a Oriente, no âmbito do qual, em outubro, será a vez de o bispo de Hiroshima (Japão) estar na Cova da Iria.
A propósito da peregrinação e do seu tema pronunciaram-se vários especialistas, pronúncias de cujo teor aqui se faz súmula. 
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1. “Fátima não é unívoca, é plural” – diz à agência Ecclesia Paulo Fontes, diretor do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), da Universidade Católica Portuguesa (UCP), para quem o caráter cada vez mais global de Fátima coloca questões ao tipo de experiências religiosas ali oferecidas, sendo esta “uma boa ocasião para uma reflexão mais aturada do uso, da forma de estar, de rezar e de celebrar um santuário”. E realça que hoje “Fátima não é unívoca, é plural, porque representa para cada um que vem coisas muito diferentes”. E o professor auxiliar da Faculdade de Teologia da UCP encontra justificação para o facto:
Hoje o que falta muitas vezes é uma capacidade de aprofundar, de levar mais longe, porque a sociedade está aberta a que esse lugar, esse papel da religião, e concretamente do cristianismo possa ser trabalhado a nível das sociedades”.
Em 2017, ano de Centenário das Aparições e da vinda do Papa Francisco, o Santuário mariano recebeu perto de 10 milhões de peregrinos, com destaque para a subida do número de visitantes asiáticos, em particular da China, com cerca de 100 grupos diferentes, mas também da Coreia do Sul, do Vietname e das Filipinas. No entanto, o maior contingente de peregrinos continua a chegar da Europa e do continente americano, de países como Espanha, Itália, Polónia, EUA, Brasil e Argentina. Esse ano foi também de ligação aos países da antiga União Soviética, muito presente na mensagem de Fátima. Durante a peregrinação internacional aniversária de julho, vieram ao Santuário cerca de 70 peregrinos provenientes das ex-repúblicas soviéticas, com as celebrações a serem presididas pelo arcebispo de Moscovo, Dom Paolo Pezzi.
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2. “Vitalidade do Santuário parte dos peregrinos” é asserção do Investigador Alfredo Teixeira, que fala em fenómeno “interclassista”, com dupla dimensão pessoal e comunitária, que tem sabido acompanhar as transformações sociais e religiosas. O antropólogo português, responsável pelo Instituto de Estudos de Religião (IER) da UCP, em declarações à agência Ecclesia, sustenta que a vitalidade de Fátima se liga à capacidade de abrir-se à história de cada peregrino e de incorporar as transformações que acompanham a vida das pessoas. E explica:
O santuário, só em parte, é construído pela própria instituição. Grande parte da sua construção, do que nós chamamos o Santuário de Fátima, é feita pelos próprios peregrinos com as suas histórias, com o que transportam nas suas orações e práticas.”.
Para o investigador, esta dimensão humana tem renovado o Santuário de Fátima e, “na medida em que Fátima mantiver esta capacidade de se abrir à construção do próprio peregrino, de ser um santuário construído em parte pelo peregrino, terá condições de futuro”. A Cova da Iria apresenta-se como um local interclassista: as pessoas “podem chorar coletivamente” e viver “a sua vulnerabilidade” numa dupla dimensão pessoal e de conjunto; cada história encaixa na “plasticidade” do Santuário. Estes são fatores que, para Alfredo Teixeira, mostram o fenómeno “complexo” de Fátima. E o investigador precisa:
Também a partir destas diferenças as pessoas olharão e praticarão Fátima de forma diferente. Mas a plasticidade, o facto de ser muitas coisas, permite que pessoas de origens muito diferentes encontrem ali qualquer coisa. Fátima é, de longe, o contexto mais plural que podemos encontrar em Portugal.”.
O especialista diz que Fátima acompanha as “transformações das identidades nas sociedades complexas” de hoje, pelo que a sua importância vai “fortalecer-se” no “trânsito cultural” que a sociedade portuguesa enfrentou nas últimas décadas fruto da “modernização, urbanização, industrialização, do fluxo de novos comportamentos e ideias decorrentes da migração”, com consequências “nos imaginários e práticas religiosas”. E discorre:
As pessoas que nos anos 60 se deslocaram para as zonas periféricas ou periurbanas em Lisboa chegaram a Santa Apolónia de comboio e não encontraram aqui o Deus da sua terra. Foi necessário encontrar outros lugares simbólicos que acompanhassem o processo de reidentificação num outro contexto. Fátima ofereceu isso. E. pela importância de Fátima na emigração nas comunidades portuguesas, conseguimos perceber essa dimensão.”.
Segundo a observação de Alfredo Teixeira, em Fátima “não se encontram” os indicadores de “erosão de identificação religiosa” que se podem perceber na “prática dominical católica”. Para o docente da UCP, que diz ser, para a Igreja Católica, o maior desafio a perceção da identidade do peregrino que vai a Fátima, fruto duma emancipação de pertença, fica evidente:
A possibilidade de alguém viver a sua identidade religiosa já não a partir do que é tradicional – que é a inscrição numa comunidade e a sua vivência religiosa a partir de uma pertença –, passarmos a ter uma vivência religiosa que tem como escala o longo curso da sua vida, onde alguns momentos fortes do ponto de vista religioso, como uma peregrinação, vão ser os grandes articuladores dessa identidade, mas num forte distanciamento a outras dinâmicas comunitárias”.
