quarta-feira, 30 de maio de 2018

“Desporto – Virtudes e riscos”


O enunciado em epígrafe constitui o tema da 4.ª Jornada Nacional da Pastoral da CulturaDesporto – Virtudes e riscos”, que se realizará a 2 de junho, em Fátima, na Casa “Domus Carmeli”, Rua do Imaculado Coração de Maria, 17, e durante a qual será concedido o prémio “Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes” ao ator Ruy de Carvalho.
Trata-se dum encontro, aberto a crentes e não crentes, que se centra no significado antropológico e nas atuais conexões socioculturais do desporto – poética e ética do corpo e do espírito, poderes e desvios da irradiação social (negócio, corrupção, alienação, etc.). E dele são destinatários privilegiados os agentes da Pastoral da Cultura, os professores, os educadores e os responsáveis pela juventude de paróquias, organismos e movimentos, dirigentes e treinadores de clubes desportivos a nível federativo e escolar.
Os conferencistas refletirão também sobre a possibilidade de atualização da perspetiva cristã do ideal humanista de “mens sana in corpore sano” (mente sã em corpo são).
O tema da jornada foi escolhido na sequência das múltiplas intervenções do Papa Francisco e seus antecessores sobre o Desporto, área que suscitou a criação dum departamento exclusivo por parte do Conselho Pontifício da Cultura.
Entre as numerosas iniciativas do Vaticano contam-se a 1.ª conferência global sobre fé e desporto, a organização de competições internacionais no campo do atletismo, futebol de salão e críquete, a participação de delegações da Santa Sé nos Jogos Olímpicos e a criação de equipas desportivas.
A 4.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura é um evento reveste-se de grande oportunidade depois dos acontecimentos que acorreriam recentemente em Alcochete e que puseram em sentido os detentores de cargos políticos, s dirigentes desportivos e a massa crítica do país.
Do seu programa constam, como é natural: a sessão de abertura, em que tomarão a palavra  
Dom João Lavrador, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, e José Carlos Seabra Pereira, Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura; uma Conferência por Tomaz Morais, treinador de râguebi, e comentador desportivo, seguida de debate entre público e conferencista; um primeiro painel moderado pela jornalista Maria João Costa, com a participação do Padre Ismael Teixeira, atleta, “iron priest”, e Ribeiro Cristóvão, jornalista, comentador desportivo; um segundo debate entre público e conferencistas; uma intervenção artística, por Paulo Pires do Vale, curador, professor universitário; um segundo painel moderado pela jornalista Maria João Costa, com a participação de Beatriz Gomes, antiga campeã mundial de canoagem, professora universitária, e
Jorge Gabriel, apresentador de televisão, comentador desportivo; um terceiro debate entre público e conferencistas; uma Conferência por Gonçalo M. Tavares, escritor, professor universitário, seguida de debate entre público e conferencista; e ato de entrega do Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes a Ruy de Carvalho, atribuído pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, em parceria com a Renascença.
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Entretanto, o site do SNPC (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura) já traz a apresentação do jornalista António Ribeiro Cristóvão um dos convidados para esta 4.ª jornada e tenciona fazer o mesmo para os demais convidados ao longo destes dias.
Ribeiro Cristóvão – conhecido de programas como “Bola branca”, na Rádio Renascença, e “Domingo desportivo”, na RTP, e atualmente comentador na SIC e na emissora católica – nasceu há 78 anos, em Proença-a-Nova, frequentou seminários em Vila Viçosa e Évora e, aos 16 anos, embarcou para Angola, onde se iniciou na rádio, conheceu a mulher com que está casado, há 53 anos, e com quem teve três filhos.
Regressado em 1975, encontrou trabalho na Renascença. Marcou presença como jornalista em duas fases finais de campeonatos do Mundo de futebol e em quatro Europeus e foi deputado na Assembleia da República durante seis anos.
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Porém, o SNPC transcreveu um artigo de Paolo Crepaz, professor universitário e médico de equipas nacionais de Itália, publicado em Sportmeet (Movimento dos Focolares) sob o título  “Desporto e fé: O jogo que a Igreja não pode perder por falta de comparência”. Nele, analisa “o fenómeno do desporto”; discorre sobre “o desporto, religião do nosso tempo”; evidencia “o jogo, essência do desporto”; releva “o valor biológico do jogo”; reflete sobre “jogo, desporto e corporeidade”; e olha “o desporto à luz da doutrina cristã”. Disto se faz resenha e condensação a seguir.
