quarta-feira, 2 de maio de 2018

Um gesto e duas interpretações


Generalizou-se o hábito de os participantes na celebração eucarística que não se abeiram da mesa da comunhão se sentarem durante a distribuição do Corpo e Sangue de Cristo na hóstia consagrada, a partir do momento em que o celebrante e/ou os demais ministros da comunhão (ordinários ou extraordinários) iniciam o desenvolvimento desta atividade. Também se generalizou esse hábito para os comungantes depois de terem observado uns momentos de recolhimento de pé ou ajoelhados.
Porém, quando o sacerdote ou um ministro da comunhão passam com a píxide ou píxides (vasos sagrados em que se guardam as hóstias consagradas sobejantes da celebração, devidamente acondicionados no sacrário) a caminho do altar do sacrário (ou estrutura equivalente onde se localiza o sacrário) a proceder à guarda da sagrada reserva, todos costumam levantar-se e permanecer em pé até perderem de vista tal passagem e os demais até o ministro fechar o sacrário.  
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Entretanto, num dos domingos em que estive na missa, tendo os fiéis tomado a postura atrás descrita, o sacerdote celebrante interveio para dizer que, embora estivessem a fazer o que prescreve a liturgia, deviam reparar que o Cristo que passa na píxide é o mesmo que haviam comungado a partir do altar da missa. E, insistindo que não negava que estivessem a fazer segundo o que está prescrito, disse que, sempre que isto acontece, fica sobressaltado.
Obviamente que o sacerdote em referência dispõe habitualmente dum discurso muito profundo em que habitualmente a razão está do seu lado, até pela incidência a prática que pretende que a fé e a doutrina tenham na vida de cada um e do pulsar da comunidade. Todavia, dá a impressão de que se move um pouco por estados de alma e a forma direta como diz as coisas ora é extremamente acolhedora ora sabe a alguma agressividade. Depois, quando tenta mudar a estrutura morfossintática de algumas fórmulas que exigem uma resposta dos participantes, deixa-os um pouco hesitantes, por exemplo, quando diz “o Senhor está (em vez de “esteja”) convosco” ou “A paz do Senhor já está (em vez de simplesmente “esteja”) convosco”.   
Tal advertência como a acima apontada induziu-me a consultar a tradução da 3.ª edição típica da IGMR (Instrução Geral do Missal Romano), em especial os seus números 42, 43 e 44, que versam sobre “os gestos e atitudes corporais” durante a celebração da Missa.
Nos termos do n.º 42, “os gestos e as atitudes corporais” do sacerdote do diácono dos ministros e do povo visam a beleza e a nobre simplicidade de toda a celebração, a compreensão do significado verdadeiro e pleno das suas diversas partes e a participação de todos. Para tanto, “deve atender-se ao que está definido por esta Instrução geral e pela tradição do Rito romano, e ao que concorre para o bem comum espiritual do povo de Deus, mais do que à inclinação ou arbítrio particular”. A atitude comum do corpo, que os participantes devem observar, “é sinal de unidade dos membros da comunidade cristã reunidos para a sagrada Liturgia: exprime e favorece os sentimentos e a atitude interior dos participantes”.
Por sua vez, o n.º 43 especifica os momentos para as diversas atitudes corporais. A atitude corporal normal na celebração eucarística é estar de pé.
“Assim, os fiéis estão de pé: desde o início do cântico de entrada ou enquanto o sacerdote se encaminha para o altar, até à oração coleta, inclusive; durante o cântico do Aleluia, que precede o Evangelho; durante a proclamação do Evangelho; durante a profissão de fé e a oração universal; e desde o convite ‘Orai, irmãos’, antes da oração sobre as oblatas, até ao fim da Missa, exceto nos momentos adiante indicados.
“Estão sentados: durante as leituras que precedem o Evangelho e durante o salmo responsorial; durante a homilia e durante a preparação dos dons ao ofertório; e, se for oportuno, durante o silêncio sagrado depois da Comunhão.
“Estão de joelhos durante a consagração, exceto se razões de saúde, a estreiteza do lugar, o grande número dos presentes ou outros motivos razoáveis a isso obstarem. Aqueles, porém, que não estão de joelhos durante a Consagração, fazem uma inclinação profunda enquanto o sacerdote genuflete após a Consagração.