Alfredo Teixeira assinala  na receção às palavras do Papa Francisco em Fátima, por ocasião da sua visita de 2017, mudanças nas práticas devocionais e a falta de articulação pastoral.
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3. Uma “experiência de fé coletiva” que continua a inspirar o mundo bem podia constituir um rótulo emblemático de Fátima. Com efeito, a italiana Teresa Bartolomei – membro do Conselho de Direção do Centro de Investigação em Estudos de Teologia e Religião (CITER), da UCP em Lisboa, e investigadora que analisa Santuário à luz da visita do Papa em maio de 2017 – salienta, em entrevista à Ecclesia, que “seria errado ficar apenas pela dimensão mediática” que a passagem do Papa argentino significou há um ano, enquanto “fenómeno das massas”.
Considerando a peregrinação aniversária de 12 e 13 de maio uma ocasião para revisitar a vinda de Francisco ao Santuário, a investigadora adianta que o Papa legitimou, pelas suas mensagens, uma “experiência de fé coletiva”, nascida da “intuição religiosa popular”, que continua hoje a inspirar o mundo a viver as dimensões da “misericórdia” e da “humildade”; e que, ao mesmo tempo, quis mostrar uma Igreja Católica que surja diante das pessoas “não como vencedora e dominadora”, mas feita “de homens que se põe nas mãos de Deus”, que, neste caso por intercessão de Nossa Senhora, “pedem a Deus a salvação porque não são autossuficientes”. Como afirmou o Papa argentino no Santuário, “sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do carinho”.
Para a investigadora do CITER, frases como esta sublinham o cariz contracorrente da mensagem de Fátima, num tempo em que a sociedade carece de exemplos de “solidariedade” e “inclusão”; e responsabilizam os cristãos a afirmar-se como “testemunhas não de condenação, mas de abertura e de diálogo” com o mundo. Ademais, segundo aquela especialista, “esse momento de cada cristão ser fator de reconciliação, de conversão, de acolhimento é essencial e representa um passo em frente, não na atualização da mensagem, mas na atualização da nossa receção da mensagem”. Por outro lado, em maio de 2017, Francisco fez questão de “suplicar a paz e a esperança” para os cristãos e para a sociedade em geral, “de modo especial para os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados”. E denunciou o atual contexto de “indiferença” que cega o coração humano e “agrava a miopia do olhar” perante as dificuldades dos irmãos. Assim, Teresa Bartolomei sustenta:
Fátima torna-se importante para todos nós nos momentos de necessidade, de incerteza, de dor. E é esse encontrarmo-nos pequeninos perante a graça de Deus, na necessidade perante Deus, que nos torna também capazes de aceitar as fragilidades e as pobrezas dos outros.”.
E considera esta referência a Fátima, enquanto refúgio para “os problemas e esperanças” dos homens e mulheres deste tempo, como outro “momento importantíssimo em que o Papa reconhece essa beleza de uma intuição da religiosidade popular”.

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4. Fátima vive hoje “um desafio fascinante de reinterpretação”. António Martins, investigador da UCP, destaca o “contributo renovador” deixado há um ano pelo Papa, para dizer que Fátima vive um “desafio fascinante de reinterpretação” à luz dos novos tempos.
Este membro do CITER considera este “recentrar” da Mensagem de Fátima na “narrativa primeira, fundadora do acontecimento das Aparições”, visível “na reflexão que se vai produzindo hoje” a partir do Santuário, “quer do ponto de vista teológico (de rigor mais científico), quer do ponto de vista da espiritualidade para alimentar a experiência crente dos fiéis”.
Martins baseia-se num estudo que o CITER está a promover sobre as publicações feitas entre 2015 e 2017, na caminhada do primeiro centenário das Aparições. Para o investigador, assiste-se atualmente ao esforço de “despojamento” da mensagem de Fátima, de tudo o que são leituras que surgiram para responder a determinados desafios da História e do mundo ao longo dos últimos 100 anos, que hoje estão “ultrapassados” e “não têm pertinência”, por exemplo, como “toda uma linguagem profundamente ideológica, anticomunista, antimarxista – à volta da famosa frase da conversão da Rússia – e o que isso significou no contexto da Guerra Fria e da luta em relação à afirmação da violência das perseguições em países de Leste”.
O especialista em Teologia Antropológica destaca, neste aspeto, “o contributo renovador que o Papa deixou” há um ano em Fátima, a 12 e 13 de maio, nas comemorações do Centenário das Aparições – fundamentalmente, no que toca à “revalorização e refontalização de Fátima” no que foi “a presença ou manifestação de Nossa Senhora” na Cova da Iria e no que disse aos pastorinhos Francisco, Jacinta e Lúcia. Ao dizer a frase ‘Temos Mãe’, o Papa frisou junto dos peregrinos que eles vão ao Santuário ao encontro “não de uma senhora milagreira, mas de alguém que envia as pessoas constantemente para o seu Filho”, Jesus Cristo.