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Sobre o fenómeno do desporto, considera a ancestralidade desta ocupação (desde os alvores da história da humanidade) e frisa ter assumido no nosso tempo “o caráter de um fenómeno de massa consolidado e invasivo”, vencendo todo o tipo de barreiras. De facto, o desporto é omnipresente e condiciona a perceção da realidade, constituindo-se em nova referência antropológica, persistente poder espiritual planetário e modelo inspirador e metodológico para todos os âmbitos. E tem um forte papel educativo, pois são “usadas para gerir problemas, situações e questões comummente encontradas na vida do dia a dia” muitas das “competências para a vida” e muitas das “capacidades humanas adquiridas através de ensinamento ou experiência direta”. 
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O subtítulo o desporto, religião do nosso tempo” remete para o olimpismo como a matriz e a referência mais pertinente do desporto moderno, aliás como do da Grécia antiga. Com efeito, à luz do art.º 2.º da Carta Olímpica, o olimpismo é a filosofia de vida que “exalta e combina num conjunto harmonioso as qualidades do corpo, a vontade e o espírito”, estabelecendo a simbiose do desporto com a cultura e a educação. Por conseguinte, “propõe-se criar um estilo de vida baseado na alegria do esforço, no valor educativo do bom exemplo e respeito pelos princípios éticos fundamentais universais”. Para Pierre De Coubertin, não se trata só da ação educativa dos jovens através da atividade motora, mas também de compaginar a conotação política dum projeto utopista de educação para a paz dos povos e de toda a comunidade internacional.
Também o desporto surge como caricatura mercantil duma religião universal, pois os eventos emblemáticos assumem o estilo duma liturgia numa e para uma assembleia planetária. Atente-se na cerimónia de acendimento do fogo olímpico ou na publicidade da Liga dos Campeões em futebol. O escritor espanhol e grande adepto do Barcelona Manuel Vazquez Montalban afirmou:
Numa época em que é evidente a crise das ideologias, em que é claro o redimensionamento da militância política, e onde até as atitudes religiosas sofrem de falta de perspetiva, o futebol é a única e grande religião praticável. Há neste desporto uma dimensão financeira, mediática, publicitária, mas não menosprezarei o seu lado litúrgico.”.
Assim, para Crepaz, o tema desporto à luz da fé cederá a “desporto: nova expressão de fé laica”.
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Comentando o enunciado em subtítulo “o jogo, essência do desporto”, o articulista sustenta que as pessoas gostam muito do desporto porque este é uma evolução do jogo, que é “experiência natural, instintiva, extremamente envolvente e fascinante”. Para Johan Huizinga, “o jogo é mais antigo que a cultura” e nele “manifesta-se um elemento imaterial na sua própria essência”. Como necessidade inata, o jogo induz a evolução das capacidades motoras, “cria um ambiente desinibido e distendido, melhora a imagem corpórea, aumenta o sentido de segurança e a autoestima, produz socialização e adaptação, faz nascer e desenvolver o uso da regra através de experiências diretas, regula o comportamento em relação aos outros, permite uma comunicação pessoal, restabelece o equilíbrio afetivo, permite experimentar papéis diferentes, facilita a tarefa do educador, que descobre estilos e modelos de comportamento da criança”.
A propósito, a socióloga e teóloga alemã Dorothee Solle exprimiu assim a busca da felicidade:
Como explicarei a uma criança o que é a felicidade? Não lhe explicarei: dar-lhe-ei uma bola para a fazer jogar.”.
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Com “o valor biológico do jogo”, Paolo Crepaz aponta as várias teorias sobre a utilidade biológica do jogo: “válvula de escape” das energias em excesso; robustecimento para treino em ordem à vida adulta (em contradição com o facto de o jogo decrescer na aproximação à idade adulta e os estímulos serem insuficientes); e treinamento para as dificuldades. E sustenta que os comportamentos lúdicos oferecem vantagens do ponto de vista biológico, caso contrário teriam sido aniquilados pela seleção natural.
Afirmando que o tempo despendido no jogo é diretamente proporcional às dimensões cerebrais do animal e inversamente proporcional à especialização, assegura que não há, na natureza, um animal que se entregue tanto tempo ao jogo como o homem por ser “o animal mais imaturo ao nascimento do ponto de vista neurológico (neotonia). Porque “o ser humano é o desajeitado cósmico”, o jogo oferece-se-lhe como o meio mais poderoso para lhe “fazer amadurecer e adaptar o cérebro neoténico imaturo ao ambiente, selecionando as conexões, as sinapses, que garantem esquemas motores e comportamentos eficazes para adaptar-se ao ambiente”. Assim, uma desvantagem imediata para o indivíduo, que o torna dependente e frágil, torna-se uma vantagem a prazo. Mesmo a nível biológico, pode dizer-se que a atividade motora e desportiva configura uma experiência formativa ou “um percurso que se funda não sobre o introduzir, mas sobre o educar” (no latim, “educere” e “educar”) e o fazer florir o que vive na pessoa.
