Na
Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, que ocorreu neste dia 31 de maio, em
que se se faria a celebração da memória da Visitação de Nossa Senhora, se não
fosse hoje celebrada a solenidade móvel, tive a oportunidade de escutar duas
reflexões homiléticas: a do Bispo do Porto, Dom Manuel Linda e a do Padre
Passionista José Gregório – das quais me proponho fazer a minha leitura singela.
***
Dom
Manuel Linda reportou a criação eclesial deste dia como a necessidade de
acentuar a valorização da Eucaristia na vida da Igreja e na transformação do
mundo, não já num ambiente denso da celebração da Quinta-feira Santa carregada
pelas cores dramáticas da Paixão e Morte. Porém, para apreendermos a essência do
Mistério da Fé (Res
Mirabilis) e
aprofundarmos o seu sentido, temos de retomar o cenário e o teor da Última Ceia
em que Jesus, depois da degustação do cordeiro pascal com os discípulos
acompanhado de pão ázimo e ervas amargas, instituiu o sacramento da Eucaristia
e o sacerdócio ministerial ao serviço do sacramento e deu o mandato de fazer
tudo o que Ele e como Ele fez – a fração do pão e a prática do amor fraterno
incalculado e sem limites, porque à medida do Mestre e Senhor.
Frisando
que a entrega do Seu corpo e sangue nos sinais do pão e do vinho aos discípulos
é o dom gratuito do Senhor para alimento da vida de discípulos e de apóstolos
que vivem em missão no mundo que necessita de transformação segundo o coração
de Deus. É a entrega redentora, familiar e íntima, de Deus pela salvação do
homem todo e dos homens todos (propter
nos homines et nostram salutem),
com o mesmo peso da entrega dramática na cruz, ora colocada próxima de nós ao
serviço da nossa vida.
A
comunhão no corpo e sangue Jesus implica, antes de mais, a assimilação com
Cristo e incorporação de cada um no seu Corpo, pelo que se nos exige a vontade
de nos deixarmos assimilar e incorporar, de modo que para nós viver seja viver
em Cristo e completar em nós as Suas ações.
Por
outro lado, celebrar a Eucaristia é participar no banquete dos filhos de Deus,
o banquete da fraternidade. Aqui chegados provindos das periferias das nossas
vidas, nos alimentamos e revigoramos e partimos para o meio das tarefas da vida
e do mundo.
Depois,
há que ter a consciência clara de que este é sacramento da unidade (unum corpus et unus spiritus). Não anda cada um por seu lado
ou cada um a viver isoladamente a sua vida e à sua maneira sem referência à
comunidade. De facto, a comunidade dos cristãos aparece logo nos primórdios
como um só coração e uma só alma, o que mostra que a Igreja não aguenta as
divisões profundas. Por isso, sente o constante palpitar do apelo à unidade, à
concórdia.
Daqui
decorre a necessidade da atitude contemplativa perante o dom eucarístico e a
urgência da ação transformadora do mundo. A contemplação não pode consistir
numa postura de passividade mas na entrega amorosa ao dom que nos invade, um
deixarmo-nos apanhar gostosamente pelo dom e sentir o seu arrebatamento, o que
postula um desejo forte de misticismo unitivo com Deus. Porém, é preciso
aceitar a consequência desta possessão de Deus e do seu mistério. É que o
mistério não se reduz ao indecifrável ou à intimidade, que é essencial, mas tem
de fazer luzir a sua vertente de projeto ad
extra e in perpetuum (para
fora e para o futuro).
Na verdade, o Senhor fez-se o pão repartido para a vida do mundo, porque deseja
que todos tenham a Vida e a tenham em abundância. E colocou esta Vida e os seus
germes e meios no coração e nas mãos dos discípulos de quem, no Espírito Santo,
fez apóstolos e missionários, para que, arautos e pegureiros por toda a parte,
enquanto profetas, ensinassem e fizessem discípulos, enquanto sacerdotes batizassem
e celebrassem em Sua memória o mistério eucarístico, anunciando a Morte e
Ressurreição do Senhor até que Ele volte, e, enquanto pastores, amem a todos
como Ele amou e a todos ensinem a amar assim.