Para o docente da UCP, esta posição papal marcou posição contra a que pode ser a “excessiva religiosidade espontânea” ou “reinterpretação piedosa” e “popular” de Fátima, “que tem os seus riscos de deriva”, para a recentrar “na mensagem evangélica”. E, segundo Martins, “isso constitui, para o presente e para o futuro, um profundo desafio teológico e pastoral”.
Neste sentido, o CITER promove, para 22 de maio, um simpósio sobre o Santuário de Fátima, intitulado ‘Centenário de Fátima: momento de leitura plural’ – com início previsto para as 9,15 horas, no Auditório Padre José Bacelar e Oliveira, na UCP em Lisboa. No painel de debate estarão oradores como José Pedro Angélico, Teresa Bartolomei, José Jacinto de Farias, Pedro Feliciano, Paulo Fontes, Alexandre Palma, Sérgio Pinto, Alfredo Teixeira e Domingos Terra. E, de acordo com António Martins, que participará neste encontro, o objetivo será refletir sobre um fenómeno, Fátima, que se centrou na experiência de três pastorinhos, três crianças, mas que tem sido “um acontecimento em sucessiva reinterpretação”. Este académico evoca o contexto de Lúcia, a mais velha, que “à medida que foi vivendo novas situações”, como “o contexto da guerra civil de Espanha” ou a “formação com as irmãs Doroteias”, foi “reinterpretando a experiência originária, fundadora de 1917, com novas aquisições linguísticas”.
Martins, para quem estas “diferentes narrativas são um desafio hermenêutico, porque, de vez em quando, se encontram contradições, alterações”, sustenta”:
Uma coisa é a experiência ali, no lugar, no tempo, no momento, outra coisa é o dizer dessa experiência através da memória, na elaboração da linguagem”.
E o especialista completa:
Fátima é uma experiência de fé, protagonizada por aqueles três videntes, mas ao mesmo tempo se oferece a sucessivas reinterpretações e por isso o nosso título: Fátima – Um acontecimento interpretativo plural”.

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5. Viragem a Oriente e reconhecimento de santidade de várias figuras ligadas ao Santuário prova “atualidade” das Aparições. É assim que o Padre Carlos Cabecinhas, reitor do Santuário de Fátima, perspetiva peregrinação aniversária de 12 e 13 de maio, considerando que esta peregrinação aniversária internacional abre um novo ciclo de vitalidade para o recinto de oração e para a difusão da Mensagem. Em entrevista à Ecclesia, o reitor destaca dois fatores marcantes do ano: o interesse pelos novos santos Francisco e Jacinta; e a presidência às celebrações pelo arcebispo de Hong Kong. A canonização dos Pastorinhos é fruto saído da visita do Papa ao recinto, no Centenário das Aparições, em maio de 2017 – um acontecimento que, de acordo com o reitor, trouxe “um desafio enorme” para o Santuário, em primeiro lugar, pelos “novos horizontes” que abriu para a difusão da espiritualidade mariana, enquanto espaço para uma proposta de “santidade” mais “próxima” das pessoas, no tempo e no espaço, a partir da simplicidade de vida de duas crianças. E, a este respeito, refere o sacerdote:
Eu recordo que Francisco e Jacinta, os santos Francisco e Jacinta, são os mais jovens santos canonizados pela Igreja, não-mártires. Isto é, com eles abriu-se uma página nova na santidade, na forma como a Igreja encara a própria santidade.”.
Para o Padre Cabecinhas, o reconhecimento prestado pela Igreja a Francisco Marto e a Jacinta Marto, a par de outras figuras como a religiosa Luiza Andaluz e o cónego Manuel Formigão, tem trazido “uma nova aproximação à mensagem de Fátima”. Estes dados representam mesmo “a maior prova da atualidade de Fátima” e das Aparições, 100 anos depois. E realça o reitor:
Nós falamos de Luiza Andaluz e Manuel Formigão, mas poderíamos falar de tantos outros, já com processos a decorrer, que se reviram em Fátima, que encontraram em Fátima precisamente orientação para a sua vivência exemplar como cristãos”.
A peregrinação aniversária de maio é presidida pelo arcebispo emérito de Hong Kong – facto explicado pelo Santuário com o aumento verificado, nos últimos anos, do número de peregrinos provenientes da Ásia, em especial da China (que tem vindo a “trazer cada vez mais” grupos). E, em outubro virá a Fátima o bispo de Hiroxima, no Japão, Dom Alexis Mitsuru Shirahama, como reconhecimento de um continente onde o cristianismo está a florescer.
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Em suma, Fátima surge com a atualidade que lhe é emprestada pela pluralidade e pela capacidade de acompanhamento dos fenómenos humanos, cada vez mais universais.
2018.05.11 – Louro de Carvalho

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