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O nível biológico leva a equacionar o trinómio “jogo, desporto e corporeidade”. Com efeito, a corporeidade tem um valor fundamental, embora depreciado por vezes, que tornou tão difundida e popular a atenção prestada e a prestar à atividade física. Na verdade, como escreveu o cardeal Danneels, de Bruxelas, o ser humano “é, antes de tudo, espírito, pessoa única e livre, e é através do corpo que o seu espírito abre um caminho na matéria e na história”. E o francês Jean Giraudoux escrevia que “o desporto consiste em delegar ao corpo algumas das mais elevadas virtudes da alma”. Assim, o desporto, entendido como “jogo locomotivo para orientação motivacional intrínseca”, assume o papel de “manifestação ritualizada e organizada das expressões do espírito na corporeidade”, ou seja, de experiência que busca e desenvolve competências físicas, psicológicas e relacionais fundamentais para a formação da personalidade. Por conseguinte, o desporto é “askesis”, ou seja, experiência ascética, e é paideia (educação global) enquanto atividade de transformação do corpo e da alma.
Atentos a estes considerandos os gestores desportivos deveriam impedir qualquer tentativa de instrumentalização. Porém, embora o desporto queira aparecer e até ser como realidade em si mesmo e sem ligações de fé religiosa ou de interesses económicos e políticos, pelo menos ao nível das altas prestações, subjazem estas interferências. O desporto é hoje o negócio mais florescente do mundo e o produto mais vendível. E a história evidencia a sua instrumentalização para fins ideológicos: do romano “panem et circenses” para anestesiar as multidões ao empolgamento nazi e fascista, da ditadura argentina, dos mundiais de futebol, aos direitos humanos na China, das Olimpíadas, da cisão da ex-Jugoslávia ao Qatar dos tempos mais recentes.
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O subtítulo “o desporto à luz da doutrina cristã” lembra que os pensadores do cristianismo se concentraram mais nas questões éticas entre a mansidão evangélica e a competitividade desportiva do que na relação entre fé e desporto. Oferecem importantes pontos de reflexão as referências da 1.ª carta de Paulo aos Coríntios. Mas é original e interessante a ótica do pastor anglicano Lincoln Harvey que fala do desporto como “celebração da nossa contingência”, ou seja, do sentido, ao mesmo tempo, fugaz e eterno do nosso ser. E o ponto de vista do Papa Francisco, que chama ao desporto “metáfora da vida”, abre novos pontos de reflexão. A transferência das competências na área do desporto do Conselho Pontifício para os Leigos para o Conselho Pontifício da Cultura é significativa: o desporto é cultura.
E o congresso sobre desporto e fé “O desporto ao serviço da humanidade”, realizado no Vaticano em outubro de 2016, representa uma pedra angular neste sentido. Foi, como dizia o cardeal Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, ocasião de encontro, para debate conjunto (crentes e não crentes) dos grandes desafios da sociedade contemporânea e dos interesses partilhados das comunidades desportivas e religiosas do mundo. Intentou-se “lançar um movimento que inspire a pensar e agir segundo a ‘Declaração dos Princípios do Desporto ao Serviço da Humanidade’, com um conjunto de valores orientadores que articulam a influência combinada de desporto e fé”. São eles: a compaixão, que leva a dar força aos que são pobres e desfavorecidos; o respeito, que induz a reverência pelos adversários e a compreensão da sua cultura, bem como a condenação da violência no desporto, dentro e fora de campo; o amor, pois amar o desporto, que é para todos, leva a promover a participação fraterna e “permite a todos competir em condições iguais”; a iluminação, já que “o desporto tem o poder de transformar a vida e construir o caráter”; o equilíbrio, pois em cada fase da vida se joga por divertimento, saúde e amizade: e a alegria, pois desporto é sobretudo alegria, muito mais eficaz e visível no exercício que no vencer. O desporto bem poderá constituir o comércio e a indústria da paz!
Por fim, emerge, sobretudo para quem é cristãmente inspirado, a urgência de realçar e promover a beleza no desporto, a “estética”. Embora não seja viável não haver confronto no desporto, há que o apresentar como uma “via pulchritudinis”. Para tanto, todos, mas em especial os cristãos, devem questionar-se sobre o valor a reconhecer ao mundo do desporto, o relacionamento dos praticantes coma atividade desportiva – da atividade juvenil ao profissionalismo, sobre as expressões de fé no desporto, sobre a explicação das manifestações de fé, superstições e exorcismos no desporto e sobre se há uma fé incarnada no desporto e quais os seus pressupostos.
O desporto merece intensa, profunda e alargada reflexão.
2018.05.30 – Louro de Carvalho


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