segunda-feira, 7 de maio de 2018

A escravatura não é coisa de outros tempos


Com início no passado dia 5 de maio e com termo previsto para o dia 8, está a decorrer, em Buenos Aires, o fórum “Velhos problemas no novo mundo”, evento ecuménico organizado pela arquidiocese ortodoxa, guiada pelo Metropolita Tarasios, e pelo Instituto Ortodoxo “Patriarca Atenágoras” de Berkley, Califórnia, com o patrocínio do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla. É o 2.º Fórum Internacional sobre as formas modernas de escravidão.
O seu objetivo é reunir profissionais políticos, teólogos e estudiosos provenientes da América Latina e de outras regiões, para dar continuidade à conversa iniciada no primeiro fórum, incluindo outras questões como saúde pública, tecnologia e comunidades vulneráveis.
O fórum precedente realizou-se, em Istambul, na Turquia, nos dias 6 e 7 de fevereiro de 2017, graças à colaboração entre o patriarca ecuménico, Bartolomeu I, e o arcebispo de Cantuária, Justin Welby, primaz da Comunhão Anglicana.
No final do encontro, centrado no flagelo do tráfico de seres humanos, Bartolomeu e Welby assinaram uma declaração conjunta, expressando o compromisso comum para erradicar todas as formas de escravidão moderna.
***
A pertinência destas iniciativas tem a ver com os estudos que vêm sendo feitos e com os factos que perpassam o nosso mundo e bem evidenciados pelas estatísticas.

Um estudo realizado pelo economista norte-americano Siddharth Kara, da Universidade de Harvard, conclui que a escravidão é muito mais rentável hoje (a escravidão humana com fins sexuais é a mais presente) do que era nos séculos XVIII e XIX, quando a escravização de pessoas africanas era a base da produção em colónias europeias no sul do mundo. De acordo com Kara, hoje traficantes de escravos lucram entre 25 e 30 vezes mais do que os dos séculos passados. E confessa que “a escravidão hoje é mais rentável do que eu poderia ter imaginado”.

(apud Sérgio Carvalho/MTE, opera omnia, 2017, cfhttps://www.brasildefato.com.br/2017/08/08/escravidao-e-ate-30-vezes-mais-lucrativa-hoje-do-que-nos-seculos-18-e-19-diz-estudo/).

