quinta-feira, 31 de maio de 2018

Mistério admirável da nossa fé para a salvação do mundo


Na Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, que ocorreu neste dia 31 de maio, em que se se faria a celebração da memória da Visitação de Nossa Senhora, se não fosse hoje celebrada a solenidade móvel, tive a oportunidade de escutar duas reflexões homiléticas: a do Bispo do Porto, Dom Manuel Linda e a do Padre Passionista José Gregório – das quais me proponho fazer a minha leitura singela.
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Dom Manuel Linda reportou a criação eclesial deste dia como a necessidade de acentuar a valorização da Eucaristia na vida da Igreja e na transformação do mundo, não já num ambiente denso da celebração da Quinta-feira Santa carregada pelas cores dramáticas da Paixão e Morte. Porém, para apreendermos a essência do Mistério da Fé (Res Mirabilis) e aprofundarmos o seu sentido, temos de retomar o cenário e o teor da Última Ceia em que Jesus, depois da degustação do cordeiro pascal com os discípulos acompanhado de pão ázimo e ervas amargas, instituiu o sacramento da Eucaristia e o sacerdócio ministerial ao serviço do sacramento e deu o mandato de fazer tudo o que Ele e como Ele fez – a fração do pão e a prática do amor fraterno incalculado e sem limites, porque à medida do Mestre e Senhor. 
Frisando que a entrega do Seu corpo e sangue nos sinais do pão e do vinho aos discípulos é o dom gratuito do Senhor para alimento da vida de discípulos e de apóstolos que vivem em missão no mundo que necessita de transformação segundo o coração de Deus. É a entrega redentora, familiar e íntima, de Deus pela salvação do homem todo e dos homens todos (propter nos homines et nostram salutem), com o mesmo peso da entrega dramática na cruz, ora colocada próxima de nós ao serviço da nossa vida.
A comunhão no corpo e sangue Jesus implica, antes de mais, a assimilação com Cristo e incorporação de cada um no seu Corpo, pelo que se nos exige a vontade de nos deixarmos assimilar e incorporar, de modo que para nós viver seja viver em Cristo e completar em nós as Suas ações.
Por outro lado, celebrar a Eucaristia é participar no banquete dos filhos de Deus, o banquete da fraternidade. Aqui chegados provindos das periferias das nossas vidas, nos alimentamos e revigoramos e partimos para o meio das tarefas da vida e do mundo.
Depois, há que ter a consciência clara de que este é sacramento da unidade (unum corpus et unus spiritus). Não anda cada um por seu lado ou cada um a viver isoladamente a sua vida e à sua maneira sem referência à comunidade. De facto, a comunidade dos cristãos aparece logo nos primórdios como um só coração e uma só alma, o que mostra que a Igreja não aguenta as divisões profundas. Por isso, sente o constante palpitar do apelo à unidade, à concórdia.
Daqui decorre a necessidade da atitude contemplativa perante o dom eucarístico e a urgência da ação transformadora do mundo. A contemplação não pode consistir numa postura de passividade mas na entrega amorosa ao dom que nos invade, um deixarmo-nos apanhar gostosamente pelo dom e sentir o seu arrebatamento, o que postula um desejo forte de misticismo unitivo com Deus. Porém, é preciso aceitar a consequência desta possessão de Deus e do seu mistério. É que o mistério não se reduz ao indecifrável ou à intimidade, que é essencial, mas tem de fazer luzir a sua vertente de projeto ad extra e in perpetuum (para fora e para o futuro). Na verdade, o Senhor fez-se o pão repartido para a vida do mundo, porque deseja que todos tenham a Vida e a tenham em abundância. E colocou esta Vida e os seus germes e meios no coração e nas mãos dos discípulos de quem, no Espírito Santo, fez apóstolos e missionários, para que, arautos e pegureiros por toda a parte, enquanto profetas, ensinassem e fizessem discípulos, enquanto sacerdotes batizassem e celebrassem em Sua memória o mistério eucarístico, anunciando a Morte e Ressurreição do Senhor até que Ele volte, e, enquanto pastores, amem a todos como Ele amou e a todos ensinem a amar assim.
Para que a contemplação da Eucaristia se intensifique a nível pessoal, ela tem de sair dos limites do escondimento, tornar-se comunitária, afirmar-se e expandir-se aos olhos de todos para que dê aos demais a oportunidade de a contemplarem e adorarem e para que se lhe abram caminhos de transformação no dinamismo dos crentes e no respeito pela vontade e pelo ritmo de cada um dos destinatários da missão. Talvez seja este um dos bons sentidos da exposição solene do Santíssimo Sacramento e talvez seja a procissão do Santíssimo Sacramento o ato de fé pública de que os cristãos sente a necessidade e a obrigação um meio de afirmar a urgência da transformação do mundo tornando Jesus ressuscitado uma presença atuante e cidadã na cidade dos homens, nas ruas e caminhos de todos, nomeadamente dos pobres, dos doentes, dos encarcerados e dos deserdados – e o propósito do alegre testemunho do Ressuscitado entre nós e da presença obrigatória dos cristãos junto de todos, mormente dos que mais precisam.
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O Padre José Gregório começou por fazer a contextualização histórica, no século XIII da instituição desta festa (no quadro da nomenclatura tradicional) e solenidade (no quadro da nomenclatura pós-conciliar) em razão das dúvidas suscitadas por muitos e dos agravos e distrações e negligências e, depois, desenvolveu o tema, centrado na perícopa evangélica selecionada para o dia de hoje (Mc 14,12-16.22-26) e apoiando-se no que denominou de três notas basilares da mesma melodia.