Para que
a contemplação da Eucaristia se intensifique a nível pessoal, ela tem de sair
dos limites do escondimento, tornar-se comunitária, afirmar-se e expandir-se
aos olhos de todos para que dê aos demais a oportunidade de a contemplarem e
adorarem e para que se lhe abram caminhos de transformação no dinamismo dos
crentes e no respeito pela vontade e pelo ritmo de cada um dos destinatários da
missão. Talvez seja este um dos bons sentidos da exposição solene do Santíssimo
Sacramento e talvez seja a procissão do Santíssimo Sacramento o ato de fé
pública de que os cristãos sente a necessidade e a obrigação um meio de afirmar
a urgência da transformação do mundo tornando Jesus ressuscitado uma presença
atuante e cidadã na cidade dos homens, nas ruas e caminhos de todos,
nomeadamente dos pobres, dos doentes, dos encarcerados e dos deserdados – e o
propósito do alegre testemunho do Ressuscitado entre nós e da presença
obrigatória dos cristãos junto de todos, mormente dos que mais precisam.
***
O Padre
José Gregório começou por fazer a contextualização histórica, no século XIII da
instituição desta festa (no quadro da nomenclatura tradicional) e solenidade (no
quadro da nomenclatura pós-conciliar)
em razão das dúvidas suscitadas por muitos e dos agravos e distrações e
negligências e, depois, desenvolveu o tema, centrado na perícopa evangélica selecionada
para o dia de hoje (Mc 14,12-16.22-26) e apoiando-se no que denominou
de três notas basilares da mesma melodia.
A
primeira nota tem a ver com o verbo “tomar” que Jesus utilizou aquando da ação
instituidora da Eucaristia. É um verbo empregue no imperativo. Jesus, ao dizer
“tomai”, solicita uma atitude de cada um dos discípulos, um empenho pessoal e
comunitário, não a atitude passiva de quem se sujeita a receber um benefício
como se estivesse a fazer um favor a quem o presta. A Eucaristia é efetivamente
o dom amoroso de Deus a cada um e à comunidade. É a Nova Aliança que, firmada
nos ensinamentos de Jesus em nome do Pai, espelha a vontade de Deus a nosso
respeito e postula as nossas atitudes de aceitação e de ação em conformidade
com as suas exigências para com o Senhor e para com os irmãos.
Neste sentido,
reportou-se ao texto assumido para a 1.ª leitura (Ex
24,3-8). Esta passagem
do Êxodo apresenta Moisés a relatar ao povo todas
as palavras do Senhor e todas as normas. E a isto todo o povo respondeu a uma
só voz: “Poremos em prática todas as palavras
que o Senhor pronunciou”. Moisés escreveu
todas as palavras de Deus, levantou-se de manhã cedo, construiu um altar e doze
estelas pelas doze tribos de Israel e enviou os jovens dos filhos de Israel,
que ofereceram holocaustos e sacrificaram ao Senhor novilhos como sacrifícios
de comunhão. Depois, espalhou sangue sobre o altar, leu o Livro da Aliança ao povo,
que anuiu, reiterando: “Tudo o que o
Senhor disse, nós o faremos e obedeceremos”. Finalmente, tomou sangue e aspergiu
com ele o povo, dizendo: “Eis o sangue da
aliança que o Senhor concluiu convosco”.
E
é justamente aqui que entronca a segunda nota. Jesus, com a entrega do Seu
corpo e sangue nos sinais do pão e do vinho associa, em intrínseca conexão, à
Última Ceia o ato sacrificial do Gólgota. Se o pão feito Corpo de Cristo é alimento
do corpo e da alma de cada um – a pessoa toda – e da comunidade dos discípulos,
o Sangue de Cristo é o selo da Nova e Eterna Aliança, a que todos têm de estar
vinculados. Não se trata de um mero ritual. É preciso tomar o alimento e revigorar
a vida com o sangue da unidade; é preciso criar e aumentar a comunhão e
implicar os outros, nomeadamente os pobres, os doentes, aqueles a quem o mundo não
presta atenção. Com efeito, a vida dos cristãos não pode seguir sem que assumamos
os sentimentos de Jesus na ligação ao Pai e na relação com os irmãos – relação que
tem de incluir a todos, de modo que esta seja terra de todos, terra de vida e
terra de Deus. Com efeito, não se trata de aceitar o resgate operado por Cristo
como algo totalmente consumado ficando nós com o gozo exclusivo dos rendimentos.
Não. É necessário pormo-nos em atitude de assimilação do benefício redentor e de
disponibilidade para levar aos outros a boa notícia e fazê-los partícipes do Mistério.
Ninguém lá chega por si só. É necessária a missionação, a catequese, a pregação,
a celebração e o exercício da caridade fraterna.
E
na terceira nota há também um imperativo como na primeira, mas com outro verbo:
“fazei”. E esta ação é tríplice: fazer em memória do Senhor este ato sacrificial
e de comunhão no seio da comunidade e como testemunho perante o mundo; satisfazer
em pleno o mandamento do amor, amando como Jesus amou, afetiva e efetivamente, com
gestos de aproximação e com o olhar compassivo, com palavras de conforto e com
ações concretas de cuidado, solidariedade e companheirismo; e partir pelo mundo
de cá e de lá, de perto e de longe, a ensinar o que Jesus ensinou, a rezar como
Ele rezou, a amar como Ele amou e ama, a celebrar o memorial da Sua Morte e Ressurreição
enquanto esperamos em jubilosa esperança a Sua vinda gloriosa.
Para
tudo isto, é necessário aprender e reaprender a contemplar e adorar e estar
disponível para a missão onde for necessário e como for necessário, sem
inibições e presunções, sem medo e sem temeridade, sem improviso sistemático e
sem deixar de intervir mesmo sem se contar.
***
Foi
assim que li as boas comunicações que escutei, embora não com as palavras dos
mencionados comunicadores pastores celebrantes, mas emprestando aos fios condutores
que topei os meus considerandos pessoais de forma integrada, tanto quanto
possível.
A
Eucaristia, porém, não se deixa aprisionar nas nossas categorias mentais. Não obstante,
porque é oferta de Deus disponibilizada a todos, é efetivamente o Mistério da
Fé que urge contemplar e apresentar a todos. É profundamente Mistério da fé
pessoal, pois cada um, espontaneamente ou ao ser interrogado, professa: “Creio”.
É extensivamente o Mistério da nossa Fé, porque a professamos, não apenas a sós
com Deus, mas em comunidade e professando o símbolo disponível pela comunidade
e por ela utilizado. Não somos nós que inventamos a fé, mas é Deus que a dá
para cada um e para a comunidade. É, pois, um dom pessoal e carismático.
E,
quando somos convidados a professar pessoalmente a fé em comunidade, o ato
finaliza com esta proclamação solene: “Esta
é a nossa fé. Esta é a fé da Igreja, que nos
gloriamos de professar, em Jesus Cristo, Nosso Senhor. Amen.”.
E não se pode ter a fé como tesouro acorrentado, mas saber pôr-se (com ela, nela e por ela) ao serviço da recuperação redentora
do homem todo e de todos os homens sem distinção de raça, sexo, religião,
ideologia, tempo, lugar.
Na verdade,
este Mistério é admirável em si mesmo e nas vertentes em que se desdobra e
multiplica. Que pena nem sempre sermos consequentes com o que dizemos
acreditar!
2018.05.31 – Louro de Carvalho
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