“Compete, todavia, às Conferências Episcopais, segundo as normas do direito, adaptar à mentalidade e tradições razoáveis dos povos os gestos e atitudes indicados no Ordinário da Missa. Atenda-se, porém, a que estejam de acordo com o sentido e o caráter de cada uma das partes da celebração. Mantenha-se louvavelmente, onde o haja, o costume de o povo permanecer de joelhos desde o fim da aclamação do Sanctus até ao fim da Oração eucarística, e antes da Comunhão, quando o sacerdote diz ‘Eis o Cordeiro de Deus’.
“Para se conseguir a uniformidade nos gestos e atitudes do corpo na mesma celebração, os fiéis devem obedecer às indicações que, no decurso da mesma, lhes forem dadas pelo diácono, por um ministro leigo ou pelo sacerdote, de acordo com o que está estabelecido no Missal.”.
E o n.º 44 adverte que, entre os gestos, se contam também “as ações e as procissões do sacerdote ao dirigir-se para o altar com o diácono e os ministros; do diácono, antes da proclamação do Evangelho, ao levar o Evangeliário ou Livro dos evangelhos para o ambão; dos fiéis ao levarem os dons e ao aproximarem-se para a Comunhão”, convindo que “estas ações e procissões se realizem com decoro, enquanto se executam os cânticos respetivos, segundo as normas estabelecidas para cada caso”.
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Ora, pela leitura da IGMR, durante a Comunhão, nem os comungantes nem os que não se abeiram da Comunhão deveriam estar sentados, mas em pé até ao términus da distribuição da Comunhão, a não ser nos casos em que a saúde e o cansaço recomendem a cada um outro modo de proceder. Obviamente, no tempo da distribuição da Comunhão inclui-se o retorno da píxide ao sacrário, em que os fiéis deviam permanecer de pé. Por outro lado, os fiéis que não estão impedidos de o fazer devem aproximar-se da Comunhão em sistema de cortejo ou em fila, fazer uma reverência prévia à receção da partícula, comungar diante do ministro e voltar ao seu lugar – devendo providenciar-se à distribuição da Comunhão a quem não se possa deslocar.  
Porém, dado que se generalizou pacificamente o hábito de tanto os comungantes (após o aludido momento de recolhimento) como os não comungantes se sentarem, será de louvar que se levantem à predita passagem da píxide.
Pelo menos, esta é uma ação tão processional como as enumeradas no n.º 44 da IGMR. Mas há outra razão de maior peso, do meu ponto de vista: a passagem da píxide do altar da celebração para o altar (ou estrutura equivalente onde se localiza o sacrário) configura o ato de saída da grande celebração comunitária do Corpo e Sangue de Cristo no pão consagrado para a reserva eucarística cuja finalidade principal é servir como viático de quem está na iminência de proceder à última e grande viagem e, por conseguinte, disponibilizar-se para a comunhão fora da missa, nomeadamente a doentes, encarcerados e a outros que não podem comungar na missa, mas que o fazem, por exemplo nas celebrações da Palavra sem a presença de sacerdote, bem como para ficar patente à visita ou à adoração privada ou solene dos fiéis. E é sempre recomendada a conveniente reverenciação ao Santíssimo Sacramento exposto ou quando se expõe. Tanto assim é que o ministro ao aproximar-se do sacrário fechado, primeiro deve descerrar o sacrário, depois, genufletir (e não ao contrário) e tomar consigo a píxide; quando regressa com a píxide ao sacrário, primeiro, deve abrir o sacrário (se estiver fechado; caso contrário, deve observar o passo seguinte), colocar a píxide, genufletir, fechar o sacrário e retirar-se (e não de outro modo).   
Também por isso é que a ação de transporte da píxide merece a deferência dos fiéis. É certo que é o mesmo Cristo que esteve no altar, como é o mesmo Cristo que o fiel acabou de comungar – é o Cristo todo em cada partícula ou fragmento de partícula –, mas a deferência gestual que se presta à passagem da píxide significa a adesão do coração ao mistério que não se cinge a um lugar, mas está em trânsito ou fica na discrição do escondimento, como a vida do homem neste mundo, a não ser que a comunidade resolva dar-lhe visibilidade para o bem espiritual de todos.
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Por isso, nada de sobressalto, mas ato de fé e de devoção eucarística mesmo que redundante! E, sobretudo, que a fé eucarística leve as pessoas a sair de si mesmas e do egoísmo da vida, criando nelas a obrigação da solidariedade e da partilha em obediência às leis da caridade e da justiça, da justiça do Reino de Deus.
2018.05.02 – Louro de Carvalho     

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