A primeira nota tem a ver com o verbo “tomar” que Jesus utilizou aquando da ação instituidora da Eucaristia. É um verbo empregue no imperativo. Jesus, ao dizer “tomai”, solicita uma atitude de cada um dos discípulos, um empenho pessoal e comunitário, não a atitude passiva de quem se sujeita a receber um benefício como se estivesse a fazer um favor a quem o presta. A Eucaristia é efetivamente o dom amoroso de Deus a cada um e à comunidade. É a Nova Aliança que, firmada nos ensinamentos de Jesus em nome do Pai, espelha a vontade de Deus a nosso respeito e postula as nossas atitudes de aceitação e de ação em conformidade com as suas exigências para com o Senhor e para com os irmãos. 
Neste sentido, reportou-se ao texto assumido para a 1.ª leitura (Ex 24,3-8). Esta passagem do Êxodo apresenta Moisés a relatar ao povo todas as palavras do Senhor e todas as normas. E a isto todo o povo respondeu a uma só voz: “Poremos em prática todas as palavras que o Senhor pronunciou”. Moisés escreveu todas as palavras de Deus, levantou-se de manhã cedo, construiu um altar e doze estelas pelas doze tribos de Israel e enviou os jovens dos filhos de Israel, que ofereceram holocaustos e sacrificaram ao Senhor novilhos como sacrifícios de comunhão. Depois, espalhou sangue sobre o altar, leu o Livro da Aliança ao povo, que anuiu, reiterando: “Tudo o que o Senhor disse, nós o faremos e obedeceremos”. Finalmente, tomou sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: “Eis o sangue da aliança que o Senhor concluiu convosco”.
E é justamente aqui que entronca a segunda nota. Jesus, com a entrega do Seu corpo e sangue nos sinais do pão e do vinho associa, em intrínseca conexão, à Última Ceia o ato sacrificial do Gólgota. Se o pão feito Corpo de Cristo é alimento do corpo e da alma de cada um – a pessoa toda – e da comunidade dos discípulos, o Sangue de Cristo é o selo da Nova e Eterna Aliança, a que todos têm de estar vinculados. Não se trata de um mero ritual. É preciso tomar o alimento e revigorar a vida com o sangue da unidade; é preciso criar e aumentar a comunhão e implicar os outros, nomeadamente os pobres, os doentes, aqueles a quem o mundo não presta atenção. Com efeito, a vida dos cristãos não pode seguir sem que assumamos os sentimentos de Jesus na ligação ao Pai e na relação com os irmãos – relação que tem de incluir a todos, de modo que esta seja terra de todos, terra de vida e terra de Deus. Com efeito, não se trata de aceitar o resgate operado por Cristo como algo totalmente consumado ficando nós com o gozo exclusivo dos rendimentos. Não. É necessário pormo-nos em atitude de assimilação do benefício redentor e de disponibilidade para levar aos outros a boa notícia e fazê-los partícipes do Mistério. Ninguém lá chega por si só. É necessária a missionação, a catequese, a pregação, a celebração e o exercício da caridade fraterna.
E na terceira nota há também um imperativo como na primeira, mas com outro verbo: “fazei”. E esta ação é tríplice: fazer em memória do Senhor este ato sacrificial e de comunhão no seio da comunidade e como testemunho perante o mundo; satisfazer em pleno o mandamento do amor, amando como Jesus amou, afetiva e efetivamente, com gestos de aproximação e com o olhar compassivo, com palavras de conforto e com ações concretas de cuidado, solidariedade e companheirismo; e partir pelo mundo de cá e de lá, de perto e de longe, a ensinar o que Jesus ensinou, a rezar como Ele rezou, a amar como Ele amou e ama, a celebrar o memorial da Sua Morte e Ressurreição enquanto esperamos em jubilosa esperança a Sua vinda gloriosa.
Para tudo isto, é necessário aprender e reaprender a contemplar e adorar e estar disponível para a missão onde for necessário e como for necessário, sem inibições e presunções, sem medo e sem temeridade, sem improviso sistemático e sem deixar de intervir mesmo sem se contar.
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Foi assim que li as boas comunicações que escutei, embora não com as palavras dos mencionados comunicadores pastores celebrantes, mas emprestando aos fios condutores que topei os meus considerandos pessoais de forma integrada, tanto quanto possível.
A Eucaristia, porém, não se deixa aprisionar nas nossas categorias mentais. Não obstante, porque é oferta de Deus disponibilizada a todos, é efetivamente o Mistério da Fé que urge contemplar e apresentar a todos. É profundamente Mistério da fé pessoal, pois cada um, espontaneamente ou ao ser interrogado, professa: “Creio”. É extensivamente o Mistério da nossa Fé, porque a professamos, não apenas a sós com Deus, mas em comunidade e professando o símbolo disponível pela comunidade e por ela utilizado. Não somos nós que inventamos a fé, mas é Deus que a dá para cada um e para a comunidade. É, pois, um dom pessoal e carismático.
E, quando somos convidados a professar pessoalmente a fé em comunidade, o ato finaliza com esta proclamação solene: “Esta é a nossa fé. Esta é a fé da Igreja, que nos gloriamos de professar, em Jesus Cristo, Nosso Senhor. Amen.”. E não se pode ter a fé como tesouro acorrentado, mas saber pôr-se (com ela, nela e por ela) ao serviço da recuperação redentora do homem todo e de todos os homens sem distinção de raça, sexo, religião, ideologia, tempo, lugar.
Na verdade, este Mistério é admirável em si mesmo e nas vertentes em que se desdobra e multiplica. Que pena nem sempre sermos consequentes com o que dizemos acreditar!
2018.05.31 – Louro de Carvalho   

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