Por seu turno, o jornal britânico The Guardian publicou, a 31 de julho de 2017, dados de “Modern Slavery” (“Escravidão moderna”), livro do economista que foi lançado nos Estados Unidos em outubro daquele mesmo ano. A sua pesquisa concluiu que a média anual do lucro gerado por um escravo ao seu dono e explorador chega a US$ 3.978. Já a escravidão humana para fins sexuais gera quase dez vezes esse valor: os lucros com a exploração sexual de pessoas podem chegar a US$ 36 mil (equivalentes a R$112.651) ao ano, afirma o especialista em escravidão e diretor do Centro Carr de Políticas de Direitos Humanos da universidade norte-americana. 
O predito economista estima que o lucro total anual aferido por exploradores de pessoas com a escravidão moderna chegue a US$ 150 biliões. E, de acordo com os dados levantados por Kara, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual representa 50% de todo o lucro gerado pela escravidão moderna, apesar de as vítimas de escravidão sexual serem apenas 5% de todas as pessoas escravizadas atualmente.
O economista baseou a sua pesquisa em dados de 51 países em um período de 15 anos e entrevistou mais de 5 mil pessoas que foram vítimas da escravidão moderna. 
Especialistas estimam que cerca de 13 milhões de pessoas foram sequestradas na África e vendidas como escravas nas Américas por traficantes profissionais entre os séculos XV e XIX. Hoje, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) estima que pelo menos 21 milhões de pessoas no mundo são exploradas em alguma forma de escravidão moderna.
Enquanto, naqueles séculos, a escravidão implicava longas viagens transoceânicas e havia uma alta taxa de mortalidade entre as pessoas sequestradas e exploradas como escravas, a escravidão moderna gera mais lucro por vítima devido ao menor risco para os exploradores de pessoas e pelo menor custo do transporte das vítimas. Os grandes fluxos migratórios, incluindo migrantes económicos e refugiados de conflitos, são uma fonte fácil e barata de vítimas para os traficantes de pessoas, que serão exploradas, depois, na indústria da moda, da alimentação e nas redes de prostituição, entre outros setores.
Para Kara, “a vida humana tornou-se mais descartável do que nunca”. Quanto a isto, explicita:
Escravos podem ser comprados, explorados e descartados em períodos de tempo relativamente curtos e ainda geram grandes lucros para os seus exploradores. A ineficiência da resposta global à escravidão moderna permite que essa prática continue a existir. A não ser que a escravidão humana seja entendida como uma forma cara e arriscada de exploração do trabalho alheio, essa realidade não vai mudar.”.
***
Na edição de março, a revista vaticana Women Church World expôs a forma como são tratadas algumas freiras por cardeais e bispos da Igreja Católica. O artigo intitulado “O trabalho (quase) gratuito das freiras” e publicado pelo L’ Osservatore Romano denuncia o modo como são tratadas tais freiras. A revista está ser cada vez mais encarada como a versão da Igreja Católica do movimento #MeToo. Diz uma delas:
Algumas delas servem nas casas de bispos e cardeais, outras trabalham nas cozinhas das instituições católicas ou ensinam. Há quem, para servir os homens da Igreja, se levante de manhã para fazer o pequeno-almoço e só se deite quando estiver tudo limpo, a roupa lavada e engomada.”.
Além de raramente serem convidadas a sentar-se nas mesas que servem, realça-se a falta de salários dignos e a falta de contratos das mulheres que vão para os prelados. Quando adoecem, conta, as trabalhadoras são enviadas de novo para a congregação e substituídas por outras.
A editora quer dar voz a estas irmãs, através da revista que sobrevive pela boa vontade e esforço gratuito dos editores. Muitas vezes, o silêncio de muitas freiras está relacionado com o facto de virem longe (África, Ásia ou América) e fazerem os estudos religiosos no Vaticano, pagos pelas congregações. “Elas sentem-se em dívida, amarradas e, por isso, mantêm-se caladas”, diz uma freira, que também foi de África para Roma para prosseguir os seus estudos religiosos.
***
Por sua vez, o Papa Francisco enviou hoje, dia 7, uma mensagem de vídeo ao fórum Velhos problemas no novo mundo”, alertando para a persistência do fenómeno da escravatura, sob várias formas, e apelando a uma ação comum dos cristãos para travar o tráfico e a exploração de seres humanos.
A mensagem papal começa por esclarecer que “a escravidão não é algo de outros tempos – mas tem profundas raízes e manifesta-se ainda hoje de várias formas: tráfico de seres humanos, exploração do trabalho por meio de dívidas, exploração de crianças, exploração sexual e trabalho doméstico forçado”. São, efetivamente estas algumas das suas muitas formas. Cada uma delas é mais grave e desumana do que a outra”.
O Papa Bergoglio, também antigo arcebispo da capital argentina diz que os líderes cristãos partilham a “mesma preocupação” com as vítimas destes abusos, lamentando a “indiferença” face a estes casos; observa que “ninguém pode ficar indiferente e, de algum modo, cúmplice desse crime contra a humanidade”, com um apelo a “impedir que os corruptos e os criminosos escapem da justiça e mantenham o controlo sobre as pessoas escravizadas”; e alerta que “o crime organizado e o tráfico ilegal de seres humanos escolhem as vítimas entre as pessoas que hoje possuem meios escassos de subsistência e menos esperança pelo futuro”, entre os “mais pobres, marginalizados e descartados”.
Segundo algumas estatísticas recentes, que cita, “atualmente existem mais de 40 milhões de pessoas, homens, mas principalmente mulheres e crianças, em situação de escravidão”.
Sendo, para o Pontífice a nossa primeira grande tarefa “conhecer o tema” e “agir” em favor das vítimas, defendendo os seus direitos, pelo que ninguém pode ficar indiferente e, de algum modo, cúmplice desse crime contra a humanidade”, ele disse: 
Há alguns que, estando diretamente envolvidos em organizações criminosas, não querem que se fale sobre isto, simplesmente porque obtêm altos benefícios graças às novas formas de escravidão”.
E Francisco prossegue:            
Há também aqueles que, apesar de conhecerem o problema, não querem falar porque estão ali onde termina a “cadeia de consumo”, como consumidores dos “serviços” que oferecem homens, mulheres e crianças que se tornaram escravos. Não nos podemos distrair: todos somos chamados a sair de todas as formas de hipocrisia, enfrentando a realidade. O problema não está nas calçadas diante de nós: o problema envolve-nos. Não podemos olhar para o outro lado e declarar a nossa ignorância ou a nossa inocência.”.
A seguir, refere-se àquilo que é preciso fazer:
A segunda tarefa é agir a favor dos que se tornaram escravos: defender os seus direitos, impedir que os corruptos e os criminosos escapem da justiça e mantenham o controlo sobre as pessoas escravizadas”. 
Falando da situação social, diz que “não são suficientes as políticas de Governos e Organismos Internacionais para o combate da exploração de seres humanos, se as causas não forem enfrentadas”, ou seja, “as raízes mais profundas do problema”. E põe o dedo na ferida, ao discorrer:
Quando os países vivem na pobreza extrema, violência e corrupção, nem a economia, nem o quadro legislativo e nem as infraestruturas de base são eficazes. Não conseguem garantir a segurança, os bens e os direitos essenciais. Deste modo, é mais fácil que os autores desses crimes continuem a agir na impunidade total.”.
Depois, denuncia: 
Há um dado sociológico: o crime organizado e o tráfico ilegal de seres humanos escolhem as vítimas entre as pessoas que hoje possuem meios escassos de subsistência e menos esperança no futuro”.
Verificando que as vítimas estão “entre os mais pobres, marginalizados e descartados”, propõe educação e trabalho para responder aos desafios colocados pelas situações de escravatura moderna, numa colaboração ecuménica “para superar as desigualdades e discriminações”. Diz ele:
A resposta de base é criar oportunidades para um desenvolvimento humano integral, iniciando com a educação de qualidade: este é o ponto-chave […] Educação e trabalho.”. 
E, para realizar este imenso trabalho, o Papa convida todos, pois “é preciso um esforço comum e global por parte de todos os membros da sociedade”. E sublinha:
A Igreja deve comprometer-se com essa tarefa […]. Nós, cristãos, todos juntos, somos chamados a desenvolver cada vez mais uma maior colaboração para superar as desigualdades e discriminações.”.
São exatamente a desigualdade e discriminação o que propicia a escravidão. E o Papa conclui que “juntos, podemos construir uma sociedade renovada e orientada para liberdade, para a justiça e para a paz”. 
***
E estamos no século XXI, de cultura e civilização avançadas!
2018.05.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário